PROFANO AMOR *

Balançou a cabeça devagar, como se memorizasse algo, um sorriso distante de satisfação nos lábios entre abertos, parecia voar como aquela pomba que teimava em ficar na soleira da janela, indo e vindo. Assim estavam seus pensamentos, voando longe e retornando, para, em seguida, como se não quisesse voltar, à sua revelia, ir além... E o destino daqueles pensamentos tinham endereço certo, embora não quisesse admitir, distraísse em ocupações outras para deles se desembaraçar, em vão... Tal qual aquela ave, retornava, incomodando, assustando, era um querer não consentido, um desejar não pretendido, um gostar arrependido de querer, de se lembrar... Solteiro por convicção, não se via amarrado a ninguém por muito tempo, buscava suas distrações em garotas de programas, diversificadas, e que não o entediavam, sem estabelecer compromissos. Tivera namoradas, poucas, mas as ligações duradouras pareciam asfixiá-lo, caíam na monotonia, e logo rompia seus laços. Não se recordava de ter sofrido por nenhuma, embora deixassem, cada qual, suas lembranças. Optara, então, pela sua liberdade de viver a vida, sem se sentir acorrentado. Acostumara-se com a sua deliberada reclusão, por vezes compartilhada, sem dar chances de se criar vínculos que o prendesse. Agora, contudo, via-se de cabeça para baixo, apaixonado, e negando-se a si mesmo, por alguém que o atendia entre um cliente e outro.

Os arrebóis daquela tarde quente anunciavam seus belos desenhos no horizonte de um dia que se despedia, e uma noite que se pronunciava, com todo seus encantos e seus temores. Ligar ou não? Que diferença fazia, era pela ordem de agendamento, ninguém o aguardava especialmente, e nisso estava seu tormento, ser apenas mais um, quando pretendia ser o único, o esperado. Raro era o horário em que pretendia tê-la desocupada, sempre um arranjo na agenda, o tempo disponível por ela. Estivera com tantas que nem se lembrava, eram apenas momentos, bastava um telefonema; mas, perturbava-se em assumir a si mesmo, ela era diferente... A viu no antes, a desejando, êxtases delirantes, seu corpo em prazeres, gozos e confortos, e a tinha em outro momento, ainda que não aceitasse tal verdade, em sentimentos, ouvindo seu ressonar, acarinhando seus cabelos, terno com em uma canção de ninar...bem mais que ânimos desenfreados, todo o seu deleite se expressava em carícias e afagos, aconchegos, delícias, mansidão, flores em jardins, suavidade e ternura, paz na imensidão. Por mais que quisesse tê-la como a mais uma, a sua presença transcendia ao ato, aos olfatos e tatos, em seres que se buscam, se acariciam e se desejam...Amantes no cio, desnudos de pudores, paixões em posições, buscando emoções, anseios e prazeres, unidos se completavam como jamais se sentira, entregues à faina de se darem frenesis, alucinações e deleites. A curtia nos sentidos da matéria carente e frenética, seria apenas aquilo e se conturbava transcendendo em suas emoções, enlevado na busca da essência, na entrega em que um casal reivindica a paz, o encontro consigo mesmos, nos braços um do outro, acima dos espasmos orgásticos produzidos... Sentia-se aprisionado na teia da aranha da qual não queria ver-se liberto, e sim ser consumido em suas tentações, a desejava sem amarras, sem tabus e meneios, inteira, impudica, apenas saciar suas taras, manias recalcadas, esbaldar-se na orgia...Não contava amá-la, mais uma aventura passageira, e a percebeu tomando parte de si, fazendo-o temê-la em sua vontade, recuando em seus receios. Em sua angústia, questionando-se, desejava fugir dela, e tê-la ao lado, numa confusão mental alucinante, paradoxal; a queria, não mais por algumas vezes, e sim por todas elas. Porém, profissional, disponível para todos, não era a pessoa que se enquadrava em seus conceitos para uma vida inteira. Sempre os encontros interrompidos por uma ligação, toda a magia circunscrita em horas determinadas, a lembrá-lo de que não lhe era exclusiva, não lhe pertencia. Ela era livre, leve, solta, independente em suas vontades, destemida, libertina, muito para uma mente oposta de si mesmo, amedrontado, tacanho em sua visão de vida. Então aqueles conflitos tiravam-lhe a paz, martirizando-o, fazendo-o questionar suas certezas, sentir-se impotente e vazio. E, quando o manto da noite caía, começava seu inferno, ir ao encontro dela, ou não? E, para tirá-la de sua fixação, por vezes escolheu outras, buscando-a em outros corpos, sentindo-se infeliz, saudoso de sua companhia, sua pele, cheiro, sorriso, olhar. Queria nutrir por ela um sentimento ruim, de rejeição, algo que o ajudasse a ter forças para esquecê-la, talvez ela nem imaginasse o que ele sentia, e sofria, afinal era apenas um dos muitos clientes a procurá-la, a quem cabia representar um papel simpático, não mais que isso. O pior é que passava a nutrir ciúmes, tormento a que se julgava imune...Assim, quando estava com ela, e o celular tocava, disfarçava com dificuldade seu incômodo, a vendo atender e, não raro, agendar com outro um encontro, fazia parte do seu trabalho. Incapaz de continuar ocultando o que sentia, resolveu confessar-lhe seus sentimentos, sem atinar ao certo de sua proposta caso foi aceito. O ouviu em silêncio, compreensiva, carinhosa, e a sua resposta foi tão decepcionante que antes não tivesse ousado confidenciar-se. Ela o entendia, aliás, não era a primeira vez que alguém também se dizia apaixonado. Apenas isso?, sentiu-se diminuído, talvez o orgulho ferido, comparado a outros, tinha esperanças de que não lhe fosse indiferente, que nutrisse por ele correspondência nos sentimentos, não o entendimento de uma psicóloga com seu paciente. Odiou ter falado, melhor manter-se em segredo do que não ser correspondido, endereçando-lhe apenas solidária compreensão. Se alguém transgrediu os limites não fora ela; ele, homem vivido, não poderia ter-se permitido amar, será que há algum manual nos imunizando dos sentimentos? É possível o contato íntimo, a reciprocidade de pele, sem o risco da paixão? Ele sentia-se derrotado, vencido em sua aparente fortaleza, ver-se vulnerável ; talvez para ela, profissional do sexo, fosse mais fácil. Nenhuma responsabilidade dela se ele a via com outros olhos, a admirasse além do que oferecia, se a observava em seus detalhes, como a vivacidade de seus olhos, reverberando estrelas e o luar; e o seu sorriso a traduzir uma alegria contagiante, o pondo à vontade como a um menino em descobertas; um franzir de testas e as covas nos cantos da boca encantadoras, e uma pausa reflexiva nas conversas, quando se permitia saborear um drinque ou a fumar sua cigarrilha odorífica. Suas mãos aveludadas nas carícias e no beijar. Aquele conjunto de considerações sobre ela era o resultado de sua carência nunca assumida, fragilizada e exposta diante a si mesmo. Em mudos argumentos, buscando arrimo para seu desespero íntimo, tentava se entender, buscando culpá-la para aliviar suas próprias dores. Teria sido mais fácil, se tivesse apenas cumprido com o combinado, nada além de oferecer o corpo, sem a sua luz e a sua alma, possivelmente foi o que ela fez, ele, contudo, extrapolou nas suas ilusões e a endeusou...

Nunca sua solidão foi tão sentida. Embora ciente de que ela cumpria seu papel, sentiu-se ultrajado, desprezado, sufocando a dor. Para não parecer piegas, fez rápido e sem maiores comentários o pagamento, despedindo-se de olhos baixos, refreando furtivas lágrimas.

Não mais se encontraram, o olhar compassivo dela foi a sua decepção e o pudor envergonhado, o antídoto para a febre do desejo do macho ultrajado em seus brios...

Meu 106º texto selecionado e publicado em livro de antologias de contos "CONTOS DE AMOR & ÓDIO, editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ, maio 2018. Republicado entre os melhores contos da editora no período 2018/19.