980-CABELOS-DE-MEL
Ao abraçar a criaturinha vermelha, a mãe sentiu que a filhinha era diferente em tudo dos outros quatro filhos que a antecederam.A penugem dourada que cobria sua cabecinha fez a mãe esquecer as dores terríveis do parto feito na fazenda.
Foi batizada Doriana: palavra criada pela própria mãe, que quis fazer alusão, nas três primeiras letras, às dores que sentira ao dar à luz e na parte final uma homenagem a Santa Ana, de quem era devota. (Devo esclarecer, como fiel narrador da história, que o nome dado foi há muitos anos antes de aparecer nas prateleiras dos mercados a margarina de marca homônima).
Cresceu na fazenda do pai. O nome foi substituído pelo apelido dado pelas tias: passou a ser Cabelos-de-Mel, tal a intensidade e o brilho cor de mel de suas madeixas. Tornou-se linda moça e não havia homem (jovens e até homens casados) que não ansiasse por um olhar ou sorriso seu.
Os cabelos jamais foram cortados. Cresceram de forma inusitada e formavam, quando soltos, uma verdadeira cascata de brilho dourado, como se um regato de mel descesse de sua cabeça em ondas suaves. A beleza da jovem, acrescida do brilho dos cabelos, transformou-a em autêntica lenda. O pai, receoso de expô-la aos olhares dos homens da cidade, a mantinha nos limites da fazenda. Providenciou professoras e preceptoras que lhe proporcionaram educação, ensinaram-lhe trabalhos manuais e educação para o lar, com aulas de canto, pintura e tudo o mais necessário para que a moça fosse tão culta e educada como as que moravam na cidade e freqüentavam os melhores colégios.
Seu casamento foi negociado com o pai de outro fazendeiro, grande latifundiário, dono de centenas de alqueires de terras, cortadas pelo Rio Paçoquinha. O filho, Clodovil, futuro marido de Cabelos-de-Mel. era um estróina, boa vida, beberrão e de índole violenta.
A cerimônia do casamento foi uma festa nunca vista por aquelas bandas. Mas o noivo, agora marido, não quis saber de viagem de lua-de-mel. Na tarde mesma da cerimônia, os convidados ainda festejando a união, os noivos deixaram a fazenda do pai de Cabelos-de-Mel e foram para a propriedade do pai de Clodovil.
Além de todos os defeitos e vícios já citados, o marido revelou-se um homem ciumento, muito ciumento. Tinha um ciúme doentio da jovem esposa. Não passou muito tempo e a cidade já tivera notícia de que Clodovil mantinha Cabelos-de-Mel presa numa alta torre, que fizera construir junto à casa grande do pai. Contavam que a jovem esposa de cabelos dourados vivia no alto da torre, servida apenas por uma empregada de confiança do marido, que era, ao mesmo tempo, uma vigia constante das atividades da patroa.
Os anos passaram. Cabelos-de-Mel era uma mulher alegre. Gostava de cantar e tinha voz maviosa. Por isso, transformou sua prisão numa câmara de música. Já sabia muitas canções sertanejas antes de se casar, que cantava constantemente. A empregada lhe ensinou outras, mais modernas, que estavam sendo cantadas nos rádios e até na televisão. A jovem não tinha rádio nem TV. Mesmo assim executava com maestria as canções que a criada lhe ensinava.
As tardes indolentes daquele recanto no fim do mundo eram enriquecidas pelas melodias ora alegres, ora plangentes, das canções de Cabelos-de-Mel.
Josiel e Samuel faziam sucesso com suas canções sertanejas. Percorriam o país de norte a sul em excursões de sucesso. Por isso, mereciam aquelas férias que estavam se dando, na fazenda do Major Alvarado, tio de ambos. Esquecidos do mundo, passavam as tardes em modorras e pescarias à sombra de gigantescas imbaúbas à beira do rio Paçoquinha.
Numa tarde preguiçosa, na qual nem os peixes saíam de suas tocas para mordiscar as iscas, Josiel pegou a canoa e deixou-se levar rio abaixo. Tendo distanciado algumas léguas da fazenda do tio, ouviu ao longe uma melodia cantada por voz cristalina e enternecedora.
— Que voz maravilhosa! — Pensou. — De onde virá? Vou descobrir quem é essa cantora.
Encostou a canoa sob moitas de chorões que se debruçavam sobre a margem do rio, amarrando-a com firmeza. Sabedor que estava em terras de estranho, caminhou escondido por entre os arbustos, na direção da voz argentina. Até que se aproximou da sede da fazenda com a elevada torre, de onde se originava a melodia. Ao dar a volta para melhor observar a estranha construção, viu um brilho intenso, como uma cascata dourada, que descia da janela superior e quase tocava o chão. Caminhou disfarçado e fascinado, só notando que a cascata de ouro era os longos cabelos de uma mulher que cantava do alto da torre.
Mais intrigado, deixou-se mostrar e acenou para a linda moça. O canto cessou quando ela o viu. Ele quis gritar-lhe, mas ela acenou-lhe com gestos desesperados, impondo silêncio, pedindo que se mantivesse oculto. Imediatamente, ele se abrigou sob frondoso e gigantesco abacateiro, cuja altura ultrapassava a da torre. Ágil no pensar e agir, lepidamente galgou os galhos da árvore e, em poucos momentos, estava à altura da janela na qual se debruçava a linda cantora de cabelos dourados.
Não foram precisos muitos sinais para o moço entender o que ela desejava, pois sem demora ela lançou, pela janela, uma rústica corda feita de lençóis amarrados, que chegou até o galho onde ele se encontrava. Como um Tarzan, ele apanhou a ponta do pano e se lançou, num salto ágil e preciso, na direção da janela.
— Eu sabia que um dia alguém iria me ouvir. — A moça exclamou, abraçando o rapaz, envolvendo-o com seus cabelos.
— Mas...Quem é você? Por que está tão feliz com minha chegada?
Em poucas palavras, a mulher explicou a situação de prisioneira do marido e a sua infeliz vida.
— Então, vou tirá-la deste cativeiro. — E sem mais palavras, tomou a mão da moça, levando-a em direção à janela. — Tenho um bote amarrado na margem do rio, perto daqui.
— Espere...— ela titubeou. —
— Esperar o quê?
— Espere anoitecer. Quando todos estiverem dormindo, será menos arriscado.
— Mas, e seu marido?
— Ele não está na fazenda. Vive mais tempo na cidade, com as mulheres da zona. É um canalha.
Entretanto, não foi bem como ela dizia. Naquela noite, bêbado, sujo e desgrenhado, foi com dificuldade que Clodovil galgou as centenas de degraus que levavam ao quarto da jovem mulher. O bruto chegou botando fogo pelas ventas, ameaçando meio mundo e botando bronca. Antes de qualquer coisa, ordena à empregada:
— Suma daqui,desgraçada. Tenho um particular a tratar com a patroa.
Ouvindo o tropel e o barulho do homem, Cabelos-de-Mel ordenou:
— Esconda-se no armário de roupas. Rápido.
Foi o tempo preciso de Josiel afundar-se por entre camisolas, vestidos e combinações.
— Quero saber quem está aqui. Pensa que não vi a canoa amarrada debaixo das árvores?
E slapt, slapt, foi descendo o chicote na mulher.
Josiel a tudo assistia pelas frestas das portas do imenso armário. Não se conteve quando o bandido começou a chicotear a mulher. Saiu do armário e num impulso atingiu o vilão com poderoso murro no queixo. Mas este nem se abalou. Sem titubear, avançou para o rapaz, que correu na direção da janela. Ao ver a silhueta enquadrada no vão da janela, o vilão se atira, num vôo, procurando atingi-lo com as mãos em forma de garras. Mas o ágil visitante tira o corpo no momento exato e só vê, com o canto do olho esquerdo, quando a figura do marido passa pela janela, prolongando o vôo para fora do quarto, abrindo os braços como um urubu pairando momentaneamente e depois caindo pesadamente no solo, a mais de trinta metros abaixo.
Não deu um gemido, não exalou um suspiro audível. Caiu de borco e lá permaneceu imóvel.
Rapidamente, Josiel lança o lençol pela janela e desce. Agacha-se para verificar o estado do homem deitado no chão. Cabelos-de-Mel já está ao seu lado quando se levanta e diz:
— Está morto. Agora, temos de fugir bem depressa.
Puxando-a pela mão, corre na direção do rio. Ela também é ágil, sobe na canoa e pega um dos remos enquanto ele desamarra o barco.
Remam, rio acima, durante um tempo que parece uma eternidade. Esfalfam-se, mas não desanimam. Só de madrugada avistam a fazenda do Tio Alvarado.
As explicações foram muitas e o dia já estava claro quando as decisões foram tomadas.
— Ninguém notou o entrevero na torre. Só irão descobrir o homem morto quando os urubus descerem, com o fedor da carniça. — Josiel disse.
— Vamos deixar hoje mesmo sua fazenda, tio. — Josiel e Samuel estavam de acordo. — Logo de manhãzinha. Ela vai conosco. Assim, nenhuma responsabilidade poderá ser imputada ao senhor.
Saíram cedo. Cabelos-de-Mel teve de ocultar sua cabeleira debaixo de longa capa.
Os três partiram de jipe e sumiram da região. Ninguém soube do desaparecimento da mulher de cabelos dourados nem da morte de Clodovil. Um silêncio denso desceu sobre o acontecido.
Passados alguns meses, a dupla de cantores sertanejos reaparecia nos shows, rodeios e festas populares. Aliás, já não era mais uma dupla, e sim um harmonioso trio de musica rural, conhecido como JOSIEL, SAMUEL E CABELOS-DE-MEL.
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ANTÔNIO GOBBO – Belo Horizonte, 20-agosto-2006