Um conto grego

Se houvesse alguma forma de aplacar aquela dor ela o faria, mas para as dores que se sente no coração não há remédio. E como doía. Seu peito sangrava, o ar lhe faltava. Mas o que mais a incomodava era como se tornara incapaz de ter domínio sobre sua mente. Algo que antes para ela era tão simples e banal, agora era um árduo exercício. Não podia distrair-se sem que seus pensamentos se voltassem rapidamente para ele, assim como um beija-flor é atraído por um Hibisco.

Quando o conheceu, ela não podia imaginar o quanto mudaria sua vida. Ela tinha um jeito meio rebelde, feminista. Era independente, sempre trabalhou muito e era razoavelmente boa no que fazia. Mas era uma mulher forte. Do tipo que não leva desaforo pra casa. Do tipo que não se deixa perceber quando fica chateada, que sempre está alegre. Que não engole sapo, que diz o que pensa sem se preocupar se alguém ficará magoado. Ela era sincera. Sempre quando eu a encontrava ela fazia com que eu me sentisse importante, perguntava como estava, lembrava da minha avó, que algum tempo atrás lhe contei que estava doente. Ela era o tipo de garota que quando se estava perto dela não se tinha vontade de ir. E quando ela partia, sempre deixava um gostinho de quero-mais. Se era bonita? Sim, o suficiente. Para ele até demais.

Eu gostava de pensar que era uma de suas melhores amigas, mas todos sempre o pareciam ser. Era muito fácil contar segredos para ela. Ela fazia com que você se sentisse íntimo, confortável. Já, de todas as histórias que ela me contava, ainda não sei quais poderiam ser confidencias - se existiam - ela não era do tipo que se abria muito, ninguém sabia muito sobre ela. Alguns namorados, nenhum grande amor... muitas viagens, amigos e lugares. Ela nunca foi esnobe, mas conversava com qualquer tipo de pessoa, sobre qualquer coisa: Leitura, televisão, mundo, artes. Ela sabia como se sair mesmo quando não entendia muito do assunto e era muito boa para fugir de situações constrangedoras.

Eu pude ver quando ele chegou no seu mundo. De alguma forma o olhar dela mudou. Não foi o tipo de encontro exemplar, um barzinho, alguns amigos. Os observadores imaginaram que ele teria sido a primeira pessoa que não caiu na graça dela. Trocaram farpas, ironias - tudo de forma muito inteligente - Ela jurou que o achou superficial, ele insistiu em acha-la prepotente. Mas continuaram a se encontrar depois disso, desculpas de amigos em comum e incomuns. Os encontros eram recheados de conversas e discussões, e sempre acontecia, em determinado momento, de os dois ficarem a sós, mesmo cercados de multidão. Eles se elevavam a uma frequência só vivida por eles, a conversa Sempre acabava se tornando uma discussão acalorada entre os dois, e nenhum dos amigos arriscava intervir.

Um dia, a fórmula clichê de chuva, apenas um táxi e o cavalheirismo imparcial que ele possuía mudou tudo. Um bom vinho para esquentar e uma conversa que virou a noite. Não sabiam que diferenças criavam tantos assuntos. A partir de então, sempre que precisavam de uma boa conversa sabiam como se encontrar, sem querer, claro. Nunca admitiriam nenhum relacionamento, negavam até mesmo a amizade, não só para os amigos, mas para eles mesmos. Mas quando eram vistos juntos ficava muito claro o que sentiam, exalava pelos poros, eles não podiam evitar. Os olhares era puro reflexo um do outro. Um relacionamento bem como ela era, bem da forma dela. Eu não acredito em alma gêmea, nem em coisas parecidas, mas de alguma forma ele a completava. E eu nunca imaginei que a veria como uma pessoa incompleta. Ninguém sabia o que acontecia quando saíamos da pizzaria, ou quando o barzinho fechava. Mas as vezes era óbvio que eles estavam juntos. Era algo que todos sabiam e ninguém dizia! Só podíamos ouvir: como eles combinavam em não combinar. Não eram um casal nada usual.

Mas, algumas coisas na vida são iguais para todos, mesmo para uma mulher tão única e forte como ela. Um dia seu telefone tocou e veio a notícia. Ele iria embora. Voltaria para a noiva que deixara na Grécia. Tinham se acertado, ela estava grávida. Era seu filho, ele não podia negá-lo. Queria que a criança crescesse com uma família digna, como a que ele teve. Ele sempre foi um homem com valores e morais extremamente enraizados e sua cultura, como abandonaria um filho? Não fora uma decisão fácil pra ele, não era o que ele queria. Passara a criar um amor tão grande pelo Brasil, sempre sentia muita saudade. Mas era o certo a se fazer. Terminou a ligação dizendo que talvez fosse a última, e que desejava que ela fosse muito feliz. Ela riu quando ele disse isso. Não um riso comum, como que ela costumava dar, mas um riso de dor. Como se esse riso fosse impedir sua loucura interna de sair. Ela desligou o telefone, com felicitações. A frase “o certo a se fazer” ainda martelava em sua cabeça, sempre acreditou em fazer o bem, mas não sabia que o “certo” traria tanta dor a ela algum dia. E porque estava sentindo essa dor? Ela o odiava, o achava tão teatral, tão fútil. Se recusou a ficar ali parada, pensando em tudo o que conversara e enumerando motivos para não gostar dele. Saiu de casa, como para fugir do que tinha acontecido e foi alguns minutos depois disso que ouvi a minha campainha tocar.

Eu abri a porta e ela estava lá, parada com a cara alegre costumeira, mas senti em seu olhar algum tipo de neblina. Ela se sentou no meu sofá verde, sorrindo. Fez todas as perguntas de costume e eu lhe servi um chá. Então, com uma pontada de dor na voz, que ela não pode controlar, ela me contou da novidade de seu amigo. Quis passar alegria, entusiasmo, mas no meu peito pude sentir sua angustia. Não sabia lidar com a dor dela, e quem sabia? Normalmente uma garota gritaria e o ofenderia, e eu apenas ouviria, paciente, ela expor todos os sentimentos ruins que sentia no momento. Mas ela estava sentada dizendo como achava que ele seria um pai maravilhoso, e perguntando como deveriam ser os casamentos na Grécia. De repente lágrimas corriam copiosamente por seu rosto, e ela se desculpava tanto, que era difícil sequer dizer que não havia problema. Tremia. Dizia que não sabia porque estava assim. Talvez estivesse doente, talvez a pressão baixara de novo. Se houvesse alguma forma de aplacar aquela dor ela o faria, mas para as dores que se sente no coração não há remédio. Algumas coisas, mesmo para ela, que era tão forte, tão incomum, eram como para todos os outros mortais. Ela apenas desconhecia. Eu a abracei como uma mãe abraça um filho machucado. Ela ficou desconfortável. Eu me afastei e lhe disse como odiava a Grécia, apesar de nunca ter ido lá. Muitas subidas, tudo muito claro. Ela acenou afirmativamente, enxugando as lágrimas, e dizendo que nunca teve vontade de ir lá. Ali eu percebi que era sua confidência.

Ninguém soube desse nosso encontro. Ela continuava a mesma para todos os nossos amigos, mas, quando ela sorria para mim eu ainda podia ver seu sorriso quebrado. Eu sempre quis que ela se recuperasse disso, mas para ela, nem tudo era como para os outros. É incrível como ela foi marcada por ele, e mesmo se um dia ela viesse a se curar, eu sabia que a cicatriz sempre estaria ali. E, diferente das outras pessoas, não foi por se entregar demais que ela pecou, mas por não se entregar. O que poderia ter sido é o que regeria a vida dela a partir dali, até que ela finalmente conseguisse quebrar seu orgulho e mostrar para alguém quem ela verdadeiramente era. De tanto evitar se machucar ela quase se perdeu completamente.

Depois daquele dia, como era esperado, nunca mais falamos sobre a Grécia novamente.

Danielle Gaspar Alves
Enviado por Danielle Gaspar Alves em 26/03/2017
Código do texto: T5952786
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.