O AMANTE

D. Dolores tinha morrido há duas semanas e Carla, a sua filha única, ainda não tinha ganho coragem para voltar à casa materna.

Progressivamente, foi adquirindo ânimo e um dia decidiu-se.

Logo que chegou, começou a selecionar papelada, para deitar fora aqueles documentos de menor ou nulo interesse. Enquanto mexia nos montes de papéis que se acumulavam na velha escrivaninha, recordava a vida soturna da mãe, devida, sobretudo, ao temperamento austero e azedo do pai, cobrando por tudo e por nada e infernizando-lhe os dias. Mas Deus escreve direito por linhas tortas e acabou por o levar tinha Carla dezoito anos.

Nunca viu a mãe dar atenção a outro homem, casada ou viúva. Mantivera-se sempre digna, com uma postura contida, sempre vestida de preto.

Carla também não poderia gabar a sua sorte. Após uma adolescência muito reprimida pelo pai, que lhe coartava a liberdade de vivenciar aquilo que as suas colegas usufruíam, começou a trabalhar e o dinheiro deu-lhe independência. Quis a má sorte que o seu primeiro namorado, fruto da sua inexperiência de vida, fosse um espertalhão que a seduziu e lhe deixou uma filha nos braços, sumindo logo de seguida.

A mãe barafustou mas a filha sempre acreditou que as censuras que lhe fazia eram mais devidas às aparências, o que as vizinhas iriam pensar perante uma mãe solteira, certamente que Carla afinal era uma mulher fácil. Ela chorou muito mas depois tudo passou.

D. Dolores foi sempre solícita com ela e quando teve a neta nos braços, derreteu-se em carinho para a pequerrucha. Esse foi o ponto de partida para a mudança de atitude e o passado recente foi esquecido.

Agora já tinha a filha crescida, a estudar Direito, estava uma mulheraça, linda e inteligente.

Nesse dia de regresso à casa materna, quando Carla despejava uma gaveta da tal escrivaninha achou uma pequena chave… Deu voltas à cabeça, tentando descortinar a que fechadura pertenceria. Dessa vez desistiu mas no dia seguinte voltou à carga e concluiu que a chave pertenceria a uma pequena arca em madeira oriental que a mãe fizera questão em levar para o seu quarto,

Curiosa abriu o móvel e entre muitas fotos e recortes de jornal, achou uma caixa mais pequena, de que despejou o conteúdo quando ela, desajeitada, lhe pegou de forma errada. Um grosso maço de cartas atadas com fita de veludo verde caiu dentro da arca. Pegou numa e viu que era dirigida à mãe.

Leu-a e ficou surpreendida e até algo embaraçada. Era uma carta de amor, mas respeitoso, tinha sido escrita há oito anos atrás. As palavras fluíam mas sem arrebatamento, apenas gentis e delicadas, denodando adoração e respeito.

Carla viu-se completamente dominada pela curiosidade e leu todas as cartas, aleatoriamente. As missivas eram assinadas “Fernando”. Pelas datas, depreendeu que há seis anos a mãe não comunicava com o amante (no sentido amoroso do termo “aquele que ama”, num contexto platónico).

O que teria sucedido depois disso? D. Dolores deixara de lhe escrever ou teria acontecido algo com o seu amoroso correspondente?

Depois lembrou-se que precisamente nessa altura, seis anos atrás, a mãe como que tivera um grande desgosto e passava as tardes olhando o céu, vagando o olhar perdido no horizonte… Esteve algumas semanas sem sair do quarto e tanto com ela como com a neta os sorrisos eram algo forçados, sentia-lhe uma grande nostalgia e tristeza.

Carla arrumou as cartas, devidamente atadas e então, no fundo da arca, descortinou um livro já algo folheado, “Sensibilidade e Bom Senso”, de Jane Austen. Entre as folhas amarrotadas repousava uma rosa seca e a dedicatória estava escrita com a mesma caligrafia das cartas: “Para o meu amor maior…” e por baixo a única referência escrita pelo punho da mãe: “ Do Fernando, o meu amado querido”.

Carla voltou a fechar a arca e esteve algum tempo sem a voltar a abrir.

Passados uns dias sobre este incidente, ao entardecer, Carla deslocou-se ao cemitério onde jaziam os restos mortais da mãe, levando um lindo ramo de flores. Chegada junto da campa, encostou-as à lápide que identificava a pessoa que ali estava sepultada, orou um pouco e depois pensou:

“Certamente que adorarias receber estas flores desde que trazidas pelo teu amado Fernando. Sê feliz lá onde estiveres, minha adorada mãe”.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 03/04/2017
Reeditado em 23/11/2022
Código do texto: T5960076
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