O BEIJO DE MARINÊS
MAL O DIA AMANHECIA e lá estava Marinês debruçada na janela da cozinha que dava para o curral. Olhos lânguidos a espiar com ares de prazer João de Ofélia com suas mãos hábeis a escorregar nas tetas do ubre de Malhada e espirrar o alvo, quente e espumante leite da vaquinha no vasilhame quase sempre abarrotado de espumas. O ar da manhã soprando o aroma do mato com o mormaço do curral trazia junto o cheiro gostoso do leite a excitar ainda mais a gula matinal de Marinês, que corria rumo ao quintal sempre exigindo, com uma gargalhada prazerosa, ser a primeira a encher o copo, que bebia ali mesmo sob o olhar matreiro de João de Ofélia.
Marinês era uma mulher de beleza sertaneja. De tez morena e corpo torneado, com aproximadamente um metro e sessenta, trazia uma boca de lábios carnudos que se destacava no rosto pelo batom vermelho que sempre usava e que só desaparecia debaixo da espuma do leite matinal, e que logo reaparecia quando ela passava a língua para limpa-lo - momento em que sempre induzia pensamentos proibitivos na mente de João - tinha os olhos grandes e negros, quase sempre meio encobertos pelas pálpebras que lhes davam um ar de languidez e melancolia.
Marinês era casada com José Graciano, vaqueiro e morador das terras de propriedade de um tal de Luiz Fonseca, residente na cidade de Mossoró. Sua propriedade situava-se na localidade de Serra Vermelha, já próximo ao município de Areia Branca, cidade onde o leite ali extraído era vendido.
Certo dia após encher os vasilhames, João preparou a carroça que utilizava para a distribuição diária do leite na sua freguesia em Areia Branca, e antes de partir perguntou a José Graciano se ele necessitava de alguma mercadoria, no que este respondeu:
- Passe lá em Honorina e traga um quilo de açúcar e um pacote de café.
- Sim Senhor!
- Mas vê se não vai se engalfinhar com nenhum rabo de saia no cabaré de Marina! – Disse José às gargalhadas.
João rindo meio atrapalhado, respondeu: - Não...não senhor!
João de Ofélia, já completado os seus dezoito anos, tinha a pele queimada pelo sol, um rosto perfilado e uns olhos pequenos e castanhos que pareciam estar sempre sorrindo. Sua mãe se chamava Ofélia e falecera quando o menino tinha seis anos de idade, morrera de parto e o pai que trabalhava de meia em roçado próximo, pouco tempo depois partiu com o caçula para as bandas do Seridó para cuidar das terras de um fazendeiro daquela região, deixando João, que herdara-lhe o nome como sobrenome por apelido de João de Ofélia - prática comum naquela época, em que os filhos muita vez, era identificado com o nome do pai ou da mãe - ,com quatorze anos, aos cuidados do falecido Pedro Graciano, pai de José Graciano, acomodando o menino como ajudante nas tarefas dos cuidados dos animais. Com sua morte, José Graciano passou a ser o responsável pela propriedade e pelos cuidados de João.
João partiu para cidade cantarolando, como sempre, os motes que aprendera com os repentes cantados por violeiros que às vezes passavam na região, ou nos folhetos de cordel que sempre eram lidos por Marinês:
A cachaça tá no copo
O copo tá no balcão
Cachaça e mulher bonita
Foi a minha perdição...
...e desapareceu na estrada sob os olhares de José Graciano e Marinês.
- Esse rapaz tá precisando conhecer mulher. Um homem já com dezoito anos e nunca teve nem namorada. A filha de Bastião, dizem que é doida por ele, mas ele diz que não quer porque a menina é banguela dos dentes da frente. Qualquer dia vou falar com Tonho Carvoeiro para levar João lá no cabaré de Marina. Ponderou José Graciano.
- Vocês homens só pensam em rapariga! Deixe o rapaz quieto. Vocês vão acabar botando esse menino na perdição. Retrucou Marinês.
Com os seus vinte e sete anos, os sentimentos de Marinês eram às vezes confusos em relação a João de Ofélia. Quando casou com José, há três anos, já encontrou o rapaz morando na propriedade. No início julgou-o esquisito e um tanto amuado, mas com o tempo essa impressão foi se desfazendo à medida que foi descobrindo nele uma pessoa obsequiosa, disposta e alegre.
Durante a noite, era comum, debaixo do alpendre, Marinês ler algum cordel para ele e José Graciano; visto que nenhum dos dois sabia ler.
Certa noite estando José Graciano indisposto recolheu-se mais cedo aos aposentos de dormir, deixando-os à sós no alpendre. A lua cheia adornava de prata a paisagem ao redor; e no rosto de Marinês destacavam-se os olhos e a boca, que semiaberta, acentuava lhe os contornos dos lábios.
Ficaram em silêncio por instantes apreciando a noite, até que de soslaio ela percebeu que João a olhava com os olhos brilhantes e fixos, parecendo duas luas cheias; ao perceber-se flagrado, ele repentinamente baixou a vista e corou o rosto, que se destacou frente à lividez na pele provocada pela lua; já há tempo, havia percebido esse olhar diferente dele para ela; relevara por algum tempo, atribuindo à curiosidade juvenil do rapaz; e até pensara que se José Graciano não teria razão em querer arranjar-lhe uma namorada, ou até quem sabe fazê-lo iniciar-se sexualmente no cabaré de Marina; Mas essa ideia última, por algum motivo não a agradava.
Subitamente, João ainda cabisbaixo levantou-se e fez menção de se retirar, despertando Marinês do seu devaneio.
- Para onde vai homem, ainda é cedo para dormir! - exclamou inopinadamente Marinês.
João parou indeciso; estava desconcertado, mas retomando o animo obtemperou com voz mansa: - Você vai ler alguma coisa hoje?
- Sente-se aí homem! Deixe-me ver aqui; e escolhendo entre os panfletos que trazia nas mãos, selecionou um deles:
- Hoje vou ler O Romance do Pavão Misterioso. João se acomodou no lugar onde anteriormente estava e assuntou os ouvidos para ouvir mais uma vez aquela estória tantas vezes lida; Marinês abriu o folheto e com voz melíflua dissertou:
Eu vou contar uma história
De um pavão misterioso
Que levantou voo na Grécia
Com um rapaz corajoso
Raptando uma condessa
Filha de um conde orgulhoso...
E foi Marinês desfolhando aquela estória dos dois irmãos João Batista e Evangelista e da paixão deste último pela condessa Creuza na Grécia; e João de Ofélia ficava a imaginar a beleza da condessa e que se parecia com Marinês e o raivoso conde, pai da condessa, parecendo-se com José Graciano; Deixou-se voar nas asas do Pavão e da imaginação; e quando já se via raptando Creuza do castelo, montado naquele misterioso pavão, inopinadamente foi interrompido com a voz de José Graciano chamando a mulher para lhe medicar um chá de cidreira para seu problema de estômago.
- É melhor entrar João, amanhã eu continuo! – ponderou Marinês.
João foi para sua rede que ficava na sala da frente e que à noite transformava-se em seu quarto de dormir; e nessa noite o sono demorou a chegar; e as frestas das telhas que deixavam passar a luz da lua se transformaram no céu estrelado da Grécia em que ele voava com Creuza em seus braços; e a lua da Grécia, parecendo o luar do sertão, prateava o rosto da condessa e destacava seus lábios vermelhos, iguaizinhos aos de Marinês; olhos nos olhos da amada, seus rostos se aproximaram cada vez mais e ele já podia sentir o calor dos seus lábios...e dormiu.
- Levanta cabra, tá na hora de tirar o leite! Vociferou José Graciano.
João acordou de supetão; o dia já amanhecia.
A mesma rotina, Marinês foi aprontar o café, o cuscuz e a coalhada, enquanto João se mandou para o curral para aprontar as vacas e tirar o leite; Malhada era sempre a última e de Marinês, como sempre, o primeiro copo.
- Sabe que dia é hoje? - perguntou José Graciano a João.
- Não senhor! Acudiu ele.
- Hoje é quinze de agosto de mil novecentos e cinquenta e nove, festa de Nossa Senhora dos Navegantes, padroeira de Areia Branca. Quero que você ponha a sua roupa nova que hoje você vai com Tonho Carvoeiro e só volta amanhã. Ele vai lhe levar pra festa, pra ver se você desasna. – e José ria enquanto falava.
Desajeitado João indagou: - E a carroça com os vasilhames?
- Tonho vai guardar na casa de uns parentes dele.
Naquela noite Marinês deitou-se na rede e deixou o pensamento voar feito passarinho. Lembrou-se da infância correndo atrás dos sibites no roçado de seu pai e se lembrou do seu irmão Adroaldo, companheiro dessas aventuras infantis. “Por onde andaria o irmão que há anos não mandava notícias, desde que partiu para São Paulo”; pensou. E as lembranças foram se misturando com as imagens dos algodoeiros do roçado e deixou-se devanear... quando, de repente, um barulho de chocalhos vindo do curral chamou a sua atenção. Levantou-se curiosa e foi ver do que se tratava, já era noite e pode ver um vulto ao lado das vacas que estavam inquietas. Aproximou-se e pode divisar João de Ofélia acocorado, como a tirar leite de uma das vacas. Pensou “mas àquela hora da noite?”; aproximou-se mais ainda e pode ouvir soluços, João chorava copiosamente. - O que houve homem? Perguntou aflita.
- Os ubres das vacas secaram, não consigo tirar leite; respondeu João, que em vão ordenhava a vaquinha.
Nesse momento Marinês começou a sentir seu corpo tomado por um calor a deixa-la febril e seus seios foram ficando entumecidos e começaram a escorrer leite a molhar todo o seu busto. Olhou assustada para si e percebeu que estava completamente nua. Envergonhada, cobriu-se com as mãos, enquanto João a olhava e gargalhava. Chorando disparou em correria para casa, sob o olhar e as gargalhadas cada vez mais altas de João de Ofélia, até sentir uma mão firme a segurá-la pelo braço. Era José Graciano que ao pé de sua rede tentava acordá-la.
- O que você tem mulher?
Marinês abriu os olhos espantados; - Foi... foi só um pesadelo! - respondeu aliviada.
Levantou-se e depois dos asseios foi para a cozinha preparar o café quando ouviu alguém batendo palmas na porta de entrada; acudiu para ver de quem se tratava; enquanto isso José Graciano também se aproximava. Era um vizinho de propriedade próxima.
- Homem de Deus, aconteceu uma desgraça! – de repente exclamou o vizinho.
- Mas que desgraceira foi essa homem¬? – replicou Marinês aflita.
- João de Ofélia levou uma facada!
Marinês empalideceu; atônita sem querer acreditar no que ouvia, olhou em direção ao curral como a querer ver João e desfazer aquela agonia; e não conseguia, talvez por medo, perguntar mais nada.
- Mas como foi isso homem? – acudiu José Graciano com a voz já embargada.
- Foi no cabaré de Marina hoje de madrugada; uma rapariga se engraçou do rapaz, mas o macho dela chegou embriagado e armou a confusão; no meio do tumulto o safado covardemente furou João no peito.
- E onde ele está pelo amor de Deus? – desatou José Graciano.
- Parece que tá no hospital, na Maternidade Sara Kubistchek, sob os cuidados de Dr. Gentil!
José Graciano mais que depressa selou o cavalo e partiu para Areia Branca com Marinês na garupa; chegaram ao hospital e foram logo levados ao quarto onde agonizava João de Ofélia.
Dr. Como ele está? – Foi logo perguntando José Graciano.
- É grave! – sussurrou o médico, convidando-o para o corredor para descrever o quadro do paciente; enquanto isso, Marinês se aproximou do leito onde João se encontrava; Não parecia bem; o rosto lívido pela perda do sangue.
- Como você tá homem? – acudiu marinês com os olhos marejados.
João delirava. – Creuza é você? Vamos fugir minha amada.
Uma lágrima rolou no rosto de Marinês.
- Sou eu meu amado! Você precisa descansar, acalme-se.
- Fui ferido na hora em que ia lhe beijar; mas não quero morrer sem antes sentir seu beijo.
Nesse momento Marinês começou a sentir seu corpo tomado por um calor a deixa-la febril e seus olhos cada vez mais entumecidos começaram a escorrer lágrimas a molhar todo o rosto. Olhou para os lados e José Graciano continuava no corredor com o médico. Aproximou seu rosto ao de João e com a boca tocou suavemente seus lábios.
O rosto de João adquiriu um ar suavemente corado; sua boca expressou um sorriso misterioso e os seus olhos fixaram-se paralisados em algum ponto do espaço; e viu-se flutuando que nem o pavão misterioso e voando cada vez mais alto com sua amada a salvo em seus braços.