Quando Ravenala acordou, a lua já era velha...
— Meu bem, venha ver! Cumpri minha promessa!
— Quando estiveres numa ilha, não prometas tudo. Não prometas nada que a ilha não possa oferecer.
— A lua! Prometi colocar a lua debaixo de teus pés. E não conseguindo, ei-la sobre tua cabeça!
Daniel conseguiu arrancar um sorriso dos lábios de Ravenala. Contagiado pelo sorriso dela. Ele também sorriu.
— Sinto vontade de comer carne — disse ela.
— Já dispensaste tartaruga, codorna e siris. Em que mais devo servi-la, não posso te dar nada além do que a ilha nos oferece.
Mulher grávida tem desejos estranhos: comer carne a uma hora daquela, significava escalar a falésia. Já era noite, estava na hora de algum tipo de predador, sair à procura de presa. E tentou desviar a atenção de Ravenala.
— Conheceste Vespasiano Ramos?
— Vespasiano faleceu, faz muitos anos!
— Refiro-me à obra dele.
Ela percebeu as intenções de Daniel ao mencionar Vespasiano. Não seria profano idealizar a mulher de seus desejos, tomando por imagem a conversa de Jesus no poço de Jacó com a Samaritana: ‘Tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu.’ Havia, no entanto alguma semelhança entre ela e a samaritana, com divergência na quantidade de maridos: Robert, Fernão e Daniel, juntos somam-se três. Quanto ao que tens agora não é teu. É seguro afirmar que Daniel fora esposo de Morgana, dividiram o mesmo teto por algum tempo, mas o ato nunca foi consumado. Pensou na Declaração de Nulidade que o casal conseguiu junto ao Tribunal Eclesiástico. ‘De que valeria aquela declaração numa ilha? Bem, diante do Tribunal divino tem valia. E ela se casara com Daniel. Então, não era ela a samaritana...’
Daniel olha aquela mulher revestida de lua e novamente, declama o poeta maranhense: ‘Piedosa gentil samaritana: Venho, de longe, trêmulo, bater à vossa humilde e plácida cabana. Pedindo alívio para o meu viver! Sou perseguido pela sede insana do amor que anima e que nos faz sofrer.’
— As contrações me transportam do amor para a dor. E por mais que te veja ‘trêmulo bater à minha porta’ sou obrigada a te deixar sofrer.
Ele pouco entendia de gravidez. E agora precisava provocar uma fuga para que o pensamento dela não se concentrasse na dor. Pigarreou. E impostou a voz: ‘ ‘Tenho sede demais, Samaritana. Tenho sede demais: quero beber!’
— E tu vens a mim, Vespasiano? Já estou no nono mês! Como poderei erguer o balde? Não tenho mais forças. O poço de Jacó é fundo!
— Farei um leito acolchoado de Ramos. Sobre ele Vespasiano se deitará com a Samaritana.
— Não, hoje não!
— ‘Fugis, então, ao mísero que implora. O saciar da sede que o consome. O saciar da sede que o devora? Pecais, assim, Samaritana! Vede: Filhos, dai de comer a quem tem fome. Filhos, dai de beber a quem tem sede.’
— Dá-me desta água que tu tens — disse ela.
Era madrugada
A lua banhava de luz prateada a imensidão do mar. Ondas quebravam lentas e esbranquiçadas na praia.
— Quero comer uma cotia assada.
— Daniel pouco entendia de gravidez, mas deduziu que àquele adiantar das semanas, não era mais tempo de desejos. Era fome. Ravenala sentia fome.
Pegou o arco.
— Olha isto!
Bateu na corda e conseguiu extrair um som indefinido. — Baixou as vistas, envergonhado de seu feito — Nenhuma escala musical seria capaz de definir aquela nota.
— Eu também tenho uma surpresa — disse ela — e puxou uma pequena esteira — que tal o berço de nosso filho?
— Ótimo! Obra de uma excelente artesã.
— Não exagere.
— Isto é o melhor que uma ilha pode oferecer.
Riram.
Ela sentiu contração.
— Vamos lá pra fora. Não quero que o primeiro contato de meu filho seja inalando cheiro do esterco de morcego.
— Sinto contrações.
— Não tenha medo! Estou aqui.
A hora pinga lentamente no intervalo de quatro múltiplas contrações. E logo, a vida sorri nos olhos fechados de uma miniatura de gente.
Aves migratórias ensaiam uma valsa. Espectros bruxuleantes vagueiam. Vermes passeiam. É noite na ilha Basileia de Salomão.
***
Adalberto Lima - fragmentos de Estrada sem fim...
Imagens: Internet
— Meu bem, venha ver! Cumpri minha promessa!
— Quando estiveres numa ilha, não prometas tudo. Não prometas nada que a ilha não possa oferecer.
— A lua! Prometi colocar a lua debaixo de teus pés. E não conseguindo, ei-la sobre tua cabeça!
Daniel conseguiu arrancar um sorriso dos lábios de Ravenala. Contagiado pelo sorriso dela. Ele também sorriu.
— Sinto vontade de comer carne — disse ela.
— Já dispensaste tartaruga, codorna e siris. Em que mais devo servi-la, não posso te dar nada além do que a ilha nos oferece.
Mulher grávida tem desejos estranhos: comer carne a uma hora daquela, significava escalar a falésia. Já era noite, estava na hora de algum tipo de predador, sair à procura de presa. E tentou desviar a atenção de Ravenala.
— Conheceste Vespasiano Ramos?
— Vespasiano faleceu, faz muitos anos!
— Refiro-me à obra dele.
Ela percebeu as intenções de Daniel ao mencionar Vespasiano. Não seria profano idealizar a mulher de seus desejos, tomando por imagem a conversa de Jesus no poço de Jacó com a Samaritana: ‘Tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu.’ Havia, no entanto alguma semelhança entre ela e a samaritana, com divergência na quantidade de maridos: Robert, Fernão e Daniel, juntos somam-se três. Quanto ao que tens agora não é teu. É seguro afirmar que Daniel fora esposo de Morgana, dividiram o mesmo teto por algum tempo, mas o ato nunca foi consumado. Pensou na Declaração de Nulidade que o casal conseguiu junto ao Tribunal Eclesiástico. ‘De que valeria aquela declaração numa ilha? Bem, diante do Tribunal divino tem valia. E ela se casara com Daniel. Então, não era ela a samaritana...’
Daniel olha aquela mulher revestida de lua e novamente, declama o poeta maranhense: ‘Piedosa gentil samaritana: Venho, de longe, trêmulo, bater à vossa humilde e plácida cabana. Pedindo alívio para o meu viver! Sou perseguido pela sede insana do amor que anima e que nos faz sofrer.’
— As contrações me transportam do amor para a dor. E por mais que te veja ‘trêmulo bater à minha porta’ sou obrigada a te deixar sofrer.
Ele pouco entendia de gravidez. E agora precisava provocar uma fuga para que o pensamento dela não se concentrasse na dor. Pigarreou. E impostou a voz: ‘ ‘Tenho sede demais, Samaritana. Tenho sede demais: quero beber!’
— E tu vens a mim, Vespasiano? Já estou no nono mês! Como poderei erguer o balde? Não tenho mais forças. O poço de Jacó é fundo!
— Farei um leito acolchoado de Ramos. Sobre ele Vespasiano se deitará com a Samaritana.
— Não, hoje não!
— ‘Fugis, então, ao mísero que implora. O saciar da sede que o consome. O saciar da sede que o devora? Pecais, assim, Samaritana! Vede: Filhos, dai de comer a quem tem fome. Filhos, dai de beber a quem tem sede.’
— Dá-me desta água que tu tens — disse ela.
Era madrugada
A lua banhava de luz prateada a imensidão do mar. Ondas quebravam lentas e esbranquiçadas na praia.
— Quero comer uma cotia assada.
— Daniel pouco entendia de gravidez, mas deduziu que àquele adiantar das semanas, não era mais tempo de desejos. Era fome. Ravenala sentia fome.
Pegou o arco.
— Olha isto!
Bateu na corda e conseguiu extrair um som indefinido. — Baixou as vistas, envergonhado de seu feito — Nenhuma escala musical seria capaz de definir aquela nota.
— Eu também tenho uma surpresa — disse ela — e puxou uma pequena esteira — que tal o berço de nosso filho?
— Ótimo! Obra de uma excelente artesã.
— Não exagere.
— Isto é o melhor que uma ilha pode oferecer.
Riram.
Ela sentiu contração.
— Vamos lá pra fora. Não quero que o primeiro contato de meu filho seja inalando cheiro do esterco de morcego.
— Sinto contrações.
— Não tenha medo! Estou aqui.
A hora pinga lentamente no intervalo de quatro múltiplas contrações. E logo, a vida sorri nos olhos fechados de uma miniatura de gente.
Aves migratórias ensaiam uma valsa. Espectros bruxuleantes vagueiam. Vermes passeiam. É noite na ilha Basileia de Salomão.
***
Adalberto Lima - fragmentos de Estrada sem fim...
Imagens: Internet