LET'S SEE.

O telefone soou. Ele olhou de relance, mas não atendeu, sabia que era algo sem importância. Não conseguia abrir os olhos, ainda estava exausto e assim, de madrugada, à meia luz, não entendia muito bem a letra na telinha. Voltou a dormir. Horas depois acordou e tomou uma ducha para despertar de vez. Foi durante o café que recordou o sonho da noite passada. Aliás, recordar era eufemismo, na verdade, não se lembrava de quase nada, apenas uma expressão se sobrepunha, “Let’s see”. Achou, por acaso, que deveria anotar. De repente, quem sabe, poderia usá-la em uma composição. Abriu os e-mails, conferiu as mensagens e pode, enfim, ler aquela que o incomodou de madrugada. Não era nada importante como previra. Mas, observou outra de dois dias que não lera. Na mensagem ela avisava que estaria com um número novo e que no dia seguinte, que fora ontem, estaria o tempo todo online para ele. A despedida era íntima, insinuava romance. Foi então que ele se deu conta de que não falara com ela no dia anterior. Nem ela havia lido as inúmeras mensagens que ele lhe escrevera. Ela não esteve online todo o tempo como o recado avisava, ao menos não com ele. Ficou pensativo. Escreveu uma frase curta demonstrando o contraditório do recado, enviou; logo apareceu o sinal de mensagem lida. Mas, para sua surpresa, não houve uma justificativa sequer; nenhuma desculpa que pudesse desfazer um possível mal entendido. Ou seja, ela queria que ele soubesse que estava conectada a outra pessoa. Disponível, como nunca estivera para ele. Naquela manhã o relacionamento acabou. Isso o magoou profundamente, mas ele jamais demonstrou o quanto a dor lhe corroeu. Ficou segurando aquela xícara de café por horas e só conseguia repetir: “Let’s see”. Começou a fazer especulações sobre aquela expressão. Ela tornou-se, então, o seu objeto de estudo. A pedra angular sobre a qual se debruçaria noites a fio até que, a custa de muito suor, pudesse extrair toda a beleza e verdade nela contida. Tornou-se ourives da palavra dia e noite, noite e dia. Lia e relia livros, dicionários, traduções, pesquisava a obra sobre os sonhos de Freud. O tempo dedicado às pesquisas o retirou das rodas de amigos, dos almoços em família, das caminhadas no boulevard. Tornou-se sisudo e sua sisudez, um charme. Virou o centro das atenções femininas que, de alguma forma, desejavam suprir-lhe de afeto e afago. Contraditoriamente, ele recusava envolvimento, saía apenas para apresentar-se nos pub’s e cafés que aceitavam tocar o tipo de música que agora ele se dispunha a compor. Não era uma música ruim, pelo contrário, era algo muito sofisticado ao ponto de os críticos tecerem comentários cada vez mais elogiosos sobre sua performance. A explicação para o seu virtuosismo ligava-se ao que ele se tornara depois dela. E poucos sabiam que ela fora o seu único e verdadeiro amor. Foi inevitável que a indústria da música premiasse seu talento. Os prêmios iam se avolumando e, vez ou outra, ia recebê-los pessoalmente. Mas, a constância diminuía à medida que sua excentricidade aumentava. Agora, era sempre a assistente que comparecia e levava para casa troféu, menção honrosa, cheques polpudos. Ele se mudou várias vezes, sempre tentando despistar o interesse da imprensa e o furor dos paparazzi que por sua vez se desinteressaram por sua vida reclusa, sem história de escândalos, drogas ou sexo. Foi então que depois de longos anos ganhou um Nobel. O conjunto de sua obra fora consagrada como um patrimônio da humanidade. E, dentre todas as suas canções, “Let’s See” ganhou um destaque especial. Para os críticos, aquela música era a combinação perfeita de todos os fundamentos de harmonia, musicalidade e beleza. Não se sabe exatamente o porquê, ele aceitou executá-la na premiação. Vestiu-se elegantemente e quando se olhou no espelho, viu os olhos azuis de sua juventude. Sentiu-se revigorado. Atravessou o tapete vermelho acompanhado pela jovem assistente sob o olhar estapafúrdio da plateia. Os holofotes e flashes lançavam luz sobre sua existência. Era a fênix em pleno esplendor. Subiu ao palco ovacionado, sentou-se em um piano de cauda, um Bosendorfer 1940 e passou a tocar “Let’s see”. A agilidade e leveza de seus dedos percorrendo o teclado chamaram a atenção de todos, mas, sobretudo, chamaram a atenção de uma senhora elegante sentada na primeira fila. Os olhos dela fitavam-no com ternura e, de tempos em tempos, marejavam e deixavam escorrer pela face uma lágrima. Do palco, vez ou outra, ele olhava despretensiosamente para a plateia. E, foi num lance de olhar que seus olhos se reencontraram e se reviram. Again.

Adelaide de Paula Santos

Bsb, 02/02/2017

O amor à primeira vista existe. Mas, às vezes, naquele instante não está suficientemente amadurecido para ser. Às vezes, é necessário um segundo olhar que nos permita, de fato, ver. Ver o que estava oculto, velado, em segredo.

Ouvindo: The Best Of YIRUMA | Yiruma's Greatest Hits ~ Best Piano

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 02/02/2017
Reeditado em 02/02/2017
Código do texto: T5900037
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