Perfumes e significados

Numa pequena ruela muito movimentada do centro histórico de uma cidade imaginária ficava um estabelecimento comercial que vendia perfumes. As pessoas gostavam de ir lá. Era outro mundo aqui na Terra, assim como é o fundo do mar e mergulhadores entenderão o que estou dizendo. Só que, enquanto no mergulho para voltar bem se deve subir vagarosamente, naquele mundo para imergir com qualidade e ver a mágica acontecer, deve-se ir vagarosamente. A atmosfera é outra e a imersão vai se dando aos poucos: no caminho sinuoso que é estreito e não permite o trânsito de automóveis transforma a ruela de paralelepípedos num calçadão que apresenta vários acessos a outras ruelas igualmente estreitas e também sinuosas, casas e prédios seculares grudados um nos outros guardam arquiteturas medievais. Acredito que a falta de um jardim faz com que uma primavera se manifeste em floreiras abaixo das janelas oferecendo um sorriso colorido na forma de muitas flores. Nas janelas mais altas varais em roldanas cruzam a rua e trazem uma dança de lençóis com o vento em busca do pouco sol que conseguem captar por entre as construções.

Um artista de rua, que tinha aos seus pés um chapéu virado para cima, onde se viam duas ou três moedas, tocava uma sanfona trazendo uma melodia que se misturava ao “zunzunzum” das vozes de pessoas animadas que circulavam pelo lugar.

Um senhor de camisa branca, suspensórios e uma boina italiana empurrava uma geringonça onde uma roda maior de ferro engrenava com outra menor que era na verdade uma pedra circular de amolar. Quando estacionava aquele objeto estranho, um ângulo diferente de um descanso de ferro fazia com que a roda deixasse de encostar o solo e pisando em um pedal que lembrava aquele das máquinas de costura antigas, fazia com que grupo de engrenagens simples fizesse as rodas girarem. Então ele, entre um assopro e outro num apito de sorveteiro, gritava a plenos pulmões: “olha o amolador”. Latidos nervosos de cães vira-latas provavelmente incomodados com o apito pareciam responder ao amolador.

Mais adiante um carrinho trazia o som de um realejo, pequena caixa de música acionada por manivela e que tinha logo abaixo uma gaveta com inúmeros cartões que traziam nas mãos de um macaquinho de colete vermelho e um chapéu que lembrava o da legião francesa, a sorte, o cuidado, a esperança ou a desilusão em pequenos cartões que entregava aos crédulos ou amantes de bizarrices, que liam e riam devolvendo os ao pequeno macaquinho que tornava a guardar na gaveta

Outro ambulante trazia na altura da cintura, presa ao pescoço e na cintura com alças de couro, uma bandeja com diversos doces entre os quais se destacavam cocadas e maçãs do amor.

Um personagem infantil sorrindo, com uma matraca histérica e que trazia dentro de si um rapaz sério e suado disputava a preferência do apetite dos transeuntes.

Assim, enquanto caminhava para a loja, a trilha sonora daquele lugar, que ia se alterando, às vezes bruscamente, às vezes suavemente, e se você prestasse bem atenção àqueles sons, que a princípio não guardavam relação entre si, pareciam ter sido a inspiração de várias sinfonias famosas.

Um menino empurrava um pneu duro e fino com uma pequena vareta de pau, e mostrava sua destreza entre velocidade e desvio dos obstáculos do caminho.

Num canto próximo à entrada de um a loja de chapéus um menino dava brilho aos pés dos que apreciavam o serviço, queriam ajudar ou mesmo ler um jornal do dia que o menino emprestava, colocando o pé numa caixa de engraxate em formato triangular que num dos seus vértices trazia um descanso para os pés e na outra ponta servia banco do engraxate e de estojo para os amigos do brilho: estopas, escovas, flanelas e graxas.

Observando as pessoas e suas vestimentas, parecia que ali era um ponto de encontro do tempo e de tendências onde democraticamente compartilhavam o espaço senhores de chapéu coco e bengala com rapazes de boné, mulheres que pareciam ter saído de um baile de ockoberfest, cruzavam com góticos e os estilos “sem estilo” ou largados, que pareciam querer passar a mensagem de que não se aprisionavam a nenhum tipo de modismo e privavam-se de colocar uma camisa legal por levar uma marca ou logotipo num canto do peito.

Rapazes que andavam em pares, quase carecas a exceção de um rabo de cavalo, vestindo o que pareciam lençóis na cor salmão, ofereciam incenso e filipetas com mensagens a troco de você contribuir com a causa.

E se você prestou atenção ao maior número de detalhes possíveis deste caminho, você já pode se credenciar a ser um cliente daquela loja, a loja de perfumes do senhor Gustav.

Era uma loja famosa por seus perfumes exclusivos e pela boa conversa do senhor Gustav, que era ajudado por sua esposa Eugénie e por sua filha Amparo.

Os perfumes eram artesanais, e sua composição era um segredo que já vinha de outras gerações e novos perfumes criados pela família eram batizados numa assembléia multidisciplinar, onde Eugénie apresentava sugestões pela beleza e sonoridade, Amparo com o auxílio da internet pelo significado dos nomes e finalmente Gustav que tentava relacionar aquele perfume com alguma experiência vivida nos seus 65 anos.

A loja era meio escura. Contribuíam para a claridade, que lembrava um templo onde reina a paz, o balcão e as prateleiras de carvalho, as poucas luminárias em forma de lamparinas, e a vitrine, que apesar de ser de parede inteira, trazia uma pintura que deixava a luz passar parcialmente e nos tons das cores utilizadas na pintura. A pintura que vinha logo abaixo dos dizeres “LOJA DE PERFUMES DO SENHOR GUSTAV” tinha a figura de um homem que enquanto beijava a mão de uma donzela trazia um balão onde ele falava “Que perfume maravilhoso!”. Na claridade daquele ambiente o rosto luminoso de Amparo, filha e ajudante do senhor Gustav contrastava ganhando um destaque especial.

Alguns quilômetros dali, no centro comercial daquela cidade, um jornalista chamado Marcelo Delgado e que escrevia sobre curiosidades da região, corria a internet e jornais buscando idéia para sua nova matéria na coluna semanal do jornal Atalaia que ele assinava com o pseudônimo de Olegário Damião.

Viu uma reportagem pobre sobre a “Loja de perfumes do senhor Gustav”, que se restringia em falar que ele era um lutador contra as grandes empresas do ramo, mas não tinha sequer uma entrevista com o tal “Gustav”. Era mais um panfleto turístico que uma reportagem investigativa que pudesse atrair o interesse dos leitores. Ficou meio chateado consigo mesmo, pois já tinha pensado nesta matéria e deixou-a de lado, postergando sua investigação. Agora, caso fizesse, e sua vontade era grande, já não seria pioneiro e sua versão daquele estabelecimento, por melhor que fosse, traria sempre a pecha de ter sido feita/motivada após ele ter visto a outra, que saiu no jornal rival “Últimas”.

De qualquer forma não se agüentou. Era uma sexta-feira por volta das 10 horas, avisou seu chefe e com um caderno, caneta e um celular que ele usava como gravador e máquina fotográfica, decidiu capturar a essência daquela famosa loja de perfumes.

O caminho e seu olhar curioso já tinham material para as próximas semanas, mas naquele dia ele iria conhecer a tal loja de perfumes.

Ao entrar o som de pequenos sinos, produzidos por pequenos caninhos de metais que ficavam suspensos pelo lado de dentro, na parte de cima da porta anunciaram sua chegada e com um bonito sorriso Amparo deu-lhe as boas vindas:

-Bom dia! Em que posso ajudar? O perfume é para você ou alguém em especial?

-Não, na verdade eu não quero comprar perfume...

-Bom, então acho que o senhor errou de porta, esta é uma loja de perfumes – falou com uma ironia que se fazia meiga junto com seu sorriso.

-Na verdade eu sou repórter e trabalho para o jornal Atalaia e gostaria de fazer uma matéria sobre esta loja.

-Ah você viu a matéria do “Últimas”não é mesmo?

Meio contrariado respondeu:

-Sim, mas eu já tinha pensado antes...

-O jornalista do Últimas também nos disse que há muito tempo pensava em vir conversar...

-Olha, acho que na verdade eu me enganei de porta, acho que já vou indo... - falou virando-se para a porta.

-Olha, se você fosse um perfume eu diria que até é agradável, mas não tem fixação.

Marcelo virou-se de n ovo para a moça e disse em tom desafiador:

- Como é que é?

-Ué você não queria falar com meu pai e num simples comentário já estava desistindo – Amparo falou e virando-se para uma portinha que ficava atrás do balcão e que dava acesso a outro cômodo gritou – Paaai, tem um moço que quer falar com o senhor.

Marcelo percebeu que não tinha começado bem aquela relação com a investigação da história e da alma daquela loja, pois que, para ser bem feita, deveria ter uma sintonia e não foi bem o que aconteceu naquela primeira conversa com Amparo. Se ao menos ele soubesse que aquela moça era filha do dono poderia ter sido mais simpático e condescendente e já com ela ter buscado informações/subsídios para sua matéria.

Pois não. - disse um senhor barbudo e com sobrancelhas grossas, mas que apesar do visual que tinha tudo para ser sisudo, exibia uma aparência agradável que parecia trazer um sorriso escondido.

-O senhor é o senhor Gustav?

-Bidu.

Marcelo não gostou da resposta, mas tentou não deixar transparecer e após um sorriso onde tentou tirar o amarelo disse:

-Bom eu sou Marcelo Delgado, escrevo a coluna “Do que eu vi por aí” do jornal Atalaia e vi a matéria sobre a loja no “Últimas” e pensei que ela foi muito superficial e que o senhor e a loja tem muito a mais para oferecer às pessoas.

-O senhor já conhece minha loja senhor Marcelo?

-Não, mas teria imenso prazer em conhecer, e gostaria de contar com a sua ajuda senhor Gustav.

-Então enquanto eu atendo cinco clientes você pensa em três perguntas e caso eu considere que alguma ou algumas delas fazem sentido eu te dou direito a mais uma pergunta e se esta fizer sentido de dou direito a outra e assim por diante, o que você acha?

Marcelo não entendeu bem o objetivo daquele jogo, mas como era um caminho para sua matéria pensou em elaborar perguntas que merecessem a admiração do senhor Gustav.

-Ok. Posso ficar aqui neste corredor?

-Fique aonde quiser - respondeu Gustav. Eugénie, sempre atenta a tudo, estava no balcão e ouviu a conversa e ofereceu um banco para Marcelo que agradeceu e sentou observando a loja enquanto aguardava os clientes. O som dos sinos e a recepção de Amparo de lhe deram uma sensação de déjà vu:

-Bom dia! Em que posso ajudar? O perfume é para você ou alguém em especial?

-Oh minha querida Amparo o perfume é para mim, mas quero que uma pessoa em especial goste dele. Adorei sua última sugestão. A pessoa amou o perfume. Já vou deixar outro daquele encomendado.

-Ok seu Adão, e que imagem o senhor quer passar para a pessoa?

Meio envergonhado seu Adão falou meio que sussurrando:

-A imagem de um homem viril, quente.

-Uau, o senhor não está para brincadeiras não é mesmo seu Adão. Tenho uma colônia amadeirada que o senhor vai poder borrifar no corpo inteiro e que deixará sua escolhida louca de paixão. Venha comigo vou te mostrar. E levou o senhor Adão para um canto do balcão. Enquanto ele a esperava, ela subia numa escada para pegar numa prateleira alta um perfume vermelho num frasco que lembrava a Torre Eiffel ou outro obelisco e também poderia remeter a idéia de algo, digamos assim, mais “caliente”, como queria o senhor Adão, ainda mais pelo detalhe da tampa ser em baixo e o borrifador ser formado por uma bola vermelha de borracha. Ela desceu com a colônia borrifou no pulso do senhor Adão e perguntou:

-E aí? Gostou - Empurrando o frasco para que o senhor Adão o segurasse.

O senhor Adão segurou a colônia meio sem graça e disse para Amparo:

-Quem tem que gostar é outra pessoa.

-Fique tranqüilo, ela vai amar.

-Então embrulha para mim, ah quanto custa?

- O preço você já sabe, tem que acertar com o senhor Gustav.

-Obrigado querida - despediu-se o senhor Adão dirigindo-se para Gustav. Lá Marcelo viu outra conversa curiosa:

-Oi seu Gustav quero pagar esta colônia

-E quanto o senhor acha que custa?

- Uns $150,00?

-Quanto o senhor tem?

-Para gastar com perfume? Ou na carteira?

-Para gastar com perfume

-$150,00

-E não é que o senhor acertou, ele custa $ 150,00.

-Puxa que beleza. Tome aqui. Muito obrigado.

-Eu que agradeço seu Adão. Volte sempre.

Só naquele cliente Marcelo já tinha algumas perguntas pululando na sua cabeça:

Os perfumes tinham algum poder mágico?

Sugestionar os clientes fazia parte do negócio?

Os perfumes não tinham preço definido?

Nisto entrou um jovem muito ansioso e antes que Amparo fizesse sua saudação foi dizendo

-Olha estou com pressa, tenho um aniversário, estou atrasado e quero dar um perfume que seja barato, para uma pessoa especial.

-O que é barato para você?

-Como assim “para mim”. Você não sabe?

-Sei o que é um perfume barato e aqui não vendemos nenhum assim, são todos artesanais e feitos com carinho. Agora se o conceito de barato for para preço não sei dizer, pois o que posso considerar barato para um perfume da nossa loja você pode considerar caro.

-Até $30

-Nossos menores frascos têm 30 ml e custam a partir de $50

O rapaz estava quase desistindo, mas olhou para o relógio, que tirano não lhe dava mais tempo para procurar presentes:

-Ok, me veja um destes então.

-Esta pessoa é homem ou mulher – Marcelo que ouvia a conversa ficou irritado com Amparo pela pergunta que lhe pareceu idiota e já esperava pela grosseria do rapaz:

-É um homem.

-E sua relação com ele é de um amor fraternal ou algo mais quente?

-Algo mais quente.

-Você está com sorte, por acaso temos uma colônia que está em promoção - Subiu a escada novamente e lhe entregou a mesma colônia que tinha sido vendida para o senhor Adão por $150. Pegou ela mesma o dinheiro e embrulhou caprichosamente num papel dourado com uma fita vermelha. O rapaz agradeceu e pediu desculpas por ter sido tão rude e foi embora. Marcelo que viu a cena não pôde acreditar. Seria Amparo algum tipo de cartomante? Porque para este cliente tinha feito um preço diferente e porque para este ela mesmo recebeu o valor enquanto para o outro ela direcionou para Gustav?

Entraram em seguida três mulheres que foram sendo atendidas por Amparo, Eugénie e Gustav.

Marcelo observava e percebia que as perguntas se repetiam. Para quem era o perfume como era a pessoa do que ela gostava, quais eram suas preferências. Ficou atento aos preços e dona Eugenia e Amparo encaminharam para o seu Gustav que era o responsável pela precificação. Cobrou $120 por cada perfume e as três saíram satisfeitas. Então Marcelo se chegou a Gustav dizendo:

-Já tenho várias perguntas.

-É meu rapaz, mas você fará só três e eu vou responder, mas se eu considerar que alguma delas faz sentido e que você não teria a resposta de dou direito a outra e assim por diante até quando você quiser ou quando deixar de fazer perguntas que tenham a força motivadora para minhas respostas.

-Porque deram preços diferentes para o mesmo perfume.

-Nossa política de preços inclui no cálculo, o valor que as pessoas julgam que ele tem e o quanto elas podem pagar. Posso fazer quase de graça um perfume bem caro dependendo do cliente. Você vende sua coluna para o jornal, mas deve lê-la de graça para alguém antes mesmo da publicação. Estou certo ou não? Marcelo esta pergunta não está te dando o direito a outra pergunta. Pense melhor na próxima.

-Como Amparo sabia que aquele rapaz que chegou todo apressado era gay e que o perfume era para seu namorado?

-Sensibilidade. E você acaba de perder sua 2ª chance. Veremos se sua 3ª pergunta te dará direito à próxima.

Marcelo achou meio injusto, mas ficou preocupado em acabar precocemente aquela entrevista. De qualquer forma arriscou:

- Qual é mais poderoso o perfume ou a sugestão?

-Esta é boa e você acaba de ganhar o direito a mais uma. Mas olha Marcelo um perfume não é só sua essência. É muito mais. O frasco, o seu nome, o que ele sugere fazem parte de sua composição. Se a sugestão for poderosa é porque o perfume é poderoso será que você está me entendendo?

-Mais ou menos.

-Bom Marcelo a sua próxima pergunta fica para depois do almoço. Meio dia nós fechamos e abrimos novamente às 14:00. Eu e Eugénie vamos aproveitar que temos uma consulta no centro e vamos fazer umas compras. Estou precisando de algumas matérias primas para nossos perfumes.

-Mas nesta hora é que deveriam ficar abertos é quando as pessoas, assim como o senhor, aproveitam para compras por exemplo.

-Eu vou porque sei que está aberta. Se soubesse que estaria fechada eu não deixaria de ir só iria em outro horário. A opção de abrir ou não deve ser do dono da loja ou você pensa diferente?

-Mas vocês são três, a Amparo não poderia ficar cuidando da loja?

-E por acaso ela também não almoça?

-Marcelo se você quiser pode vir almoçar comigo, conheço um restaurante de comida caseira que é uma delícia. - convidou Amparo. Entre envergonhado e surpreso Marcelo respondeu.

-Nossa! Seria uma honra.

Andaram um pouco pelas ruelas onde Marcelo pode observar que outros comerciantes também estavam fechando seus estabelecimentos para o almoço. Pensou “este lugar é outro mundo mesmo”.

-E você gosta daqui? Disse Amparo. Marcelo levou um susto. Ele tinha a certeza de que só tinha pensado, mas parece que a pergunta de Amparo dizia que ela tinha ouvido.

-Como?

-Você parece até que é um estrangeiro? Está gostando do nosso “país”? – Amparo riu

-Você é muito perspicaz Amparo, por acaso você tem algum poder extra-sensorial?

-Você é engraçado, mas muito obrigado pelo “perspicaz”. Olha já estamos chegando. – Amparo apontou uma porta onde numa placa podia se ler “Cozinha da Vovó Isaura”. Entraram e conseguiram uma mesa próxima da janela. Logo um garçom chegou e saudou.

-Boa tarde. Oi amparo, trouxe um amigo. Sejam bem vindos. Olha o cardápio. Quando decidirem é só me chamar.

-Leo, eu vou querer o do dia. E para beber uma jarra pequena de vinho tinto.

-E para o senhor? Perguntou o garçom para Marcelo, que olhando com um sinal de interrogação para Amparo a ouviu perguntar:

-Você gosta de peixe? O “do dia” na sexta é sempre filé de peixe à milanesa.

-Acompanham arroz, refogado de quiabo, batatas cozidas, saladas de alface e tomate.- completou o garçom.

-Ok. Eu também vou querer o do dia. E para beber...

-A jarra pequena que eu pedi dá para duas pessoas... – avisou Amparo

-Ok ,então é só isto, obrigado.

-Pois não, só um momento – e o garçom dirigiu-se para a cozinha. Trouxe a jarra colocou um pouco de vinho nas taças em seguida, pediu mais um pouco de paciência e dirigiu-se a outras mesas para atender.

-Você sempre vem aqui?

-Não, normalmente almoçamos em casa, mas eventualmente venho aqui. Gosto da comida e das pessoas.

- Como você sabia que aquele rapaz procurava um presente para o namorado?

-Eu o reconheci. Outro dia o vi na rua caminhando de mão dadas com outro rapaz.

-Sensibilidade? Sei... E eu me achando um bobo. Assim até eu.

- Até você o que? Saberia o que oferecer ou o que perguntar?

-Desculpe, não sei se saberia...

-Ah bom! Então eu tive uma certa sensibilidade, você não acha?

-Teve.

- Como é mesmo o nome da sua coluna?

-O que eu vi por aí.

-Eu conheço esta coluna, mas quem escreve é um tal de Vigário qualquer coisa

-Olegário Damião. E sou eu. É um pseudônimo.

-E porque um pseudônimo?

- Não sei bem ao certo, talvez para ter mais liberdade para expressar os pensamentos.

-O Marcelo Delgado não tem?

-Não sei, não é bem, isto, talvez o nome chame mais atenção.

-Olha não sei quanto a jornalistas, acho que sou melhor com nomes de perfumes, mas considero que Marcelo Delgado é melhor que Olegário Damião. Chamar atenção com este nome?

-Olegário, significa forte, poderoso e Damião significa domador.

-Minha mãe desaprovaria pela sonoridade. Eu... bem... deixa-me ver- Amparo correu o celular e foi soltando: Olegário - “lança que defende seus bens”; Damião - “consagrado ao culto de Damia” – não sei bem se é um nome próprio para um colunista de variedades.

-De onde você tirou esta idiotice. – Falou rindo Marcelo.

-Do mesmo lugar que você. Da internet - respondeu sorrindo Amparo.

-Ah é? E como você escolhe o nome de um perfume?

-Não escolho sozinha. Eu, minha mãe e meu pai escolhemos. Mas, como você, procuro o significado do nome.

-De um exemplo

- Merveilleux

-Isto é um perfume?

-Significa Maravilha, tem cor maravilha e odor de rosas. E aí o que você acha?

-Bacana, mas poderia se chamar Maravilha...

-E o glamour? Onde fica? Falou Amparo levantando a taça de vinho e chamando Marcelo para um brinde.

-Ao glamour!

-Ao significado.

O garçom chegou com um carrinho onde trouxe os pratos e os acompanhamentos e foi colocando na mesa. Despediu-se desejando bom apetite.

-Ao peixe! Falou sorrindo Marcelo.

-À fome - retornou alegre Amparo.

Enquanto almoçavam, a conversa corria solta e procuraram falar de assuntos diversos à loja ou a coluna. Prendiam-se em conhecer um ao outro um pouco mais. Mas invariavelmente o assunto voltava.

-Do que você gosta?

-Você vai me indicar algum perfume?

-Seria uma idéia, mas até para isto eu teria que saber quais são suas preferências.

-Morena, olhos verdes, cabelos lisos, que usasse uma medalhinha de .... qual mesmo é esta medalhinha que você carrega no pescoço?

-Engraçadinho. Bom humor me remete a aromas mais cítricos, mas ainda é pouca informação.

-Ok, eu gosto de ler poesias, gosto de viajar, gosto de caminhar na montanha, gosto de dormir...que mais...

-Então você é um romântico, poderia ser um perfume mais doce, suave.

-E se eu detestar?

-Pouco provável, mas se for o caso te apresento outro, mas antes tento descobrir o que não te agradou...

-Perfumaria é uma ciência...

-Você que está dizendo...

-Você costuma comparar as pessoas com perfumes como você fez comigo na loja?

-Não, foi só uma maneira de colocar uma pulga atrás da sua orelha. Eu sabia que você ficaria contrariado e que continuaria a conversa. Deu certo não deu?

-E se eu fosse embora?

-Você confirmaria o que eu disse e sua vaidade não quis deixar. Você não que ser considerado um perfume barato. Você queria provar que era um autêntico fora de série.

-E consegui.

-Não. Mas temos alguns perfumes que vamos mudando com o tempo e nossos clientes não percebem ou se percebem só elogiam, pois toda e qualquer mudança que fazemos só visa o aprimoramento. Senão, não há motivos para mudar, o perfume se perpetua com a mesma fórmula.

-Então no seu conceito eu precisaria de algumas mudanças...

-Bom, já começaria pelo rótulo. Eu iria abolir Olegário Damião.

-E você sabe o que significa Marcelo Delgado?

- Não me faça pesquisar. Vamos lá me diga.

-“Marcelo – pequeno guerreiro”, “Delgado – fino” - -Viu, não vá começar a rir...

Amparo abriu um sorriso.

-Então justificando o meu nome irei em seu socorro.

-Como assim Amparo? Você vem em meu amparo? Como?

-Simples, fazendo você ver que tudo pode ter importância e significado, mas no final é você que decide ao que vai dar importância e significado.

-Explique.

-Pequeno e guerreiro parece que não combinam né? Mas tem uma história de um certo guerreiro franzino chamado Davi que com sua funda derrotou o poderoso Golias. Conhece esta? Assim a qualidade de guerreiro tem mais importância vinda de um pequeno, já que como guerreiro presume-se corajoso, que não seria uma qualidade natural de um pequeno. Delgado pode ser fino, mas encontro também como sinônimo de esbelto. No final das contas você deve dar significado para o seu nome e não o contrário. Eu entenderia Marcelo Delgado como Esbelto guerreiro para lutas gigantes. O que você acha?

-E se minha essência for pequeno e fino...

-Você que determina sua essência. Lembra quando meu pai falou que tudo fazia parte do perfume. Se você se sugestiona pequeno eu nem consigo te ver...

-Amparo, se você fosse um perfume seria o meu preferido.

Amparo sorriu meio encabulada.

-Teria que ter um tom meio avermelhado disse Marcelo – enquanto passava os dedos suavemente no rosto corado de Amparo.

-Acho que afinal, você talvez tenha jeito para perfumaria

E riram juntos... Terminaram o almoço e retornaram caminhando sem pressa. De longe avistaram o seu Gustav abrindo a loja. Ele olhou para os dois e percebeu um clima “diferente”.

Quando chegaram Gustav chamou Marcelo de lado e Amparo ficou curiosa, mas Eugénie, que era atenta a tudo chamou Amparo para ajudá-la num afazer qualquer.

-Sabe Marcelo, eu fiquei reparando em você. No seu jeito, nos seus movimentos, nas suas perguntas no jeito que você me olha quando conversa comigo e considero você um bom rapaz.

-Muito obrigado seu Gustav. Respondeu Marcelo já meio ressabiado.

-Sabe a sensibilidade que eu disse que a Amparo tem?

-Sei...

-Pois bem é hereditária. Ela pegou de mim, só que ela ainda tem que viver muito para enriquecer a sensibilidade dela. Eu com meus 65 anos tenho bem mais que ela com 25. Quantos anos você tem mesmo Marcelo?

-28

-Você sabe o que significa Amparo?

-Como assim ? O Nome ? Cuidado? Socorro?

- Não o nome, a pessoa.

-Não sei...

-Pois fique sabendo que significa um presente de Deus para mim e minha esposa que não esperava mais ficar grávida, tentamos por muito tempo inclusive com médicos especialistas e quando já tínhamos desistido Amparo veio encher nossas vidas de alegria. Amparo é uma moça frágil que sempre foi tratada com muito amor e que não merece ser iludida por ninguém.

-Como assim seu Gustav?

-Filho eu vi como vocês se olhavam. Volte para o seu serviço e esfrie a cabeça, pense muito bem no que eu te falei e se quiser pode voltar aqui para falar comigo. – Marcelo ficou meio que sem ter o que dizer e um pouco assustado com a percepção e a forma direta do seu Gustav.

Na semana seguinte saiu uma matéria na coluna “Do que eu vi por aí” – assinada por um tal de Marcelo Delgado que se intitulava “Como acertar no perfume” e trazia a história da loja e uma declaração de amor para Amparo onde ele revelava que não tinha conseguido dormir uma única noite tranqüilo sem que seus pensamentos se voltassem para aquele anjo em forma de mulher.

Marcelo retornou para aquela loja. Na mão um buque de rosas e no coração uma certeza: nunca mais iria conseguir esfriar a cabeça longe de Amparo. Os sinos tocaram e Marcelo foi dizendo para Amparo

-Bom dia! Sim, você pode me ajudar! Quero o seu perfume comigo pelo resto dos meus dias! Só com você minha vida tem significado.

Um beijo apaixonado encerra ou começa esta história de amor.