Prelúdio de Natal para Sexteto de Cordas
 
Nota. Conto escrito em dezembro de 1990. Faz parte do livro "Hidra Inofensiva para Heroísmo Nenhum" publicado neste presente ano de 2016 e que postei, há dias, como e-livro no Recanto.


                

 
       Ana solta nas noites, gazela. Lagarta no casulo das manhãs. Diante da janela, crisálida.
       São Paulo, um dia a mais, estrela Vesper. Das metamorfoses, quem sabe o exato instante?
        Ana lembrando-se de Daniel na evocação de Cláudia, Cláudia na fúria do ensandecido ciúme a escurecer-lhe os olhos castanho-dourados, olhar de Cláudia sempre atento qual cão de caça, diante de qualquer ser - mulher, homem, criança, bicho, coisa - que se aproxime de Daniel. Cláudia, a que enlouqueceu de paixão, um pouco mais a cada dia e todos em volta, principalmente Daniel, em quem tudo lhe começa e termina. Daniel, retendo ainda entre os dedos os derradeiros grãos do seu amor.
        Versos de espanto, abandono, névoa, quando o ar falta, quando o rosto desaparece no espelho. Hotel, taças de sombras púrpuras, bocas ávidas, a de Daniel e a de Ana a refazerem, na única noite que lhes coube, o triângulo inaugurado pela primeira serpente. Daniel, o de olhos sombrios, rosto de musgo e neve, a resgatar palavras a morte. Ana, a de olhos acesos, floresta de cabelos, canto a buscar o futuro.
        Daniel em fuga dos tempos perdidos, os tempos de Cláudia, Ana, Raul. Daniel se ocultando de todos, longe, algures, cercado de lapsos, verbos, entrelinhas.
        Raul, o estrangeiro, com seu violino, as mãos longas colhendo silêncios e melodias sempre-vivas, plantando outras nas partituras. Ana se fazendo violino. Dos vários quadrantes, imagens musicais que os dois espalham pelas ruas, becos, bares, esquinas, países.
       Ana vagueando por um sonho. Primeiro, a paisagem indistinta; aos poucos ruas, pessoas, ouro nos cabelos, azuis de muitos naipes nos olhos, nas bocas arranjos insólitos de consoantes e vogais.

        Uma casa um vestíbulo uma sala uma janela um vulto uma mulher um nome: Elisa, a dos pés ciganos, a do corpo perfeito, a do riso aberto, a mesma que partiu há tempos do País do Sol, seguindo o outro estrangeiro. Recostada na janela, olha a neve caindo sobre o bosque onde na primavera os esquilos brincam - agora hibernam e hibernarão por todo o inverno, como no país vizinho, pátria do Papai Noel que as crianças remanescentes esperam, onde as noites vão se alongando...alongando... até durarem, em cada dia, duas voltas completas o círculo do relógio.
       Raul, de repente, de um dos quartos. Acerca-se de Elisa, circunda-lhe a cintura, olha também os esquilos invisíveis. Então se voltam, diante de Ana. Elisa ri seu riso branco, estende as mãos, Ana se aproxima, os três, um único abraço. Por que Daniel não chega? De imediato  compreende: o sonho é de Raul.
         Cheiro do pulover de Daniel, dos versos no esconderijo da noite, dos cabelos, da pele, na pele de Raul dormindo.
             No sonho de Elisa, Ana chega à janela de Raul e olha o Sol prédios letreiros antenas cruzamentos minúsculos passantes com pacotes de Natal. Da janela de Daniel e de Cláudia, à deriva, as imagens são campos de neve no sonho de Ana. Por seu lado, Siegfried vê viagens de antepassados nos mares do Norte, sem aviso da incursão noturna de Elisa ao País do Sul.
      Letreiros se acendem, o violino toca. Aos poucos, as notas escapam da pauta, voam, descem a praça, se esgueiram dos automóveis, dos semáforos, dos edifícios, dos mendigos e vão entrando no quarto de Ana, já em outra harmonia que, durante seu trajeto, foram se perdendo do roteiro original.
      Risos em fuga, Cláudia. Dança do fogo, Elisa. Violoncelo de Siegfried, grave contraponto. Dialogam os violinos, piano, pianíssimo, vai nascendo a borboleta enquanto o céu tece a Lua, logo mais completa e branca como um haicai de Bashô.