O ladrão que não sabia roubar
Assim era a vida do mal elemento. Ficava de rua em rua procurando suas presas, aquelas mais fáceis de serem induzidas ao cativeiro. De uma falácia fora do comum traía a si mesmo, dentro daquilo que se pode chamar de interpretação ou fingimento às suas verdades. Na realidade, havia muita maldade dentro daquele jovem tão bem aparentado, de pele cuidada e de um par de olhos jamais esquecidos. Era como uma travessa de carne de primeira, feita ao molho madeira. Suculenta, enchia os olhos e o cheiro alimentava, mas na primeira abocanhada, por baixo era puro angu!
Já era lá pro mês de fevereiro, do ano de 2013. Um mês antes, o cidadão de vulgo Arranha-céu havia feito aniversário, confessou. Parecia que o ladrão queria mesmo era se presentear, e, para se sentir realizado, teria que massacrar a vida da sua próxima vítima. E ele, como quem não jogava pra perder, sondou delicadamente a vida de Estela, uma pessoa tão doada a si e aos outros, de forma muito delicada. Estudiosa e com uma vontade de vencer na vida e superar a doença na qual sofria, navegava tranquilamente por suas redes sociais, quando de repente, uma solicitação na cor vermelha preenchia a tela do seu celular. Hesitou um pouco ao ler a mensagem, mas como o natural era visualizar e responder ao pedido, assim o fez. O assunto não estava rendendo, aliás, ser sorrateiro é coisa pra ratos. Sorrateiros e rápidos para se esconderem dentro do primeiro buraco que encontrarem.
Passados alguns dias, depois que o assunto já estava mais ou menos do jeito que Arranha-céu queria, ou seja, totalmente no total domínio, eis que Estela já estava totalmente apaixonada por Arranha-céu. Por certo que Arranha-céu já havia arranhado o coração da doce Estela. Como ainda sentia algum medo, Estela pensou bastante antes de realizar o convite ao ladrão que se fazia de galanteador para dizimar suas vítimas. Estela era de família rica, possuía uma fazenda herdada de seus avós, numa cidade do interior de Minas Gerais. Lá, na Olhos d'água, Estela estava com uma redoma bem grande de nelores, algumas novilhas e muitos, muitos bezerros e um touro reprodutor, por nome Campeão. A vida de Estela era sua fazenda e seus bichos tão bem cuidados e fortes, aliás, no mês de fevereiro as pastagens estavam em alta, à todo vapor.
O assunto parecia ir bem, até que, Estela teve que fazer o incômodo convite pra Arranha-céu. Claro que, Arranha-céu já estava de cálculo pensado: envolver, conquistar, ser o mais galante possível, e depois esperar que o convite fosse feito, ou seja, Arranha-céu era inteligente e dissimulado, sabia muito bem ludibriar o psicológico das pessoas. Bastando não ficar apenas nisto, em envolver, conquistar e ser galanteador, a proposta do ladrão era de matar, por puro desejo de vingança e ódio. Carregou então dois trinta e oito. Munido e bem preparado apenas aguardava a decisão de Estela.
_ Ciro, sei que já estamos nos falando a um bom tempo, sei também "da sua vida" e você da minha.
Quanta inocência de Estela!
_ Estelinha, eu pensei justamente no mesmo que você está pensando, mas como primeiro são as damas, eu tô aqui totalmente na sua, aguardando a sua decisão. E você sabe que aqui é você que manda, né meu doce?
Estela derretia-se feito uma maria-mole deixada ao sol por aquele prato de carne de primeira ao molho madeira, de assoalho feito de angu!
Os dias foram passando e Estela envolvida e fragilizada, pedindo clemência por carinho e atenção, principalmente para quem aceitara a sua condição de saúde, já que sofria de uma doença crônica bem complicada. Complicada, porém, controlada por meio de muitos medicamentos. Para Estela os medicamentos devolveria-lhe a saúde estável, mas para seu coração, com certeza o remédio certo seria o Ciro, o dito Cujo, pra não dizer, dito Sujo.
Envolvida e totalmente apaixonada e lunática de paixão, já estava certa de que o remédio que salvaria sua vida de uma vez por todas já havia sido lançado no mercado e anunciado na revista científica mensal de Sem Peixe. Derretida, lerda e vulnerável como uma marionete ou uma ovelha lesada e levada ao abate, entregou-se definitivamente pra Arranha-céu, o Ciro, o Cujo, o Sujo. Fevereiro então prometia na cidade de Sem Peixe, onde em todos os carnavais era dia de muita folia junto ao bloco dos fazendeiros. Estela convence o Ciro do tão esperado encontro. Deveria ter sido ao contrário, mas o prato de angu sabia bem ganhar suas paradas. E ganhou. Estela ainda teve uma pequena insegurança ao marcar um encontro antecipado antes do carnaval, na rodoviária de Sem Peixe, mas marcou. Estava de vestido branco rendado, trabalhado de algumas rendas douradas na barra e nas mangas, do tão delicado vestido. Tinha cabelos negros e longos, olhos bem vivos, delineada por uma maquiagem leve, contornando assim, o rosto angelical da moça do coração vazio! Aliás, à esta altura do campeonato, sentia-se como vazia, mas não mais, até a chegada de Arranha-céu em sua vida. O encontro foi o mais encantador possível e Estela tinha certeza de que a ciência estava a seu favor por tão feliz descoberta!
_ Agora posso viver! Agora posso viver! Dizia a vítima de Arranha-céu, através dos muitos suspiros e sentimentos tão bem preenchidos.
Passaram o dia inteiro juntos, nem um beijo rolou quando da rodoviária rumaram para a praça da cidade, na orla de uma lagoa. O ambiente era propício: lagoa, praça, muito verde, calmaria, pessoas indo e vindo de suas caminhadas, muitos pássaros. Na beirinha da lagoa muitas tilápias decoravam ainda mais aquele cenário que a levaria pra sua última consulta e teste, do tão esperado medicamento que lhe ceifaria a alma definitivamente.
O dia dos dois pombos se resumiu entre sucos naturais e água-de-coco, entre declarações e objetivos muito bem explanados e promissores. Estela sentia-se como troféu nas mãos de Arranha-céu, um verdadeiro primor de homem. Dissimulado, dominador, esperto, inteligente, conquistador, amável e ainda por cima, lindo! Estela estava na glória, indubitavelmente.
A tarde então chegou sob o sol que se escondia atrás da lagoa Esperança, bem tímido e de um tom laranja arrebatador. Estela, certa de que diante de si estava a sua salvação para a vida, mais que depressa lança o convite para Arranha-céu para passar o carnaval ao seu lado, na cidade de Sem Peixe. A fazenda seria o ninho dos pombos, recém enamorados. Arranha-céu sabia que sua presa estava lhe dando todas as coordenadas para o ato que a levaria para a morte. O carnaval de Arranha-céu e Estela durou exatos um ano, tempo hábil para que o dito Sujo tiraria sua máscara e revelaria quais eram seus objetivos. Estela, certa de que tudo iria ficar bem, afinal, fora conquistada por longos meses antecedentes do referido carnaval, no ano de 2013.
E sofreu nas mãos do ladrão, ficou em cárcere privado, totalmente entregue àquele mal elemento tão sedutor. Mas Estela amava, amava o que não era pra ser amado nem encontrado um dia. Sua munição dos dois trinta e oito fora descarregado sobre o peito de Estela, sua fazenda saqueada, seus bichos envenenados, seu carnaval ficou sem folia! O remédio havia se transformado no veneno mais letal que ela poderia ter encontrado. Arranha-céu ceifou a vida da ternurenta Estela, da pior forma que se podia imaginar. O desejo de matar de Ciro era tão grande que mesmo enquanto assassinava Estela, mesmo assim ainda se declarava para a doce.
Estela não conseguiu sobreviver aos domínios de Ciro, definhou ainda mais a sua saúde, faltava-lhe apetite para a vida, para a comida, para a família e para os objetivos tão naturais na vida de todos os seres de bem. Mas Estela amava com um amor tão grande, mas tão grande, que quase que entregou sua vida por amor àquele ladrão tão bem preparado.
Era de uma frieza e ao mesmo tempo de uma lábia tão convincente, que ninguém escaparia com tanta facilidade daquele foragido da vida e dos valores mais comuns ao homem. Depois do assassinato, desferiu ainda alguns golpes no singelo rosto de Estela e o sangue escorria face alva abaixo, juntamente com umas poucas lágrimas. Estela então esfrega as mãos no rosto meigo, enxuga as lágrimas da alma que já haviam se misturado ao sangue, totalmente cor de púrpura. Mas Estela amava o Ciro, o Sujo, o dito Cujo, o Arranha-céu!
Assim foram os dias de Estela, a vítima que amava ser vítima, não por que queria, mas por que em seu coração havia vida. Arranha-céu partiu, deixando Estela e suas sequelas, onde uma cicatriz muito forte agora fazia parte de toda a ornamentação do rosto doce da meiga moça. Mas Estela amava Arranha-céu, não havia nada mais o que fazer. Passados alguns anos, Arranha-céu e Estela se reencontram, por ironia do destino. Já "morta" e totalmente sem reações vitais, o cenário escolhido seria o cemitério da cidade de Sem Peixe, norte de Minas.
E ali, Arranha-céu, Ciro, Sujo e Cujo, velaram a alma de Estela, entre alguns sorrisos e abraços, umas risadas bem forçadas, uns sorrisos bem sem vida e sem verdades. O perdão chegara ao coração de Estela e ocupara o lugar do amor. Sincero e límpido como as águas da lagoa Esperança. Arranha-céu esboçou em algum momento lágrimas ralas de arrependimento, mas era tarde diante do cadáver premeditado de Estela.
Os dois trinta e oito de Ciro não estavam carregados de balas, mas de alguma desilusão recente em sua vida. Estela investigou e chegou à conclusão das atitudes de Arranha-céu. E assim, os dois viveram felizes e infelizes para sempre. A mancha no coração de Estela veio pra ficar, no coração de Ciro, talvez, em algum momento, ele deve ter se reiterado de que não vale a pena ferir nem física e muito menos psicologicamente o coração das pessoas. Estela, munida de seu perdão e de suas cicatrizes pela face, perdoou Arranha-céu, promoveu a amizade mais intensa de sua vida, recheada de sentimentos que confundiam ainda mais o anjo em forma de gente.
Estela aprendeu a se proteger, enrijeceu o coração macio feito de cera, valoroso de porcelana, vidado feito de vida, de amor, de ternura, e segue sua vida meio morta e meio viva. O tiro maior acertara o órgão vital da moça que por pensar que os remédios dos homens são mais eficazes que os de Deus, acabou tendo sua vida ceifada, destroçada, marcada, e muito mais que isto: preparada!
Tudo que Arranha-céu não poderia ter feito era de ter entrado armado na vida de Estela, não com aquelas armas que ele tinha. Mesmo assim, Estela amava Arranha-céu, já Ciro, o Arranha-céu, vive hoje à procura de Estela por todos os lados, todos os locais, todas as cidades. Mal sabe ele que Estela vive nos céus, ao lado de Deus e dos anjos, por que lugar de anjo é ao lado de anjo. Estela amou Arranha-céu. Se Arranha-céu amou Estela, infelizmente era tarde demais para se ter chegado à conclusão. O coração de Estela anda quase que curado, assim como a doença crônica que enfrenta.
De vez em quando vem uma dor daqui, outra de lá, mas Estela sabe que lugar de ladrão é na cadeia, atrás das grades. E é justamente lá que Arranha-céu vive, eternamente. Estela escreveu o nome de Arranha-céu na sola do seu pé esquerdo, justamente para que ele pague e reflita, que não se pode brincar com anjos, com alma e com a verdade dos outros, por mais simples e desprotegidas que as pessoas sejam.
E os dois seguem sem muito assunto. Estela está curada e observa Arranha-céu pelas grades da vida que está entregue!