AMOR EM TEMPOS DE ÓDIO III
III
Sombras do passado
É tão difícil deixar para trás
Aquilo que tenho sido...
Mas eu devo avançar,
Ainda que o meu caminho
Me conduza ao Hades!
(Breaking Away – Avantasia)
A noite se derramava lânguida sobre Paris, à medida que o sol mergulhava no Seine tingindo de ouro e rubi as suas águas. Na estalagem, Jerome despertou e se deparou com André sentado na cama, ainda sem conseguir acreditar em tudo que tivera lugar naquela manhã, naquele quarto. O militar abraçou-o e, embora ele correspondesse com efusão ao amplexo, percebeu no semblante do companheiro a mesma inquietação que lhe tisnava o olhar quando chegara ali às primeiras horas do dia.
- O que será de nós agora? – indagou André – Como poderei voltar a pregar o Evangelho depois do que acaba de ocorrer aqui? Que destino nos reserva a Providência Divina, depois de uma transgressão tão extrema como a que acabamos de perpetrar? Não me vejo mais em condições de liderar uma congregação de fiéis depois de me render desta forma à tentação da carne.
Jerome beijou-o na face e respondeu com presteza:
- Um pastor de Montparnasse afirmou certa feita que o amor é o que há de mais divino no coração do homem e que não existem limites de raça, credo ou sexo para que ele se manifeste. Isto responde a tua pergunta?
Chauvagne enquadrou-o com um olhar onde se mesclavam ternura e medo. Jamais supusera que as suas palavras viriam a ser usadas contra ele mesmo numa circunstância daquelas. Sorriu desconcertado ao ver que o companheiro estava coberto de razão.
- Ademais – avançou o militar de Nantes – Não há como e nem porque revelares aos fieis o que ocorreu aqui. A tua vida íntima, longe de impossibilitar o ofício pastoral, há de conferir-te maior respaldo na interpretação do Evangelho.
O pastor meneou a cabeça em sinal afirmativo e depôs as armas:
- Se as coisas chegaram até este ponto, é justo que tomes conhecimento do que me tornou tão resistente ao amor enquanto vínculo desta natureza.
André respirou fundo, tentando renovar as forças para a dolorosa retrospectiva que se seguiria.
- Um dos motivos de optar pela vida religiosa – iniciou o rapaz com entonação magoada – foi a imensa culpa que me persegue desde um evento fatídico da minha juventude... Eu tinha treze anos quando me envolvi com o filho da copeira do castelo. Havíamos crescido juntos e ele era apenas dois meses mais novo do que eu. Mantivemos um romance secreto... Até que o meu pai descobriu tudo!
A voz do aristocrata se embargou e um soluço brotou espontâneo de sua garganta. Jerome tentou demovê-lo de desenterrar um passado tão pungente, mas ele insistiu, alegando que precisava lidar com os fantasmas dos quais passara tanto tempo fugindo. Sobretudo agora, quando se entregara a alguém de forma tão plena como fizera com ele.
Ele enxugou as lágrimas e retomou a narrativa:
- Meu pai o mandou açoitar diante de todos no pátio do castelo e obrigou-me a assistir à cena! Não valeram protestos desesperados de sua genitora para que ele cessasse tamanha atrocidade, Pierre foi vergastado brutalmente até a morte... Completamente despido e suspenso por grilhões, os verdugos retalharam a sua carne até desfigurá-lo totalmente. A infeliz copeira não foi capaz de suportar tanto horror e tentou debalde servir de escudo para o filho, sendo igualmente dilacerada pelos látegos sanguissedentos dos sequazes de meu pai! – a voz sumiu novamente, afogada pelo pranto como se lhe fosse dado contemplar a cena dantesca que ora evocava dos refolhos da consciência – Nunca pude olvidar aquele quadro tão horrendo: uma mãe trespassada de dor sendo massacrada pelos açoites, enquanto buscava proteger o cadáver disforme do único filho, vindo a sucumbir igualmente no desesperado tentame!
Villeneuve abraçou-se com André e afagou-lhe os cabelos, enquanto o desolado aristocrata flamengo deixava fluir a dor inconfessável do seu passado.
- Então foi este o motivo que te levou para a vida religiosa? – aventurou-se Jerome, que a muito custo conseguia sopitar o horror e a indignação que aquelas revelações produziam no âmago do seu espírito.
- O principal, mas não o único – respondeu ele arfante – Depois de tudo aquilo eu fui enviado para um internato em Bruges. Crescer entre religiosos deu-me a exata noção de que o catolicismo se afastara da simplicidade de Cristo para abraçar a hipocrisia farisaica do mundo, ao mesmo tempo em que impunha o temor da danação eterna como atributo superlativo na fé cristã, empanando desta forma a mensagem sublime e libertadora do Evangelho... E eu pude experimentar o Inferno em todos os seus tétricos nuances desde aquele dia horripilante no castelo! A lembrança sempre perene da desgraça que eu produzira, por não ser capaz de resistir aos meus impulsos na juventude, perseguiu-me de forma inexorável até que tive contato com a Reforma. Depois de deixar o internato, segui para o norte e, em Utrecht, tive contato com um antigo discípulo de Lutero que rumara para as Dezessete Províncias(1) com o intuito de propagar a renovação da fé cristã. A Reforma lograra aplacar as minhas angústias como o catolicismo jamais fora capaz de fazer. A ideia de uma divindade constantemente iracunda, que punia os homens pelas menores faltas praticadas e que estabelecia penitências estapafúrdias como via de suborno, sempre me causara a mais acerba repulsa. O Deus proposto por Lutero não era frio e insensível como a divindade dos padres de Bruges, que sempre davam as costas para os fieis enquanto proferiam orações em latim que dificilmente conseguiam tocar os corações sedentos de paz e esperança. Era um Deus de amor e perdão, que sempre estendia a mão ao pecador arrependido e lhe mostrava os meios de encetar a reparação do mal feito, conforme preconizado pelo profeta Ezequiel(2) em seus escritos. Uma reparação que nada tinha a ver com as negociatas torpes que a Santa Sé denominou de indulgências, mas sim com a regeneração do ser humano em termo integral. Por quase uma década me mantive em Utrecht, retornando a Flandres apenas quando fui notificado da morte do meu pai, que me obrigava a assumir em caráter definitivo o título de conde... No entanto, permanecer naquele malsinado alcáçar que fora palco do momento mais trágico da minha vida, estava acima das minhas forças. Foi quando tive contato com alguns aristocratas que, apesar de calvinistas, partilhavam comigo do desejo de fazer algo pelos desvalidos. Vim ter à França a convite de um pastor huguenote que iniciara um projeto de letramento entre os fieis, para que eles também pudessem ter acesso às Sagradas Escrituras. Com o tempo, mais pessoas desejaram tomar parte na iniciativa e, diante do cenário calamitoso em que se encontrava o país, tivemos de buscar entre os mortos o abrigo e a segurança que nos eram negados pelos vivos, à semelhança dos primeiros paladinos do Evangelho em Roma.
- É uma odisséia e tanto a tua! – declarou Villeneuve com um sorriso.
- Jerome... ensaiou o huguenote – Eu não quero que tenhas o mesmo destino de Pierre! Eu não suportaria causar pela segunda vez a perda de quem mais amo! Não deves permanecer em Paris, por Deus, foge daqui! Deixa a França se necessário, mas não te detenhas aqui!
O capitão renegado levou o indicador aos lábios do pastor e, com inflexão terna, sentenciou:
- André, não sou o garoto que viste morrer e não tiveste culpa alguma se o teu pai era um celerado. Já to disse: estou pronto para cair lutando por aquilo em que acredito e levarei comigo quantos tentarem te molestar! Redobram os meus motivos para ficar e proteger-vos, agora que conheço a tua história e que finalmente fomos capazes de viver este sentimento.
- Mas o que será de nós no além-túmulo? – retorquiu o conde – Temo que jamais sejamos aceitos no Paraíso, por abraçarmos um sentimento que a própria bíblia proscreve como sendo inaceitável aos olhos da Divindade...
Não pôde continuar. Jerome beijou-o longamente e declarou peremptório:
- Se não formos aceitos no Paraíso, teremos um ao outro e isto basta. Estar longe de ti, isto sim seria o pior dos Infernos para mim.
Chauvagne entendeu que seria inútil tentar demovê-lo e aceitou, ainda que a contragosto, a resolução do companheiro de seguir a seu lado até o fim.
(1)Designação da Holanda ao tempo desta narrativa.
(2) “Por mim mesmo juro, disse o Senhor Deus, que não quero a morte do ímpio: mas sim que ele se converta, que deixe o mau caminho e que viva.” (Ezequiel, Cap. 33, v. 11)