A ÚLTIMA NOITE
Simão esperou que as pessoas abandonassem a capela, despedindo-se delas até ao dia seguinte e quando constatou estar sozinho com o sacristão, responsável pelo velho anexo onde se realizavam os velórios, falou com ele de forma algo nervosa e tímida, meteu-lhe duas notas de vinte euros na mão e recebeu a chave do edifício, com a promessa de que, após passar a noite, a última noite com o seu amor, abriria a porta logo pela manhã, antes das nove horas.
Olhou a mulher, que ali jazia sem vida, com o mesmo olhar apaixonado de sempre e mais uma vez grossas lágrimas rolaram pelas faces, queimando-as…
«Estamos sós, meu amor… Tenho ainda algum tempo para recordar contigo tudo o que de incrivelmente bom passámos, os incontáveis momentos em que nossas vidas estiveram sempre juntas, no paraíso por nós criado, em que o carinho mútuo nos manteve unidos e dependentes…
Desde o instante em que nos conhecemos, logo se estabeleceu uma química incontornável, maravilhosa.
Tantas palavras de amor trocámos, tantas carícias inebriantes, totalmente correspondidas, foram dadas…Vivíamos muito felizes pois sempre nos demos bem, sempre nos identificámos, bastava um simples olhar que logo nos entendíamos, sabíamos aquilo que cada um pretendia.
Agora que vais partir, esta última noite culmina dias e dias em que as lágrimas quase se esgotaram, os olhos inchados e a pele arrepanhada, marcas do desgosto que nunca me abandonará…
O teu sofrimento foi o meu, podes crer… Levas contigo muito de mim, sempre estiveste e estarás tatuada no meu coração, “vives” no meu sangue…
Foste sempre a minha última visão ao deitar e a primeira ao levantar… E que bela e encantadora visão, meu Deus…
Acaricio pela última vez o teu lindo e sublime rosto, feições de rainha, a minha rainha.
Agora meus dedos afloram de novo as tuas faces, as tuas pálpebras para sempre fechadas, e o esplendor desta vez marmóreo e gelado, aperta-me o coração.
Como viver sem ti? Somente na tua saudade, uma dor imensurável, a perda que não tem solução…
Toco-te as mãos frias com suavidade, sem vida. Ah, se pudesse dar-te a minha, trocar a esta triste existência pela tua maravilhosa essência, a importância que tens para tudo e todos é incomparável e restarias viva.
Estou cansado, exausto pela tortura que me assalta…
Ficarás para sempre comigo, meu amor…»
De manhã, o sacristão estranhou a porta fechada e foi buscar a chave mestra. Depois, desconfiando de algo grave, chamou alguns fiéis que se encontravam em oração na sala principal da igreja e então, respirando fundo, abriu a velha fechadura e entrou.
Simão estava meio sentado numa cadeira, de lado em relação ao esquife, o rosto encostado à madeira do caixão. Os seus braços envolviam tanto quanto podiam o esquife e a mão direita estava pousada junto da face da defunta.
O sacristão pegou-lhe no pulso, depois chegou-se mais à cara do outro e constatou que Simão não tinha pulso nem respirava. Tinha falecido junto da amada, como que tentando segurá-la, evitando que partisse para sempre.
Alguns dos presentes abafaram a emoção do momento perante aquele quadro tão impactante.
Dias depois, fruto da iniciativa de vários vizinhos e amigos, para além da influência do presidente da Junta de Freguesia, Simão foi enterrado ao lado da amada. Ficariam perto do outro para sempre e suas almas, no etéreo, continuariam um interminável romance.