O Rio Amantes
(Este Conto trata-se da síntese (trechos) de um livro. A inspiração para escrevê-lo surgiu por acaso, no início de minha adolescência, enquanto lia e me entusiasmava com “Este inferno de amar” de Almeida Garrett e ouvia, pela primeira vez, a música romântica considerada na época, por mim, a mais linda de todos os tempos: “Oceano” de Djavan.)
Os galhos das árvores batiam nas janelas. Isso era tudo o que Isabela observava ignorando a bela paisagem do lado de fora do trem. Estava demasiadamente triste por ter que deixar a movimentação da grande cidade, ao qual estava habituada, para se desfazer em prantos, urtigas e pernilongos no campo. Assim ela dizia. O trem chega na estação. O seu tio Pedro a recebe. “Aqui está você! Olha só o que 15 anos lhe proporcionou! Esta linda! Tão bela quanto sua mãe! ”. Dizia ele, expressando o notável encanto ao ver a bela flor jovem na qual ela se tornou.
Faltava ainda duas horas de viajem até a Fazenda. O carro dava altos solavancos na estrada esburacada e meio lamacenta. De repente, uma parada inesperada. “Desculpe, meu bem! Não vai demorar nada. Trouxe um pneu de reserva". Disse o senhor Pedro, apressando-se o quanto pode. Isabela se sentia enfadada. Saiu do carro e encostou-se nele observando a paisagem na estrada. Foi quando elevou os olhares e bem acima, no alto de um monte, próximo das árvores, ela o avistou. Esta foi a primeira vez que ela o viu. De longe ele a observava. Uma cena que perseverou em ficar na mente dela por vários dias. Um homem alto, trajado de cinza, calça aparentemente desgastada e com parte de seu peitoral visível através do velho sobretudo que cobria seus ombros. O vestuário prisco e o galante semblante atraíram a atenção de Isabela. Ele levemente acariciava um grande e belo cavalo negro enquanto fixava nela o olhar. Um olhar que ela nunca esqueceria. “Pronto! Não disse que não iria demorar? ”. Falou seu tio, distraindo-a por um segundo daquele momento mágico que parecia ser uma visão. Ao retornar os olhares naquela direção, o homem não estava mais ali.
Chegaram na fazenda. O jovem Lucas, filho do senhor Pedro, nem conseguia disfarçar o entusiasmo diante da beleza fascinante de sua prima. Logo se ofereceu para levar a bagagem. A dona Marta, esposa de Pedro e irmã da falecida mãe de Isabela, aguardava a moça. Esta era a única pessoa da fazenda que visitava Isabela e seus avós na cidade, nos últimos 15 anos. A mãe da jovem nascera na fazenda, casou-se e se mudou para a cidade. Com dois anos de casada ela morreu durante o parto do primeiro filho. Na verdade era uma filha: Isabela. O pai da criança, após a morte da esposa, levou a filha para residir com os avós maternos enquanto ele, oficial da guarda nacional, foi chamado para mais uma temporada de trabalho. Morreu em serviço. Esta foi a história que a pequena órfã, Isabela, cresceu ouvindo enquanto morava na cidade, em casa dos avós. Há dois meses ela sofreu com a morte do avô. Este, dono de uma fábrica, perdeu tudo, enfartou-se. Desolada, dona Isadora, avó de Isabela, resolveu se desfazer de todos os pertences da família na cidade e voltar para a única propriedade de valor que eles ainda possuíam: a fazenda. Mas, antes, ela se preocupou em antecipar a viagem da neta. Pois, temia que esta bela jovem, na flor da idade, criada para se tornar uma recatada dona de casa, fosse enlaçada pelas paixões da carne que floresciam entre os jovens da cidade.
A dona Marta havia apresentado para a sobrinha toda a fazenda e os aposentos da casa. Muitos quartos. Em uma noite, Isabela, movida pela curiosidade, resolveu entrar em um deles no qual observava ser o local em que seu tio, Pedro, sempre se recolhia, por horas, durante o dia. No quarto meio empoeirado havia muitos quadros, pinturas, as mais belas. Mas, dentre as telas, não houve uma que impressionasse tanto Isabela quanto a pintura de uma jovem, deitada sobre uma grande pedra e em frente a uma velha cabana. No fundo da imagem, um rio com águas cristalinas rodeado de palmeiras. O quadro estava pendurado na parede ao lado de um espelho e, vendo seu reflexo, Isabela não teve dúvidas de que era quase idêntica àquela jovem retratada na imagem. “É incrível como vocês são semelhantes! ”. Disse o senhor Pedro, surgindo como uma sombra por atrás de Isabela. Ela perguntou surpresa: “Minha mãe? ”. Ele respondeu: “Sim! ”. Isabela, demostrou-se deslumbrada: “Nossa! Nem nas fotografias que possuo dela existe um retrato assim, com tamanha perfeição. Foi o senhor quem pintou? ”. Perguntou ela por saber dos dons artísticos do tio. “Não! Este é um dos quadros que vieram da cidade depois da morte dela. Seu pai não aguentava olhar para ele. Eu entendo o porquê”. Com os olhos fixos na imagem, ela, deslumbrada, continua a perguntar: “E que lugar é este? É lindo! Ela esteve ali? Naquele rio? ”. Nesse instante, Pedro parecia incomodado com as interrogações da sobrinha: “É só uma pintura Isabela! É uma paisagem qualquer, não creio que deva existir de fato. Mas, já está muito tarde. Você nem deveria estar acordada até esta hora. Vá, meu anjo, tenha uma boa noite! ”. E cordialmente a despediu. Isabela se retirou, mas não antes de guardar na memória a leve e estranha assinatura do pintor no canto direito do quadro.
Na manhã seguinte, Isabela resolveu caminhar. Lucas esperava por uma oportunidade de estar a sós com a prima e se ofereceu para apresentar-lhe a região. Um jovem simpático, mas visivelmente tímido e atrapalhado com as mulheres. Isabela significava para ele um sonho de amor a ser realizado. Porém, a jovem pouco modesta da cidade não demostrava compartilhar do mesmo entusiasmo. No caminho, chegaram em uma linda cachoeira. Águas transparentes caiam sobre as pedras, grandes pedras. As pedras despertaram a atenção de Isabela. Eram quase idênticas à pedra que havia no quadro pintado com a imagem de sua mãe. Lucas lembrou-se de lhe mostrar algo. Umas rosas muito belas que cresciam por ali. “Espere aqui, eu volto logo”. Disse ele.
Isabela permaneceu ali, aguardando o retorno de seu primo. Ela se abaixou a beira da marguem para ver de perto a queda das águas sobre as pedras. Nesse instante, ela ouviu o barulho de um animal. Um cavalo surgiu. Era aquele cavalo negro. Não havia nenhum igual a ele em toda a região, nem mesmo na fazenda. Ali ele estava, parado, surgiu entre as árvores. Ela se levantou e ficou observando o animal que parecia tranquilo, apenas relinchava e não se movia. Enquanto olhava para ele, sentiu a presença de alguém atrás dela. E pensando ser seu primo, virou-se. Era ele! Aquele homem que a observava na estrada. Mas dessa vez ele estava perto, bem perto. Estava vestido do mesmo modo como ela o tinha visto antes: calça aparentemente desgastada, descalço e com aquele sobretudo cinza por cima de seus ombros deixando aparecer parte da nudez de seu peito. Não parecia ser tão jovem, no entanto, ele era belo! E como era belo! Cabelos negros, olhos castanhos, um semblante firme no olhar como ela nunca tinha visto antes. No entanto, ele parecia surpreso ao vê-la, como se estivesse reencontrando alguém, e caminhava lentamente em sua direção.
Uma sensação estranha tomou conta de Isabela. Não teve medo. Na verdade, ela não saberia definir o que sentia, apenas o quanto seu coração acelerou. Ao chegar bem próximo da jovem ele parou e olhando fixamente nos olhos dela, sorriu. Ela, sentiu-se impulsionada a retribuir aquele leve sorriso. Aquele semblante não lhe representava perigo, pelo contrário, aquela forma estranha de se aproximar a atraiu. Ao vê-la sorrindo, ele se aproximou novamente. Ela, hipnotizada com aquele semblante, permaneceu quieta sem se mover. Ele se aproximou até que ela pôde sentir a respiração dele em seu rosto. Isabela sentiu um gélido arrepio subindo de suas costas e então fechou os seus olhos aguardando, por ventura, seus lábios serem tocados. Mas, em vez disso: “Isabela! ” Era a voz do seu primo Lucas. E quando ela abriu os olhos novamente não havia ninguém. O homem sumiu como dantes. Ela apenas ouvia as vozes entusiasmadas do seu primo que vinha correndo. “Você não vai acreditar no que eu encontrei”. Ele dizia, contente, segurando algo em suas mãos. Isabela, sem conter a respiração acelerada, ignorava as palavras de seu primo e olhava ao redor, desiludida. Parecia não acreditar no que aconteceu, mas buscava vestígios. Porém, o cavalo não estava mais lá. “O que houve com você? Está tudo bem? ”. Perguntou Lucas sem nem imaginar o que causou aquela estranha reação em sua prima. “Não estou me sentindo muito bem! Só isso”. Então Lucas se ofereceu para levá-la embora. Voltaram para a fazenda.
O período chuvoso prendia a todos dentro de casa. Mas, naquela manhã, o senhor Pedro precisava ir na estação de trem buscar dona Isadora, que enfim chegaria após quatro semanas. Isabela quis ir também, junto com ele, para receber a avó. “Não há necessidade”. Contestou sua tia Marta, mas Pedro consentiu em mais este pedido de Isabela como sempre fazia. Ao se aprontar, Isabela olhava a paisagem pela janela lembrando ainda daquela cena na cachoeira, na qual por noites não conseguia esquecer. E, sorrindo, lembrou-se também da linda surpresa na noite anterior, quando o cavalo negro veio sozinho ao seu encontro e permitiu ser tocado por ela provando-lhe ser real e então, como em um sonho, sumiu novamente. Do seu quarto, ela começou a ouvir vozes. Parecia uma discussão e vinha daquele velho quarto onde o seu tio Pedro dedicava tempo as suas artes. Ela caminhou até o local e percebeu que sua tia Marta e seu tio Pedro discutiam. “Cale-se! ”. Ele dizia. “Uma coisa não tem nenhuma relação com a outra. Ela é só uma criança! Porque acha que eu iria alimentar tal fantasia? ”.
A porta estava entreaberta e Isabela vê sua tia Marta retirar o quadro, que continha a imagem de sua mãe, da parede. “Estou cansada, Pedro! Há 15 anos tenho que suportar você olhando para ela. 15 anos, Pedro! 15 anos! ” Pedro olhava para o chão, para o quadro e então para os olhos lacrimejantes de sua esposa: "Pare com isso Marta! Você sabe que ela pode ouvir ”. Então Marta altera a voz: “Eu não me importo se ela ouvir! Estou cansada disso, Pedro! Cansada! Minha irmã está morta. Morta! Porque a nossa vida teve morrer com ela? Não há nada que você possa fazer para trazê-la de volta. Nada! O que adianta toda essa paixão?! Esse apego? Esses malditos quadros?! O que adianta? O que adiantou quando ela estava viva? O que adiantou, Pedro? Lembra? Ou eu terei que te lembrar? Nada! Nada! Não adiantou nada! Ela acabou morta. Morta! ”. Então ela exclamou: “Ferida e morta por uma inconsequência sua!” E ele interrompeu: “Nossa! ”. Finalmente, Marta conseguiu alterar os ânimos de Pedro que, apontando o dedo na face dela, lhe respondeu: “Inconsequência nossa, minha cara! Não esqueça disso! Ou eu também terei que te lembrar? ” Nesse instante, eles percebem a presença de Isabela.
“Do que vocês estão falando? ” Questionou Isabela assustada. “Ó meu Deus!” Resmungou Pedro passando as mãos na própria face. “Minha mãe? Vocês? Mas, o quê? ...” Isabela parecia transtornada. “Minha mãe não morreu quando eu nasci? Você disse: ferida? Morta? Vocês? Mas, o quê? ...”. Os olhares de Pedro acusavam a esposa. Esta pondo as mãos no rosto, chorava. Lucas surge por trás de Isabela que, assustada, empurra-o e sai correndo. “O que houve? ” Pergunta Lucas, sem entender a situação. Marta continuava chorando. “Nada! ” Respondeu Pedro. “Vá na estação buscar a sua vó”. “Mas, e Isabela? ” Insistiu Lucas. “Vá, agora! ” Autorizou Pedro enquanto saía atrás da sobrinha.
Isabela foge. A chuva lá fora havia aumentado. A jovem correu o mais rápido que pôde pelo campo até entrar em uma mata quase virgem. “Isabela! Isabela!”. Ela ainda ouvia a voz do seu tio, mas ignorava seu chamado e continuava adiante. De repente ela escorrega e cai em um barranco. O deslizamento de terra a levou para a beira de um precipício. Isabela estava com a vida por um fio. “Isabela! Isabela!”. Ela ainda escutava os gritos do seu tio, mas agora apenas como vozes ecoadas, bem distantes. Isabela não conseguia gritar, apenas sussurrava: “Socorro! Por favor, alguém me ajude! ”. Machucada, a jovem não conseguiria se segurar por muito tempo. Sem forças, deixa escorregar um dos braços segurando-se apenas com uma mão. Ela olhou para baixo vendo a altura e imaginando a queda quando, nesse instante, sentiu a pressão de outra mão agarrando seu pulso. Olhou para cima. Ele! O homem da estrada. Pela primeira vez ela ouviu a sua voz: “Eu não vou soltar sua mão! ”. Ela apenas meneava a cabeça em concordância. “Agora eu quero que você levante a outra e segure firme em meu braço! ” Ela assim o fez. “Vai, Valente! ”. Disse ele ao dar ordens ao cavalo que recuava em marcha ré puxando uma corda amarrada à cintura do homem. “Valente! ”. Ela repetiu esse nome lembrando da assinatura do pintor no quadro de sua mãe. Estava escrito: “Valente”. O homem a puxou para cima. Seu tio ainda a chamava: “Isabela! Isabela! Onde você está?". A voz de seu tio Pedro parecia estar mais próxima. Isabela angustiou-se. “Vem comigo! ” Disse o homem que, pondo-a no cavalo, partiu.
A chuva havia passado. Isabela despertava. Não sabe ao certo quanto tempo havia dormido naquele local simples e confortável. As luzes do amanhecer iluminavam a velha cabana. Sozinha, Isabela resolveu examinar o local. Poucos móveis e bem antiquados. Até uma antiga lamparina havia. Isabela nem lembrava da última vez que tinha visto uma dessas, pois até mesmo na fazenda já havia iluminação elétrica. Nesse momento, um manto estendido sobre algo despertou a atenção dela, suspeitando se tratar de um quadro retirou o manto e ficou impressionada ao ver a si mesma, seu próprio retrato. Uma pintura retratava Isabela sobre a cama enquanto dormia. Cada parte de seu corpo sob o lençol foi expresso com riqueza de detalhes. Isabela ficou encantada, todavia, lembrou-se do seu tio, da fazenda e de tudo o que aconteceu. Os raios de sol sobre as brechas na parede de madeira a fez notar a claridade que vinha do lado de fora. Ela ouvia sons de águas correntes e do vento balançando as árvores. Pela primeira vez ela saiu da cabana e mal acreditava no que via. Bem a sua frente estava aquela grande pedra e ao fundo, por trás da cabana, o rio com correntes de águas cristalinas rodeado de lindas palmeiras. Isabela caminhou em direção a pedra e, ao olhar em redor, observou toda a área. Assustada, reconheceu o local e não teve dúvidas. Este era exatamente o lugar onde sua mãe estava naquela pintura.
Na fazenda, dona Isadora se angustia com a ausência da neta. “Enterrei minha filha, meu marido e agora minha neta? Ó Deus, por que? Por que? Eu quero minha neta! Vão procurar minha filha! Nessa mata aí fora sozinha. Ó Deus! ” Assim ela dizia. No velho quarto das artes, Marta se reencontra com o marido: “Você sabe onde encontra-la, não sabe? ”. E ele responde: “É claro que não! Já iniciamos a busca por todos os lugares”. Mas, ela insiste: “O Rio Amantes! ”. Então Pedro se altera: “Céus Marta! Até quando? Você mesma disse: ela está morta! Morta! " Pedro se aproxima de Marta, encara-a e fala em voz baixa: "Ele está morto também! O que te faz pensar que a história se repetiria? ”. Ela continua: “Ninguém jamais o achou, mesmo com uma ferida mortal ele nunca foi encontrado”. Então Pedro, segurando firme no pulso dela, a interrompeu: “Ferida mortal. Disse bem. Eu o feri. E digo mais: Nem ele tiraria sua irmã de mim! ”. E pressionando sua esposa contra a parede, disse-lhe: “Disso não posso culpá-lo! ”. Pedro retirou-se. No entanto, foi para o seu próprio quarto, abriu o cofre e retirou uma antiga arma que ali havia. Ele saiu da fazenda cavalgando. Pedro parecia seguir por um caminho de difícil acesso em direção a um rio de águas cristalinas conhecido como “O Rio Amantes”. Seu filho, Lucas, que dantes ouvia atrás da porta toda a conversa, seguia seu pai ao longe...
Sim, talvez a história estaria outra vez a se repetir.... Ou pelo menos parte dela....
(A CONTINUIDADE DA HISTÓRIA PUBLICAREI, SE POSSÍVEL, EM BREVE... JUNTAMENTE COM O LIVRO.)