AMOR EM TEMPOS DE ÓDIO IV
IV
O último testemunho
Castelo forte é nosso Deus
Espada e bom escudo
Com seu poder defende os seus
De todo transe agudo
(Ein Feste Burg Ist Unser Gott - Lutero)
O tempo transcorreu célere sobre os eventos anteriormente narrados. André e Jerome seguiam no seu mister de cuidar dos mais necessitados, vendo nestes últimos a família que lhes fora destinada pela Providência para cuidar e proteger. Na França, as turbulências políticas se agravavam consideravelmente. O almirante Coligny, líder dos huguenotes, sobrevivera a um atentado que iria se tornar o estopim da maior carnificina perpetrada no país naquele século XVI tão prenhe de ódio sectário e intolerância generalizada: a Noite de São Bartolomeu.
Dias antes dessa tragédia nefasta, a congregação subterrânea de Montparnasse acolheu em seu seio uma imensa leva de refugiados, sobreviventes das primeiras ondas de matança que em breve afogariam o país num maremoto de sangue e carnagem. A esperança acalentada por esses infelizes é que a capital francesa não fosse deglutida pela voragem de horror que grassava os arredores, ignorando que Paris estava para se converter no epicentro de uma das maiores calamidades políticas e religiosas da Idade Moderna.
O conde de Flandres e o capitão renegado de Nantes multiplicavam esforços no sentido de salvaguardar as ovelhas do seu aprisco, contudo, o cenário se revelava cada vez mais inóspito. Embora as galerias de Paris pudessem comportar uma quantidade significativa de pessoas, as informações que viam do exterior eram sobremodo desanimadoras. O casamento de Margot de Valois e Henri de Navarra, longe de pôr fim às crescentes animosidades entre católicos e protestantes, parecia haver lançado ainda mais combustível à fogueira do ódio, cujas labaredas não cessavam de se elevar em direção ao céu. Por fim, o atentado contra Gaspard de Coligny, levado a efeito por um dos lacaios de Catarina de Médicis, inflamou os ânimos dos huguenotes e deu aos partidários da Coroa o pretexto perfeito para desfechar uma ofensiva mortífera contra os seus desafetos reformistas.
Jerome se inteirava de tudo por meio dos seus agentes de Nantes e dos contatos que mantinha em Paris. Na noite de 22 de agosto, quando ele tomou conhecimento do sinistro envolvendo o líder dos calvinistas, ficou claro que precisavam agir com a máxima presteza a fim de evitar que aquelas catacumbas se tornassem o palco de um massacre para o qual não haveriam quaisquer chances de defesa. André, seguindo o alvitre do companheiro, deu-se pressa em evacuar com a máxima presteza as imensas levas de refugiados pelos labirintos que conduziam para fora da cidade através do Seine. Com a ajuda de alguns colaboradores da congregação, fez com que muitos deles chegassem até a propriedade que mantinha em Flandres, ao passo que outros demandariam às Dezessete Províncias ou mesmo à Saxônia, berço da Reforma e onde o catolicismo não mais dispunha do poderio opressivo e perverso de que ainda gozava na França.
A pavorosa matança que entraria para a História com o epíteto de Noite de São Bartolomeu, foi apenas o prólogo de uma série de chacinas orquestradas pelos partidários do Louvre e que perdurou por pelo menos dois meses. Entre 23 e 24 e de agosto de 1572, o Inferno se materializou nas ruas de Paris com matizes que nada deixariam a desejar à descrição constante no poema de Dante. Católicos e protestantes cruzaram armas com uma fúria absolutamente indescritível, mas os primeiros prevaleceram e puseram de lado todo e qualquer resquício de pudor ou decência para com os seus antagonistas depois de prostrá-los. De vivendas humildes, passando por estalagens, até os castelos de nobres convertidos ao protestantismo, nada sobrava incólume. Homens, mulheres, crianças, velhos, inválidos e até mesmo os animais eram estraçalhados com uma sanha simplesmente demoníaca, enquanto se pilhavam os haveres que porventura possuíssem. O rio Seine se tingiu de escarlate devido às torrentes de sangue vertido pelas ruas da capital, ao mesmo tempo em que magotes de cadáveres se acumulavam no seu leito e ao longo das vias públicas.
Foi este o cenário que se abateu sobre a congregação de Montparnasse, justamente quando André e Jerome tentavam impedir que mais mortes acontecessem. Villeneuve já antevira tal situação e se dera pressa em buscar reforços entre os seus comandados simpáticos à Reforma, para o caso de uma ofensiva legalista sobre o santuário huguenote. Três dias antes de espocar o genocídio, o militar solicitou a André e aos demais líderes da comunidade, que lhe permitisse comunicar aos fieis acerca da situação e das resoluções que tomara.
De forma sucinta, o capitão de Nantes expôs o panorama político da capital e a necessidade imperiosa de se prepararem para o pior. Um dos seus agentes já o pusera a par do plano de matar Coligny e das conseqüências devastadoras que far-se-iam seguir a esse desiderato macabro emanado do Louvre. À medida que ele falava, os semblantes que compunham a audiência migravam da surpresa para a apreensão e desta para o terror. Sentia-se horrível por atuar na qualidade de porta-voz da calamidade, mas não havia escolha. Cabia aos membros daquela comunidade decidir se prefeririam unir-se aos trânsfugas que demandariam à fronteira, ou se optariam por permanecer ali, mesmo sabendo do sangrento epílogo que aguardava a cada um dos que decidissem permanecer sob a bandeira da resistência. Os mais saudáveis poderiam, sem embargo, deixar Paris antes que a cidade se convertesse num imenso matadouro. No entanto, o que seria dos enfermos? Ficariam à mercê dos carrascos reais, que viriam empunhando a cruz para justificar a infâmia que haveriam de perpetrar, sem sequer poderem esboçar uma última reação contra os chacais do Louvre? Essa perspectiva era de longe a mais terrível e tanto André quanto Jerome já haviam deixado claro que não abandonariam os necessitados à mercê de todo esse horror.
Foi quando um dos circunstantes o interpelou, referindo-se aos seus contatos junto à Coroa:
- E se apelássemos para a Rainha-Mãe? Ela é assaz pia, não há de querer tingir as mãos de sangue com uma matança tão odiosa.
Jerome enquadrou o interlocutor com um sorriso onde se liam desespero e zombaria:
- Catarina? Poupar huguenotes? Deliras certamente, meu caro! Contar com a clemência da Rainha-Mãe é como esperar que a leoa poupe o cordeiro, depois de devorar o lobo que o perseguia.
Foi a vez de André exclamar com desalento:
- Então não nos cabe senão aceitar nosso destino. O Senhor envia a provação aos seus servos a fim de auferir a sinceridade de propósitos dos mesmos. Contudo, a perspectiva de ver o rebanho inteiro ser devorado pelos lobos rapaces revolta-me o espírito até as entranhas...
O desalento inicial, porém, logo deu lugar a uma onda de entusiasmo místico, típica dos grandes mártires da cristandade primeva quando defrontados pela inexorabilidade do destino e ele se ergueu alçando a destra:
- Não! Mil vezes não! – bradou como se quisesse expulsar os demônios da dúvida que lhe sopravam nos ouvidos – Hei de lutar para defender as ovelhas que me foram confiadas, pois é este o dever de um bom pastor: dar a vida pelo seu rebanho!
O capitão rebelado deteve-se a contemplar o pastor huguenote com o enlevo característico dos apaixonados pelo seu objeto de afeição. Jamais André lhe parecera tão belo quanto naquele instante inolvidável. A resolução inquebrantável que o movia não se arrefecera mesmo diante da adversidade, antes o fizera ainda mais tenaz. Acercou-se do amado e, pousando a mão com delicadeza em seu braço, declarou:
- Não é justo que apenas o pastor o faça. Tampouco que ele pereça na guarda de seu aprisco. A minha espada está a vosso dispor.
- Não sou um guerreiro, mas o meu braço é suficientemente forte para dar combate aos bastardos do Louvre – disse um velho maltrapilho – Essa gente jamais nos enxergou como seres humanos, embora se declarem cristãos e tementes a Deus! Não vamos admitir que destruam impunemente o único reduto de esperança que nos restou nesse mundo sem entranhas!
- Também lutarei! – declarou uma jovem meretriz – Meu corpo foi violado por este mundo corrupto, mas a minha alma pertence ao Senhor e eles jamais poderão poluí-la!
De todos os pontos brotaram vozes prometendo resistência à tirania do Louvre. Aquela gente marcada pela exclusão aprendera finalmente que havia diferenças gritantes entre o discurso farisaico da Igreja e a mensagem libertadora do Evangelho que o verbo inspirado e afetuoso de André lhes comunicara diretamente à própria alma. À semelhança da parábola do semeador, eles eram a terra fértil onde frutificara o chamado imortal do Nazareno. A perversidade fanática dos partidários da Coroa já não era mais capaz de dobrar aqueles espíritos temperados no fogo da adversidade.
Veio afinal o aziago dia da matança. André e Jerome haviam conseguido evacuar a franca maioria dos abrigados, permanecendo apenas os que já haviam manifestado a firme resolução de afrontar as bestas famélicas do Louvre, tal qual os antigos cristãos faziam com os leões esfaimados nos circos do martírio de outrora. Cairiam cantando e lutando com denodo para impedir que a sanha homicida dos partidários de Guise e de Catarina alcançasse os trânsfugas que rumavam para fora do território francês, de maneira que mesmo o seu sangue pudesse se converter na seiva vivifica que faria frutificar o anseio da liberdade de pensamento e de crença no solo francês.
À testa de um pequeno contingente de pouco mais de setenta milicianos composto por soldados e populares, Jerome se dispôs a guardar a entrada leste da galeria. Sabia que era apenas uma questão de tempo até que as hordas do Louvre invadissem a necrópole para desferir o golpe fatal naquele reduto huguenote. O satânico furor da soldadesca real a nada respeitava e já era certo que não teriam quaisquer pudores de saquear o cemitério e violar túmulos para cevar a sua sede de sangue e rapina. Se os vivos não eram merecedores do mais comezinho respeito de sua parte, certamente não seriam os mortos que viriam a merecer a sua comiseração.
Embora não denotasse a mais leve sombra de temor aos seus comandados, o capitão renegado de Nantes implorava mentalmente aos Céus que lhe concedessem o discernimento necessário para liderar aqueles homens na que sabia ser a sua última batalha. Já combatera muitas pugnas, mas em nenhuma delas havia lutado por uma causa que esposasse por vontade própria. Fora sempre um sabujo cumpridor de ordens da realeza. Ali, no entanto, as circunstâncias eram totalmente diversas. As tropas reais que antes liderara seriam agora os seus antagonistas. Decerto iria divisar rostos conhecidos com os quais iria cruzar espadas e cujas vidas iria ceifar sem titubear, desde que lhe fosse dado garantir que pelo menos o maior contingente de enfermos pudesse deixar os subterrâneos em direção a algum sítio onde estivessem em segurança.
O objetivo não era impedir a invasão, mas sim ganhar tempo. O máximo possível, até garantir que apenas os aptos a empunhar armas e que já haviam deliberado fazê-lo pudessem dar combate às hienas reais e obstar o avanço das falanges homicidas da Coroa através dos túneis de Paris.
Recordou, num átimo, o derradeiro encontro com André, antes de se dirigirem cada um aos seus respectivos postos na defesa do santuário. Apenas alguns minutos na mesma enfermaria em que lhe revelara a sua verdadeira identidade e confessara o seu pesar por ter servido ao duque de Guise.
- Lastimo ter te arrastado para isto, meu amigo – iniciou o pregador com um sorriso amargo – Se não me houvesses conhecido, certamente terias a dita de uma família e de uma vida longa e próspera. Pesa sobre mim o fado tenebroso de levar à morte tudo aquilo que mais amo...
Jerome enxugou-lhe uma lágrima que corria furtiva pela face, osculando-lhe o rosto logo em seguida.
- Eu lastimaria jamais ter te conhecido! – retrucou o convertido com os olhos igualmente rasos d’água – Tive a vida mais longa e próspera que jamais poderia sonhar e me deste a mais magnífica família que um homem pode ter! Morrer em nome daquilo em que acredito e daqueles que amo é muito mais do que eu mereço. Jamais serei suficientemente grato a Deus por ter unido os nossos caminhos desta forma.
Selou o agradecimento com um beijo cálido. Abraçaram-se chorosos enquanto deprecavam o amparo do Alto para o agudíssimo transe que se avizinhava. Em seguida, reuniram pela última vez a congregação, cujo número, apesar de diminuto em virtude das evacuações, era ainda significativo. Duzentas e onze pessoas, somando-se o pregador e seu companheiro desertor das hostes reais. Pela última vez, André se dirigiu ao seu rebanho, fazendo-o como um pai que sabe chegada a hora de dizer adeus aos rebentos de seu coração:
- Irmãos e irmãs em Cristo – principiou com a mesma voz vibrante de sempre, mas agora embargada pelo pranto que tentava conter a custo – é chegado o momento de nos despedirmos. Desde o nascimento, sabemos da morte como única certeza que assinala a nossa passagem pelo mundo e, embora tenhamos firmado uma aliança inamovível com o Salvador Redivivo, ainda somos suficientemente humanos para experimentar temor quando do advento da hora extrema. A vida na Terra, por mais longa e venturosa que seja, deve terminar um dia e nenhuma ventura terrena se compara à alegria infinda reservada àqueles que se mantiveram fieis à observância dos princípios de amor e fraternidade do Excelso Messias Nazareno. Despeço-me de cada um de vós ao mesmo tempo em que agradeço imensamente por ter podido desfrutar de vossa companhia. O aprendizado convosco foi contínuo e sempre gratificante. Aprendi com cada um de vós que o amor de Deus se manifesta de muitas e variadas formas, tantas que a nossa mesquinha compreensão humana não é capaz sequer de cogitar. Amei muito e sei bem o quanto fui amado. Em estando convosco, pude finalmente entender o significado da mensagem do Senhor, quando afirma que o Reino de Deus está dentro de cada um de nós.
Um soluço irrompeu do seu peito e ele se viu forçado a interromper a prédica por alguns instantes.
- Doravante – prosseguiu com a voz entrecortada pela emoção – haveremos de estar com o Salvador dentro em pouco. A apreensão e a incerteza pungem mais profundamente do que a dor do trespasse, isto é certo. Mas sigamos arrimados no exemplo do Rei dos Reis! O exemplo de alguém que não abdicou de sua Majestática Grandeza mesmo sob o guante dos apupos, das humilhações, dos açoites, da coroa de espinhos e do madeiro de ignomínia! Tomemo-Lo como modelo, prontos que estamos para receber os algozes. Eis que os lobos afiam suas garras e lambem suas presas, antevendo o hediondo banquete de carnagem que irão promover pelas ruas de Paris, mas nos encontrarão aqui, de pé, prontos para receber o golpe fatal sem abdicar da dignidade de quem entregou a vida ao Senhor. À semelhança dos primeiros mártires do Evangelho, somos chamados ao testemunho supremo, devolvendo ao Criador a vida que nos foi dada, ao mesmo tempo em que entregamos nossas almas aos seus Celestes Cuidados. Não tremais! As espadas e lanças do Louvre podem fazer jorrar rios de sangue, mas o Trono de Deus jamais deixará de manar a Água da Vida que aplaca a sede de alento de todos quantos busquem trilhar os Seus caminhos. Os tiranos da Terra podem engendrar mil modos de semear dor e sofrimento, mas Jesus continua sendo insuperável em Sua capacidade de converter o pranto em riso, a dor em júbilo e a morte em vida. À semelhança do caro apóstolo dos Gentios, possamos dizer do fundo de nossa alma: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé!”(1)
Um murmúrio de aprovação se elevou da galeria. A assembleia ali reunida sabia que não mais viria a se congregar naquele santuário subterrâneo. Pressentindo a iminência do fim, todos entoaram o cântico "Uma poderosa fortaleza" (2). O próprio André redigira uma versão em francês do célebre hino composto por Lutero e que, naquele instante, emergia das profundezas de Paris como o último preito de gratidão ao Criador de todas as coisas. Em seguida, todos os fieis se abraçaram ao pastor reiterando agradecimentos e rogando aos Céus que o abençoassem profusamente por todo o bem que lhes prodigalizara.
O rumor horrendo da matança casado ao badalar dos sinos de Saint-German l’Auxerrois veio arrancar Jerome do seu devaneio. Brados de desespero implorando por piedade, choro, urros inumanos, pragas, blasfêmias, o tinir do metal das couraças e das armas ceifando vidas, tudo isto se conjugava numa autêntica sonorização do Inferno que se materializava sobre a Terra, ganhando as ruas de Paris e afluindo célere para os portões de Montparnasse.
Um estrondo lúgubre soou na superfície e se entranhou pelo subsolo, denunciando a queda da primeira barricada. O alarido selvagem da soldadesca, seguido do som das ferraduras a retinir nas rochas do subterrâneo tinha algo de monstruoso, como se o Apocalipse acabasse de se deflagrar sobre a Terra e avançasse impiedoso na direção dos últimos remanescentes daquele núcleo cristão.
Villeneuve respirou fundo e voltou-se para o seu pelotão, assumindo a postura comum ao comandante que sempre fora:
- Em guarda, soldados! Erguei a voz e que os Céus guiem nossos braços a fim de obstar o avanço dessa maldita horda de assassinos.
Não foi necessário repetir a ordem. Prontamente o destacamento alçou a voz, marcando o compasso da melodia com as armas e os escudos que empunhava. O hino composto por Lutero e que seria cognominado pelos pósteros de “A Marselhesa da Reforma Protestante” reboou pelas paredes da galeria, tímido a princípio, para soar com a pujança de um trovão logo em seguida. A melodia só cessou quando o inimigo finalmente adentrou o campo de batalha e contemplou o diminuto contingente que se dispunha a lhes impedir o avanço.
Quando os alabardeiros reais assomaram no corredor de pedra, seguidos de um destacamento de cavalaria que a muito custo conseguira penetrar no recinto, o líder do pelotão fez alto para os seus comandados e dirigiu-se a Jerome com risos de galhofa e provocações soezes:
- Ora, se não é o capitão Villeneuve em pessoa! Então os boatos eram mesmo legítimos. Tu de fato abjuraste da fé cristã para abraçar esta odiosa heresia calvinista! Que fim tão melancólico para um soldado tão valoroso: encerrado no subsolo junto com estes vermes conspiradores! Eia, soldados! Matai a todos!
O convertido não se deu ao trabalho de responder às chalaças do preposto do Louvre. Ao invés disto, ergueu o braço esquerdo e deixou-o cair de uma só vez, sinalizando para os rebeldes ocultos nas sombras que chegara a hora de agir. Mal completou o gesto seguiu-se um ribombo atroador, como se as rochas da galeria fossem se destacar do teto e esmagar todos que ali se demoravam. Gritos e relinchos ecoaram pelo subsolo, fazendo-se acompanhar de um imenso alude composto por rochas, cavalos e cadáveres de membros da guarda real que soterrou pelo menos metade da guarnição que acabara de chegar aos subterrâneos de Montparnasse. O riso de escárnio do comandante transmudou-se de imediato numa careta de angústia e estupefação.
- Detonamos a carga de pólvora instalada na entrada da galeria – adiantou-se Jerome com um sorriso de triunfo – Vós adentrastes a morada da morte e esperáveis regressar impunemente ao mundo dos vivos depois de cevar vossa crueldade? Pois devo advertir-vos: aqui ficaremos todos, católicos e huguenotes, tão mortos quanto os ossos que enxameiam estes subterrâneos.
O chefe dos alabardeiros parecia não acreditar no que acabara de acontecer.
- Muito sangue já foi derramado pelas vossas mãos pérfidas, patifes! Agora – bradou o capitão de Nantes desembainhando a espada – seremos nós a fazer jorrar o vosso sangue! Huguenotes, avançar!
O pelotão rebelde se precipitou sobre a hoste real com a voracidade de um bando de tigres esfaimados. Encurralados pela avalanche que lhes vedara a saída, alguns acabaram sendo pisoteados pela própria cavalaria, enquanto os soldados que os montavam tornavam-se alvos fáceis para os mosquetes que cobriam a retaguarda dos defensores do santuário. A primeira ofensiva fora um sucesso. Jerome dera cabo da primeira leva de invasores sem uma única baixa em seu contingente e o túnel de acesso estava vedado em caráter definitivo.
Mas não havia tempo para comemorar. Aquela era apenas a primeira de muitas batalhas que selariam o destino da congregação de Montparnasse e Villeneuve não ignorava isso.
- Para a entrada norte! – ordenou enquanto se dirigia a toda brida para o próximo destino, sendo prontamente seguido pelos demais.
Mais ribombos se faziam ouvir, anunciando o espocar de novos confrontos nos túneis adjacentes.
- Capitão! – informou um dos soldados – Neste ritmo estaremos todos aprisionados nas catacumbas dentro em breve.
- Assim como os lacaios do Louvre e os assassinos de Guise – ripostou Jerome sem sequer voltar o olhar para o subordinado – Quanto mais conseguirmos atrair esses demônios para cá, menos horrores eles poderão perpetrar na superfície e poderemos castigá-los exemplarmente por usar o nome do Cordeiro para os fins execrandos a que se propõem.
Alcançaram a entrada norte e puderam reforçar a ofensiva contra os invasores. Em seguida, reuniram-se todos os defensores de cada setor e rumaram para o átrio principal do santuário, onde deveriam esperar pela investida final. Uma vez bloqueados todos os acessos que comunicavam com a necrópole, restava aos sitiantes atacar pela única via que restara intacta: a margem do Seine.
André e um grupo de fieis armados guardavam o acesso para o rio, quando Jerome e os demais se juntaram a eles. Nenhuma baixa ocorrida até ali. O resultado não poderia ser melhor. No momento em que a última leva de invasores tocasse em terra, a congregação inteira haveria de lhes dar combate. Lamentavelmente, a História jamais viria a tomar conhecimento da heróica resistência dos duzentos e onze de Montparnasse, assim como do seu esforço no sentido de obstar que mais vidas inocentes fossem ceifadas pela sanha fratricida que se apossara de Paris naquela noite treda.
Quando se deparou com o companheiro empunhado uma espada, Jerome não pôde sopitar um último chiste:
- Jamais imaginei que viveria para ver um pastor pegando em armas...
Chauvagne olhou-o de soslaio e devolveu-lhe a pilhéria:
- O pastor também é um conde e todo membro da aristocracia tem o dever de saber usar uma espada – declarou com um sorriso levemente debochado.
Não houve tempo para alongar a tertúlia. O som de uma trompa de guerra ecoando pela galeria que marginava o rio fez com que todos se voltassem para os portões da entrada que, a esta altura, se encontravam devidamente cerrados. A um sinal de André, posicionaram os dois canhões que Villeneuve conseguira trazer secretamente de Nantes para a defesa da congregação e que, minutos antes, servira para esmagar os primeiros invasores nas entradas principais do santuário.
- Eis que chegam os malditos! – disse o ferreiro Beauharnais adiantando-se para as bombardas e sendo seguido pelos companheiros que já carregavam as bocas de cada arma para o assalto final.
Um grupo de vinte mosqueteiros posicionou-se atrás dos canhoneiros mirando para os portões de carvalho, que já começavam a ceder aos primeiros golpes de acha d’armas e de alabarda desferidos pelos sicários legalistas. Alguns dos atacantes vindos do exterior já posicionavam mosquetes e carabinas por entre as frestas abertas na madeira. Foi o suficiente para que Jerome bradasse a plenos pulmões:
- Fogo à vontade!
As bombardas rugiram horríssonas, sendo imediatamente seguidas pelos mosquetes huguenotes. Do lado católico da pugna, estilhaços de madeira e projéteis rompiam armaduras e dilaceravam corpos. A resposta veio imediata e pelo menos quinze rebeldes foram prostrados pelas tropas reais. A umidade do ambiente casada ao espocar das armas de fogo cobriu o lugar com um espesso véu de fumaça branca, o que permitiu aos demais atacantes seguir para o combate corpo a corpo, ainda que às cegas. Alabardas e achas d’arma; espadas; lanças; punhais; clavas improvisadas se entrechocavam com inaudito furor, fazendo-se acompanhar dos gritos e urros inumanos que compõem a orquestra repugnante dos campos de batalha.
Em questão de minutos o átrio do santuário huguenote converteu-se num matadouro. Corpos mutilados de católicos e huguenotes se amontoavam aqui e ali, despidos de todo o orgulho sectário e reduzidos à justa insignificância com que a morte sabe punir exemplarmente a arrogância humana. Alguns servindo de apoio para os companheiros e antagonistas que os pisoteavam no furor incontrolável da pugna, vindo alguns desses mesmos litigantes a tombar logo em seguida, para fazer parte das macabras elevações de carne que agora compunham a geografia daquele subterrâneo.
Inferiores em número, os rebeldes davam tudo de si no sentido de prostrar o máximo de contendores ou de pelos menos deixá-los gravemente feridos. Precisavam resistir por mais algum tempo, até garantir que os últimos refugiados deixassem Paris através dos túneis. Todos sabiam que a vitória contra as forças reais estava fora de cogitação, mas não poderiam permitir que aqueles sicários alcançassem as crianças, os velhos e os enfermos que, a esta altura, já deveriam estar pelo menos a caminho de Rouen descendo o Seine. As mulheres que ingressaram na luta – quase metade da congregação reunida naquela última noite – deram provas de um denodo sem igual, como se cada uma delas houvesse herdado a alma da própria Jeanne D’Arc ao empunhar uma espada. Bastará dizer que nenhum dos prepostos da Coroa logrou êxito ao bater-se com elas corpo a corpo, o que obrigou os mosqueteiros e carabineiros do Louvre a alvejá-las a distância, antes de mergulhar no combate propriamente dito.
Dos cerca de trezentos homens que invadiram as catacumbas pelo portão do Seine, menos de cem viveram para se lembrar de haver sobrevivido a mais dura batalha daquele sangrento 24 de agosto. Do lado protestante, a situação era ainda mais alarmante. Apenas vinte e sete litigantes, incluindo o pastor e o capitão de Nantes, haviam sobrevivido. Quando os últimos mosqueteiros huguenotes foram prostrados, somente os lanceiros e os espadachins ainda lograram resistir ao assédio legalista, adotando uma formação em círculo para rechaçar os atacantes, à semelhança da manada de bisões contra os coiotes famintos. Bastaria ao alabardeiros brandir as armas para encerrar o combate, mas o comandante católico os impediu de atacar.
- Faço questão de ceifar pessoalmente e diante de todos, os dois sediciosos que encabeçaram este movimento sacrílego – declarou o líder das tropas reais enquanto avançava por entre os seus comandados retirando a espada da bainha.
Jerome reconheceu de imediato aquela voz, mas custou a crer que fosse verdade o que ouvira. Apenas quando o viu destacar-se do meio da soldadesca é que pôde constatar que não delirava: Henri de Lorraine em pessoa viera liderar o assalto à congregação.
- Guise! – exclamou o capitão renegado com um misto de incredulidade e nojo.
- Sim, capitão Villeneuve – retorquiu o duque com um sorriso mefistofélico – Julgavas que eu deixaria passar a oportunidade de punir pessoalmente a tua dupla deserção, à Coroa e à Igreja? Vim certificar-me de que o aço da minha espada franqueará os portões do Inferno para ti e para o imundo conde sacrílego que resolveste defender!
- Só o farás se o aço da minha espada não te franquear antes o caminho para o Inferno, assassino infame! – retrucou Jerome avançando resoluto em direção a Guise.
- Abri caminho, soldados! – ordenou o senhor de Lorraine – O desertor é meu! Não abro mão do privilégio de sangrar este patife como a um porco no matadouro!
Antes que a espada do capitão de Nantes encontrasse a de Guise, André se interpôs com a celeridade de um raio brandindo o seu florete contra o inimigo. A súbita reação do companheiro deixou Jerome atônito.
- É a mim que buscais, Guise! – provocou o pastor de Flandres precipitando-se resoluto contra Henri de Lorraine – O “imundo conde sacrílego” que seduziu o teu subordinado e que plantou a semente de uma conjura huguenote nos subsolos de Paris!
O duque assentiu com um esgar pedante na catadura patibular:
- Que assim seja! Terei o prazer redobrado de esmagar os dois vermes sob a sola de minha bota!
Jerome atirou-se enfurecido contra Guise, mas foi detido em sua trajetória por um alabardeiro. Cego de cólera como estava, o capitão renegado desferiu uma saraivada de golpes contra o soldado que, não sendo páreo para um dos melhores espadachins da França, tombou exânime numa poça de sangue após receber uma estocada fatal na garganta. Livre do oponente tentou avançar, mas foi novamente obstado, desta vez por dois espadachins.
Nesse ínterim, André arremetia decidido contra o duque que, mesmo sendo exímio esgrimista, experimentava dificuldades cada vez maiores com o seu oponente. O conde de Flandres acuava-o de tal forma que ele acabou indo dar de costas com um dos soldados que se batiam com Jerome. Este último acabara de prostrar um dos atacantes com um talho tão profundo no pescoço que a cabeça por pouco não se destacou do corpo. De maneira que com isto o combate adquiria ares de igualdade: dois contra dois.
O duelo que se desenrolava ali tinha qualquer coisa de fantástico. Os demais combatentes haviam abandonado o desejo de lutar e se rendido à qualidade de expectadores. Diante deles, o líder das tropas reais e um de seus comandados mediam forças com as duas lideranças daquela congregação, numa pugna épica que traduzia muito bem a força da convicção ideológica que guiava cada lado envolvido no litígio. Por fim, Jerome desarmou o oponente e perfurou-lhe o baixo ventre, fazendo brotar da ferida um jato rubro por onde se escoou toda a vida do infeliz.
Guise foi cercado pelos dois huguenotes e estaria em apuros se não conseguisse tomar a espada do morto ao seu lado para seguir duelando contra Villeneuve e Chauvagne. Forçado a esgrimir como ambidestro, Henri de Lorraine sabia que as suas chances seriam cada vez menores se prolongasse aquele combate indefinidamente. Restava-lhe uma única alternativa: golpear os dois contendores a um só tempo e foi exatamente o que fez. Com um meneio de cabeça, sinalizou para um dos lanceiros atacar à traição e André foi trespassado. A lança mergulhou em suas costas e emergiu na caixa torácica trazendo sangue e fragmentos de ossos, depois de romper as costelas e rasgar os pulmões do pastor de Flandres, que largou a espada e foi ao chão depois de violenta hemoptise.
Jerome emitiu um brado desesperado ao ver o companheiro ser atingido:
- Não! André! Não! – e voltando-se para o traiçoeiro atacante – Cão imundo! Pagarás com a vida por esta infâmia!
Possesso de fúria, o capitão de Nantes decapitou o lanceiro com um único golpe, mas foi igualmente surpreendido. Ao desviar a atenção do ataque contra Guise, o duque se valeu da oportunidade para perfurar o fígado de Jerome. Ele ainda se voltou para Henri com os olhos injetados de cólera:
- Covarde...Víbora asquerosa! – murmurou por entre a espuma sanguinosa que lhe subia pela garganta e já escorria num filete pelo canto da boca, enquanto ainda tentava desferir um último golpe no pérfido antagonista
A resposta de Henri veio num movimento brusco no qual puxou a espada com violência do ventre de Jerome, fazendo-o tombar de joelhos numa poça de sangue, formada pela catadupa vertida da chaga mortal que acabara de receber.
Ao ver aquela cena horrenda, os huguenotes romperam a lassidão em que se demoravam e tentaram revidar, mas já era tarde demais. Os soldados de Guise os massacraram sem quaisquer dificuldades. Em seguida, o duque removeu a lança do corpo de André, ao redor do qual se formou uma rosa de sangue vivo. Deixou-o de lado e ordenou aos soldados que vasculhassem o lugar à cata de mais huguenotes ou de algo valioso. Nada foi encontrado além do que já havia ali: alguns barris de pólvora, armas e pilhas de cadáveres.
Jerome ainda rastejou em direção ao amado, fazendo uso das últimas forças que lhe restavam, deixando um rastro de sangue em sua trajetória. Com muito custo, conseguiu alcançar a mão de André e tocá-la. Ainda estava quente, apesar da perda de sangue. Tentou murmurar algo, mas foi o conde de Flandres quem se antecipou a ele:
- Eu não... poderia... deixar... que aquilo... se... repetisse – tartamudeou com voz débil, quase inaudível – Perdoa-me... por... ir... na... tua... frente.
Villeneuve forçou um sorriso e respondeu com dificuldade:
- Tolo!... Iremos... juntos....Não...vou... deixar... que partas... sozinho...
- Será que... conseguimos... salvá-los? – indagou o pastor agonizante.
- Ainda... pensando... nos... outros? – objurgou Jerome – Fizemos tudo... que... podíamos... fazer
Nova hemoptise sacudiu o corpo de André. Ele ainda pôde ouvir ao longe as vozes de Guise e seus sequazes. Aparentemente, iriam incendiar os barris de pólvora para garantir que ninguém mais pudesse utilizar aquele subterrâneo. Eles que haviam se abrigado entre os mortos da iniquidade dos vivos, logo integrariam o número dos residentes eternos daquelas profundezas, esmagados pelas imensas rochas da galeria caso ainda resistissem aos ferimentos e à perda de sangue.
- Estamos sós... aqui... – considerou Chauvagne rememorando as palavras de Jerome naquela noite inolvidável na estalagem – É este... o... Paraíso... de... que... falavas?
O capitão de Nantes sorriu pela última vez e declarou com todo o carinho que a voz entrecortada e morrente ainda lhe permitia:
- Tu és... o meu... Paraíso... André... Amo-te!
André sentiu a mão do amado se enrijecer e esfriar entre os seus dedos. Quis beijá-lo uma última vez, mas o corpo não mais obedecia.
Uma lágrima rolou discreta pelo rosto do huguenote e ele entendeu que a sua hora chegara igualmente:
- Também... és... o meu... Paraíso... Jerome!... – ciciou com doçura, tentando erguer a cabeça para contemplar o rosto do militar uma última vez – Amo-te... e... sigo-te... Espera... por... mim!
O último alento abandonou o corpo do pregador de Flandres e ele seguiu os passos do companheiro, cumprindo o vaticínio propalado por Jerome: se tivessem um ao outro, isto por si só já seria o Paraíso.
Nesse ínterim, o duque de Guise e seus sicários selavam o santuário detonando a pólvora usada pelos huguenotes na defesa daquele sítio subterrâneo, onde fora perpetrada por André e Jerome a mais grave das transgressões humanas em qualquer tempo: o superlativo pecado de ousar viver a plenitude do amor numa era regida pelo ódio.
(1) 2ª Epístola de Paulo a Timóteo, Cap. 4, v. 7.
(2) Originalmente, "Ein feste Burg ist unser Gott". Hino composto por Lutero a partir do Salmo 46 e que se tornou um símbolo da resistência dos cristãos reformados. Há quem o considere, inclusive, como sendo “A Marselhesa da Reforma Protestante.”