Contemplou  enormes prateleiras que guardam a beleza das taças de cristal bordadas em ouro. Mas a vigília de seus sonhos foi interrompida por insistente chamada telefônica. Do outro lado da linha, a voz suave de um interlocutor não lhe permitia falar.
— Não nos encontraremos mais no primeiro vagão, naquele horário da manhã — respirou  fundo e disse pausadamente — logo mais estarei na Confeitaria. Precisamos conversar pessoalmente.
— Não pode ser por telefone?
— O indizívdel só é compreendido na sintonia do olhar, do olho no olho, do aperto de mão, do abraço afetivo e  quando a química do corpo entra em efervescência, une almas  e se mistura, e se condensa, e se dissolve, e cai como uma chuva no coração.
— Romântico, mas não muito claro. Parece que ouço a voz nascida no delírio do estro poético de um profeta.
— Nem poeta, nem profeta. Só quis por um pouco de fermento na massa.
— Padeiro, cuide apenas do pão!
Os dois riram.
— Vejo-te logo mais.
Mil e um pensamentos passaram em sua mente. “Será que vale a pena? Pode não dar em nada esse encontro. Talvez sim, talvez não, quem sabe!”
 As palavras de Vanini ainda ressoavam na memória de Fernão: “Vá de táxi”, dizia quando notava que o marido não tomara o comprimido na noite anterior, porque os sinais de abstinência eram visíveis: mostrava-se irritadiço, não queria comer ou comia demais. Dormia tarde e acordava muito tarde e se dizia perturbado, muito perturbado com a voz da sogra a ecoar em seus ouvidos: ‘Louco, você é um louco!...Deixe minha filha em paz...’ Ele não podia ser contrariado. Aquilo que lhe era negado insistia até conseguir. Mas, não era momento de pensar naquelas coisas. Tinha horário marcado na confeitaria com a moça da loja de informática. Obsessão! Talvez àquela hora sua mulher estivesse nos braços de Hemor. Seria mais prudente então, empreender uma nova conquista, que disputar o amor de Vanini com o aviador.
Foi o primeiro encontro...
Despediu-se com um ingênuo beijo no rosto. Ela retribuiu com outro um pouco mais ousado. Fernão dissimulou. Tentou mostrar-se emocionado, mas não sabia se estava fortemente afetado pelo efeito da dose dupla de fumarato que tomara, ou enciumado com as imagens que fazia de  sua mulher nos braços de  Hemor. Fitou Ravenala  demoradamente. A moça  tinha sorriso  doce e sobre os cabelos negros, uma rosa vermelha guardava harmonia com as vestes. Ele via nela o rosto de Vanini. Não sabia muito sobre  Ravenala, nem mesmo que figurava nos registros da memória dela um casamento que não  aconteceu.
Foi cauteloso, jamais fizera convite direto para ela conhecer o apartamento dele, e os encontros na confeitaria, bares e restaurantes tornaram-se mais frequentes.

Naquele dia, parou defronte ao prédio em que morava e disse: “Volto logo, só vou pegar um chaveiro de memória... Se não se incomodar com a bagunça, suba! Deves imaginar o que é um homem sozinho em casa.” Ravenala subiu mais pela curiosidade de saber como é um “homem sozinho em casa”.
O apartamento estava em total desordem: copos na pia, panelas sujas sobre o fogão e roupas jogadas no sofá. Mas, sem demora, Fernão desconectou o pen drive de seu computar e  enfiou-o no bolso. ‘Se quiseres, já podemos ir, ou vais ficar para lavar a louça?’  Disse com ar de riso, estendendo-lhe a mão. Abriu a porta e saíram devagar. Na escadaria, deu  um beijo no rosto dela, que  parecia mais uma caricia de pai, um amor diferente, um amor que inspira confiança.

O Notebook estava no carro, seria aquele para o qual comprara uma placa-mãe? Ravenala  não entendeu por que Fernão chamou o pen drive de chaveiro. Segurou a curiosidade, nada perguntou. Talvez ele não quisesse interferir na área profissional dela. Andaram pouco, sem qualquer direção, praticamente calados, até que o rapaz irrompeu o silêncio:
—Posso levá-la em casa? Tenho um trabalho a fazer no escritório, com certa urgência!
— Pode sim, pode sim...
Agora Ravenala tinha um homem para chamar de seu... 
***
Adalberto Lima, trecho de Estrada sem fim...