Encontro forjado

Fiquei pensativo quando nossos olhares se cruzaram. Pensativo mesmo, do tipo que quando se dá conta, ficou por quinze minutos, com o olhar fixo em um galho de árvore que estava prestes a cair, mas com o pensamento preso em onde já tinha visto aquele mesmo olhar. Resolvi desistir. Nunca acreditei nesse lance de que algumas pessoas parecem já se conhecer de outras vidas, ou outras encarnações, mas quando esse tipo de coisa acontece com a gente, é difícil de esquecer. A gente esquece daquele sexto fora que tomou no fim da noite de sábado. Esquece daquelas 50 pratas que apostou num bolão de loteria e perdeu. Ou esquece até daquele vexame que deu quando bebeu demais numa festa de casamento. Mas esse tipo de experiência com o olhar, de contato visual, talvez até um tipo de assédio visual, a gente nunca esquece.

-Ei cara - perguntei a um amigo - você se lembra daquela garota?

-Qual? Aquela que você praticamente lambeu com os olhos agora pouco?

-Sim.

-Não me lembro não. Achei que vocês já se conhecessem, pelo olhar que trocaram.

-Acredito que sim, mas não me lembro de onde...

-Lá vem você de novo. Daqui a dois dias vai estar dizendo que ela é a mulher da sua vida e etc...

-Vá a merda.

Realmente eu não conseguia tirar ela da cabeça. Ela tinha uma beleza forte. Uma boca grande, de lábios carnudos e sorriso magnético, a pele morena e bem delicada. Cintura estreita, apoiada em um quadril convidativo. Fiquei observando de longe, enquanto ela passava. Pensei que uma hora ou outra, eu teria de abordá-la, mas ainda não estava pronto para aquilo. Digo, eu tinha acabado de sair de um relacionamento um tanto confuso. À distância, distância mesmo! Mais de 3000 quilômetros nos separavam. Vários planos e expectativas, todas frustradas. Tinha prometido a mim mesmo que não me envolveria tão cedo novamente. Mas e se essa fosse a pessoa certa? Eu a deixaria escapar por culpa de outra? Devia me dar o luxo de não saber? Eu saberia lidar com a decepção novamente?

Fiquei tão imerso nesses questionamentos, que quando dei por mim, ela estava vindo na minha direção. Ela sorria calmamente, e eu fiquei meio embaraçado. O que eu diria? Não sabia realmente o que fazer. E ela veio, se aproximando...

-Oi, tudo bem? - eu disse, por trás de um sorriso amarelo.

-Tudo sim, e você?

-Bem, obrigado. Olha, por acaso você é de Recife? - perguntei tentando, desesperadamente, emendar o assunto.

-Não não...sou do Rio - ela respondeu meio sem graça.

Porque Recife? Também não sei, nunca estive lá. Meu cérebro travou. Aquilo saiu meio que no automático. Depois nem lembro do que aconteceu. Acho que trocamos mais umas quatro ou cinco frases, e ela se foi. Ela veio me perguntar sobre treinos do clube, se não me engano. Nem me lembro se nos despedimos. Aliás, nem podíamos conversar muito ali. Estávamos em formação num ambiente militar, e qualquer conversa muito demorada começa a chamar a atenção dos instrutores. Como eu já suspeitava, passei a tarde pensando nela.

No começo da noite, sai do alojamento pra ir a barbearia. No caminho de volta, acabei encontrando-a, junto de uma amiga. Tivemos uma conversa super agradável, eu e amiga dela, é claro. Dessa vez foi ela quem pareceu travar, mal respondeu quando a cumprimentei. Passaram uns dez minutos, e amiga dela, percebendo a situação, resolveu ir, e nos deixou por ali.

-Você parece meio assustada, aconteceu algo? - perguntei.

-Sim, tô bem assustada com o quanto vocês dois falam - abrindo um enorme sorriso.

-Que nada - sorri - ela quem fala demais.

-Você me acompanha até o prédio?

-Sim.

Fomos andando naquela noite agradável. Corria uma brisa fresca, agitando o ar úmido da região. Confesso que não lembro muito sobre o que falamos. Por fora eu parecia confiante, mas por dentro eu tremia de insegurança. Acho até que esse medo seja uma característica intrínseca de nós. Já era tarde, e resolvi criar coragem.

-Olha, eu tenho que ir nessa - eu disse, meio sem graça - você pode me passar seu telefone?

-Então, eu estou com um número novo, ainda não decorei, mas depois te passo.

-Ah, tá... tudo bem. Até mais então! Boa noite.

-Boa noite.

Confesso que me senti rejeitado. Me senti um fracasso. Por sorte, ninguém presenciou aquela cena, o que não fez diminuir é claro o sentimento de rejeição.

Na sexta a tarde, tive uma excelente ideia. Daquelas ideias mirabolantes e infalíveis, e logo pus me a executá-la. Liguei para o prédio de alojamentos onde ela ficava, o sentinela da hora atendeu.

-Boa tarde senhor, em que posso ajudá-lo.

-Eu gostaria de falar com a Fernanda - eu disse sem gaguejar - do alojamento Charlie.

-Sim, o senhor prefere aguardar na linha?

-Sim.

Acho que nem eu estava acreditando que aquilo estava dando certo. Digo, foi um tiro no escuro. Ela poderia ter saído, ou dito a sentinela que não iria atender ninguém, ou simplesmente recusar minha ligação. Fiquei pensando em tudo isso enquanto aguardava na linha. Entrei tanto nesses devaneios, que me perdi em mim, e quando dei conta, ela estava me chamando no outro lado da linha.

-Márcio! Márcio! Alô!

-Oi! Me desculpa, acabei me distraindo aqui.

-Tudo bem, queria falar comigo?

-Sim, olha... o pessoal do grupo vai se reunir hoje à noite, num buteco no centro da cidade. Bebida e conversa fiada, tá afim?

-Bem que eu queria, só não tenho como ir...

-Posso te buscar, se quiser - disse, interrompendo-a - às 20h?

-Sim. Ótimo!

-Até.

Eu mal podia acreditar em tudo aquilo que estava acontecendo. O plano era bem simples. Eu convidaria ela para a reunião do grupo, e de última hora, a galera cancelaria, e eu sugeriria pra irmos apenas nós dois. A primeira parte tinha dado certo, restava esperar as restantes acontecerem. Eu tinha tempo ainda pra pensar nisso, ainda eram quase 16h e parecia uma eternidade até as 20h.

Acabei me atrasando um pouco. Não foi proposital, mas acabou se encaixando na história de que o restante do grupo havia desistido de fazer essa reunião no bar. Quando lhe expliquei a situação, ela pareceu desconfiar um pouco dos fatos, mas aceitou de bom grado irmos até o bar, já que estávamos prontos e arrumados. Alias, ela estava demais. Fazia bastante frio aquela noite, o que, na minha opinião, favorece todo e qualquer visual. Mesmo com toda aquela roupa, era possível ver o desenho bonito de seu corpo. Enquanto ela vinha ao meu encontro, fiquei fascinado, e cheguei até me perder em pensamentos nos poucos segundos que ela levou pra chegar até o carro.

-Olha, me desculpe pela galera, tá? Eles sempre fazem isso...

-Tudo bem, eu não ia fazer nada mesmo - respondeu ela polidamente.

A conversa foi seguindo naturalmente. Começamos a identificar alguns gostos em comum, e até outros gostos incomuns. O bar que eu tinha escolhido ficava na beira de um ribeirão que cruzava o centro da cidade. Era uma casa antiga, do começo do século passado, que foi reformada, mas ainda assim, mantida as características marcantes da arquitetura da época. A decoração era bem retrô, que combinava com o estilo musical que tocava no rádio, o bom e velho blues.

-E essa sua luva, sem as pontas dos dedos - eu disse, em ar zombeteiro.

-Ah sim, bem, foi a única que achei no meu armário - ela respondeu, meio sem graça - mas já quebra um galho. Ajuda a esquentar um pouco.

- Ajuda mesmo? não parece. Assim fica melhor - envolvi suas mãos com as minhas mãos.

Acho que naquele pequeno intervalo de segundos, em que peguei em suas mãos, e ficamos nos olhando, acredito que já sabíamos das intenções, um do outro. Mas eu, mesmo assim, ainda me sentia inseguro como um adolescente de 12 anos. Ficamos ali ainda, rindo, conversando, bebericando alguma coisa, eu segurando suas mãos. Eu sentia que tinha que tomar alguma atitude, mas me sentia petrificado quando pensava em que fazer.

-Você teve a sensação de que já me conhecia? - eu perguntei, pra tentar manter o assunto nos nossos interesses.

-Bom, eu já tinha falado com você outro dia, mas você nem me deu muita atenção.

-Sério? Tem certeza? Não me lembro disso... Aliás, foi você que me enviou aquele convite no orkut?

-Não, foi você quem mandou - ela respondeu, com certa firmeza

-Acho que foi você...

-Não, foi você!

Realmente, me esforçando um pouco, consegui lembrar, tinha sido eu mesmo que enviara o convite. A situação agora não parecia tão favorável pra mim. Eu estava perdendo aquele duelo para mim mesmo. Eu precisava me recompor internamente. Pedi outro drinque. Tomei um grande gole pra ajudar. Acho que ficamos uns minutos em silêncio. Resolvi ceder.

-Olha, na verdade fui eu mesmo quem mandou o convite.

-Viu só! - ela respondeu sorrindo - Mas eu ainda quero saber o porquê...

-Bom, eu acho que não estou pronto pra dizer...

-Diz logo, vai!

Nesse momento, eu a puxei para mim e a beijei. Ela respondeu prontamente. Todo o barulho em volta no bar cessou. Tive a impressão que o nosso beijo era assistido por todos os presentes ali. E que beijo era aquele! Fiquei totalmente enfeitiçado, e não conseguíamos parar. Não me recordo exatamente quanto tempo o beijo durou, e acho que a unidade de tempo que usamos carece de sentido para expressar. Passou uma eternidade enquanto nos beijávamos. Se o bar realmente parou pra assistir, pouco me importa. Eu estava feliz, e ela parecia feliz também. Por fim, ela só ficou sabendo do plano anos depois, que na verdade o clube nunca tinha cogitado se reunir, que foi apenas um pretexto que eu criei para conseguir convidá-la pra sair. Mas ai pouco importava, estávamos juntos e felizes.

Márcio Filho
Enviado por Márcio Filho em 09/02/2017
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