TOCA AQUELA DO ROBERTO
Você sempre soube quando eu estava triste. Me conhecia tão bem... E entendia que, quando eu me calava, era porque estava preocupado, cansado... ou só queria pensar. Em todos aqueles anos, você não deixou de me acarinhar, me compreender... sorrir para mim. Quantas vezes até se calou, atenta aos meus anseios por silêncio.
Em momentos estranhos, de dificuldades tantas, cantou para mim “Como vai você”, feito mãe zelosa ao pé do ouvido da criança que, desencantada com o mundo, chora sem querer dormir. Noutras vezes, notando meu alheamento, esse quase sofrimento da alma que me é tão corriqueiro, abraçou nosso velho violão e, sentada no braço do sofá, dedilhou “Fera Ferida”. Atenta aos meus sinais mudava o tom e, a cappella, esbanjava ousadia ao cantar “Olha”.
Nos crepúsculos tristes de outono, quando a nostalgia derramava sobre mim seu manto e, incontinenti, eu me lembrava da infância, dos desencantos insistentes da juventude, das primeiras desventuras... você oferecia o colo protetor. Compreensiva, deixava nosso velho CCE tocar “Como as ondas do mar” três, quatro, cinco vezes seguidas... Brincalhona, você dizia que “assim o LP vai furar” para, só então, se levantar e virar o disco.
Nas noites insones em que eu desabava minhas preocupações e meus dramas sobre os travesseiros e lençóis, você me ouvia sempre atenta. E, sob a luz indiscreta do abajur, ligava o micro system que dividia espaço na cômoda com os porta-retratos e nossas leituras do momento. Então, embalado por “Pássaro Ferido”, eu me acalmava para encontrar em seus braços o repouso vital.
Durante momentos impudicos e prazerosos, esbarrávamos “Pelas esquinas da nossa casa” indiferentes aos artesanatos que se espatifavam no chão, aos quadros de nossos pais e sobrinhos se desalinhando nas paredes... passeávamos, felizes, pelas melodias de “Cavalgada” enquanto “O Tempo e o Vento” tentavam, em vão, nos chamar à razão. Enfim, extasiados, dormíamos embalados por “Cama e mesa” e “Seu Corpo”.
Ah, quantas datas marcantes... nosso primeiro Natal ao som de “Ele está pra chegar”. Na primeira viagem para o Rio: eu queria ouvir repetidamente “Caminhoneiro”, você retrocedia o CD até “Eu e Ela”. Eu falava que aquela canção me remetia à infância, aos caminhões levando gente para os canaviais nos dias de semana e, aos domingos de manhã, para o futebol na roça... Você ria: não estava familiarizada com essas coisas de cidade do interior. Nosso primeiro aniversário de namoro: eu te presenteei com uma K-7 que eu mesmo gravei; no lado A só “Eu te amo, te amo, te amo” e, o lado B só “A primeira vez”. Nossa primeira discussão: você, trancada no quarto, se recusava a abrir a porta; eu andava pelo corredor como um hamster lunático, cantando “Sinto muito, minha amiga”... e só parei quando você abriu a porta declamando os versos de “Perdoa”.
O tempo passou. Inevitavelmente tudo passa: não há como frear, infelizmente, o fluxo da vida. Naquela noite fatídica, a briga, os gestos... tantos desaforos incompreensíveis ditos no calor da hora. “À janela”, magoado, fiquei a fumar um Marlboro: minha última e desesperada jogada para chamar sua atenção. Contudo, vi você descer a escada e, decidida, ir embora. Sequer se virou para me dizer, como fizera tantas e tantas vezes: apaga a merda desse cigarro. Na sala agora vazia e enorme, tocava baixinho “O show já terminou”. Você deu a partida. Chorei. No seu carro, eu sei que tocava “De tanto amor”. Afinal, eu também conhecia você a fundo... “O Portão”, que dias antes eu pintara de azul para atender seu pedido, sentiu a intensidade dos faróis altos do Celta. Lentamente você engrenou a marcha à ré... tão lentamente que, por um segundo, achei que se arrependeria e voltaria para mim. Até pensei: se a porta do carro se abrir, jogo essa droga de cigarro fora, ponho “A volta” para tocar no último volume – que se dane a vizinhança – e desço correndo para a calçada... no entanto, indiferente aos meus delírios, os pneus cantaram. Eu vi você trocando a marcha, cruzando a ponte, pegar a estrada... e nunca mais ouvi falar em você.
“Hoje é domingo”. Estou sozinho na casa fria. As fotos nos porta-retratos ainda são as mesmas... chove tristemente. Há ruídos “No quintal do vizinho”: as crianças gritam muitos bang bang, tantos bum pow kabum que “Aquela Casa Simples” mais parece um campo de guerra. Enquanto lá fora eclode “A Guerra dos Meninos”, aqui dentro, abatido no sofá, ouço mais uma vez “As canções que você fez pra mim”. No auge do meu desespero gritei seu nome... Os vizinhos reclamaram, certo dia, quando eu comprava pão. Parei de gritar quando soube que, pelas costas, me taxavam de maluco. Passei a escrever “Cartas de Amor” que são uma forma de “Desabafo”. Os garranchos nas folhas sem pauta me ajudam a sufocar no peito essa dor que parece durar “Pra Sempre”.
A tarde esfria ainda mais. Olho a cada minuto pela vidraça empoeirada, na esperança inútil de ver você voltar. Desde aquele dia, vou “Vivendo por Viver”. E me recuso a aceitar que nunca mais poderei pedir a você: toca aquela do Roberto.