ZORAIA: O ÚLTIMO CAPÍTULO
 
Nota. De "Hidra Inofensiva para Heroísmo Nenhum", publicado neste presente ano de 2016 e postado como e-livro no Recanto das Letras, para quem tiver a curiosidade de lê-lo.         
 
 

 
                Faltam dez dias para começar 2015, 27 anos depois daquele longínquo dezembro de 1987. Como naquela noite, Renato me traz de volta para casa. Ao se despedir, inclina-se diante de mim, profundamente... profundamente... Num relâmpago, volta-me à mente o gesto do stáriets Zózima, prosternado aos pés de Dimitri e, aos ouvidos, a explicação posterior do religioso sobre o significado do próprio gesto a Aliocha, seu jovem discípulo, irmão de Dimitri: “Ontem, inclinei-me diante do profundo futuro sofrimento dele.*” Incoercível, me vem à lembrança também a figura de Ivan, um dos três irmãos. Eu, a proscrita, a assassina simbólica, me lembro de Ivan e também do quarto irmão, o bastardo. Ah, Dostoiévski, depois de tudo o que escreveste, restou-nos muito pouco para dizer dos abismos nas almas dos homens.
                Abro o portão, sorrateira. Imóvel, sozinha perante o Céu, procuro o Cruzeiro do Sul. Penso em Zoraia, a Mãe, que manteve, sempre, o segredo de seus três filhos no próprio coração: O segredo que tem meu nome.
 
 
                “Estática diante da janela, Zoraia saboreia, por antecipação, o momento exato da chegada dos filhos, juntos, simultâneos, como em tempos imemoriais: um deles, vindo do Centro Velho; o outro, do Morumbi. Raul, o que escreve literatura como se fora cientista, o estrangeiro da família, telefona-lhe com frequência, quase sempre em horários disparatados para uma senhora prestes a completar noventa; visitas, não mais do que três vezes ao ano. Daniel também aparece pouco, só quando a profissão de médico e o exercício amador da poesia lhe dão trégua. Zoraia jamais reclama de nada, ainda quando, nos tempos de Cláudia, a ausência deste filho lhe pesasse qual degredo. Aliás, não reclama nunca nada de qualquer dos dois. Vê-los juntos hoje, fato miraculoso, como miraculosa a volta de Daniel para Vânia, a mãe de suas duas filhas. A menina mais velha, Marjorie, preocupa a todos, por seu ensimesmamento maior do que o do pai e do que o do tio, somados. Apenas Alice, a mais jovem, tem acesso aos mistérios da irmã. Quanto a Raul e a Daniel, diferem um do outro como um poema concreto se distingue de um soneto de Petrarca... uma orquídea rara, de ramo de flores silvestres... um Magritte, de um Rafael... um fiorde norueguês,     do         rio         Tejo...       um          atabaque,
de uma flauta...  um violino, de outro violino...  um silêncio, de outro silêncio... ainda que certas visões, num átimo, lhes torne tudo Único. Raul, o retrato vivo do pai, os traços de índio, o cabelo escorrido, o corpo sem pelos e, no sangue, muito daquela outra América que não pôde resistir ao domínio espanhol; Daniel, a pele clara, a expressão do olhar igual à de Zoraia e, no sangue, muito daquela Europa da qual pouquíssimo, quase nada aportou aqui. Dois opostos complementares, na mesma moeda real. 
                “Raul pouco vê os filhos, Luisa e Pedro, que se foram com a mãe, Olga, para a Itália, três anos após o divórcio dos pais que, durante quase um lustro permaneceram, por acordo tácito, na mesma casa, até a maioridade de ambas as crianças, na crença de lhes garantir algum pecúlio emocional. Ainda bem que a casa conseguiu proporcionar a todos confortáveis exílios, ao menos no decorrer dos dias úteis. Hoje, a velha herança familiar pertence a outrem e sobrevive algures, sem marcas do passado. Zoraia sonha com um bisneto, embora não imagine de quem ele lhe possa vir. Cada dia solicita, ao seu Deus, o tempo necessário para vê-lo nascer.”
 
                “Enquanto aguarda seus meninos observa a paineira na pequena praça diante da casa, paineira soberba, plantada há incontáveis anos: foi em 1° de março, dia do aniversário de Renato, um mês antes do Golpe de 64. Por qual dos três? Por Renato com 17, por Daniel, com 21 ou por Raul, com 22, todos já com os sonhos e abismos a preenchê-los, a exorbitá-los, desde a infância pela vida adentro. Era vê-los partilhando planos, labirintos, espectros, e muito se lhe acalmava no coração de mulher. Renato, o filho que permaneceu, a viver em apartamento nas proximidades, o filho que prometeu a si mesmo vir a escrever algum dia, ainda que sob a forma de fragmentos, o possível dos interditos da família... dos encantamentos... e, principalmente o possível da presença-ausência dela, da mulher que ninguém esquece; mas, afinal, coube a ela tal tarefa, coube à mulher que ninguém esquece a tarefa de escrever, sob fragmentos simbólicos, o possível da saga de interditos da família.”
              “Semente tão pequena, ninguém a imaginaria árvore de tal porte, a paineira, árvore sagrada do povo Maia, com as flores de outono, magníficas. O olhar do marido diante das flores despertava, no íntimo de Zoraia, paisagens inusitadas, de alheios ancestrais. Naquele tempo em que a pequena semente se ia a germinar sob o solo, a escuridão se espalhava, poderosa, desde os subterrâneos, invadindo os campos, as plantações, as cidades, os mares, os céus, em todo o País. Escuridão densa, autêntica, genuína, dentro da qual se podia sonhar com Auroras, jamais com a Mascarada dos dias atuais. Infinita Graça o pai dos meninos não ter vivido o bastante para vê-la, a essa Travestida. Zoraia, a de olhos tão verdes, a descendente de persas e de bascos, recorda; Zoraia, a brasileira, a filha de portugueses, aquela que também entremostra, volta e meia, vislumbres de vertigens e de orientes percebidos por ninguém. Zoraia, a assassinada que sobrevive a si mesma. Zoraia, a que guarda no peito, sem que seus meninos o saibam, o nome comum do maior segredo deles, o nome da mulher que, por imposições do destino, não pôde nem pode ser de nenhum dos três.”
                “A mãe cruza as mãos sobre o peito, cerra os olhos como em prece à Senhora de Fátima, à Senhora de Aparecida, à Senhora de Luján. Quem sabe esteja a juntar, num Aleph, os pontos infinitos de seus polos, também os Ausentes”.
 
               “A manhã vai pelo meio. Cecília, enquanto ainda ensaia o voo de vez para os céus próprios, voo já há tanto adiado, prepara o almoço, almoço especial para este dia, de reencontro entre os irmãos. À noite, quando tudo se torna ou simula-se O Mesmo, quatro cálices de vinho do Porto se erguem no brinde à paz da terça-feira, antevéspera de mais um Ano Novo.”
            
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

* Personagens e cena de OS IRMÃOS KARAMÁZOVI, de DOSTOIÉVSKI.