AMOR EM TEMPOS DE ÓDIO II
II
O lobo domado pelo pastor
Em assuntos do coração
Não há regras de dois
Pois somos distintos,
Somos iguais.
Não há mais medo,
Eleva tua voz!
(El que quiera entender que entienda – Mägo de Oz)
Nas semanas seguintes, o espião de Guise prosseguiu na tarefa que lhe fora designada e, ao final de cada sermão, a mesma angústia o acometia: o sono se recusava a encontrá-lo no leito e, quando finalmente o fazia, a imagem do pregador de Flandres se desenhava a fogo em sua mente, fazendo-o despertar banhado de suor. Um sentimento devorador já velho conhecido seu o consumia, e ele tentava debalde resistir-lhe com todas as forças que ainda possuía.
A princípio tentou dar conta da ansiedade que o consumia pela via da escrita. Semanalmente enviava relatórios para Guise, mas em nenhum deles constava nada de mais comprometedor que pudesse justificar uma intervenção. Por fim, o duque o liberou da tarefa, agradecendo o seu empenho e recompensando-o regiamente pela dedicação. Jerome recebeu com preocupação aquela dispensa. Passara dois meses inteiros imiscuído entre a congregação e, embora não houvesse reunido elementos comprometedores, julgava assaz perigoso deixar de monitorar os passos daquela multidão que, uma vez dispersa por Paris, bem poderia conflagrar um incêndio ideológico de formidáveis proporções, partindo dos pontos mais distintos da capital.
- Não te preocupes – tranqüilizou-o o dignitário – Já disponho de meios mais do que suficientes para conter essas ratazanas, caso elas se atrevam a desafiar a Coroa. Graças ao teu serviço, essa “igreja das trevas” está com os dias contados. Ademais, caso eu venha a tomar uma decisão mais drástica, não desejo que venhas a ser arrolado no processo. És um oficial do reino, não um assassino. Para misteres que tais, tenho mãos verdadeiramente adequadas e que não terão quaisquer pudores de verter quanto sangue seja necessário para a preservação da paz e da ordem.
As últimas palavras do duque provocaram uma sensação terrível no âmago do militar. Ele já ouvira boatos horripilantes acerca da crueldade com que a Casa de Guise se havia para com os desafetos reais, mas sempre se recusara a acreditar que um homem na posição de Henri de Lorraine pudesse se converter num celerado vulgar e sedento de sangue. Pelo menos até ouvir aquela declaração.
Ademais, o epíteto com que ele designara aquela confraria de miseráveis lhe soara sumamente desagradável. Igreja das trevas? O sarcasmo com que o duque sublinhara essa expressão chocara-o profundamente. Talvez até mais do que a constatação de que o aristocrata não estendia a sua nobreza para muito além do título nobiliárquico que herdara, quando mencionara a possibilidade de massacrar os infelizes que buscavam os subterrâneos de Montparnasse em busca de um mínimo de consolo para as suas almas aflitas.
Decorridas três semanas sobre esta última audiência, Jerome retornou à sua propriedade em Nantes, mas apenas para regressar pouco depois a Paris, completamente incógnito. Deixara a barba crescer de forma um tanto inculta, a fim de não ser reconhecido pelos sequazes do duque e se fixara numa modesta estalagem, mantida por uma anciã que integrava a mesma congregação subterrânea de Montparnasse que ele espionara durante dois meses. Conservara o primeiro nome, mas adotara um sobrenome condizente com os membros daquela confraria e que nem de longe remetia à sua verdadeira origem: De La Rue.
Voltara a freqüentar os cultos, mas agora passara a fazê-lo com uma freqüência ainda maior. Além dos sermões que tinham lugar nas quartas-feiras, Jerome decidira manter maior contato com as obras assistenciais que funcionavam ali mesmo, nos subterrâneos. Durante o tempo em que vigiara a congregação a mando de Guise, soubera da iniciativa de alfabetização popular que André de Chauvagne organizava. Pelo menos duas vezes por semana, o conde de Flandres se dispunha pessoalmente a ensinar as primeiras letras aos pobres de Paris, em turmas tão heterogêneas que reuniam crianças, adolescentes e idosos.
Foi a partir daí que o capitão de Nantes pôde estreitar laços com o pastor huguenote e perceber que ele não era apenas um orador brilhante, mas também um idealista, um homem apaixonado pelas letras e que via nelas uma das vias mais eficientes de emancipação intelectual. A paixão com que ensinava, conjugada à sua inesgotável paciência, fomentava o milagre da educação popular numa França devastada pela intolerância sectária e incapaz de enxergar nas camadas mais desamparadas da população, cidadãos merecedores da mesma dignidade e respeito que eram dispensadas apenas aos membros da aristocracia. Por mais de uma vez enquanto confabulavam, André revelou o seu descontentamento com algumas lideranças huguenotes de Flandres que, ao invés de promover a vivência do Evangelho, preferiam se render ao sectarismo fanático e estéril contra os católicos, à semelhança do que vinha ocorrendo em solo francês.
- Não posso conceber a Palavra do Senhor senão como prática de vida e para a vida – dizia com os olhos a coruscar de convicção – A cristandade já desperdiçou tempo demais absorta em ritos exteriores, esquecendo-se de que somente o amor ao próximo é capaz de prover a verdadeira Salvação, tanto neste mundo, quanto no outro.
Jerome passava cada vez menos tempo na estalagem. Apenas o necessário para dormir e alimentar-se. Depois de um mês de atividade constante junto aos pobres da capital como o braço direito de André, o capitão renegado já não tinha mais dúvidas do sentimento que o dominava e que dera provas cabais de sua existência ainda quando atuava na qualidade de espião da Coroa. Ele estava duplamente apaixonado: pela filosofia de André de Chauvagne e pelo próprio.
O capitão de Nantes sempre fora um homem solitário. Nos albores da juventude entregara-se aos prazeres comuns à aristocracia da época, mas nunca experimentara afeição sincera. Cortejara algumas damas da nobreza e fora mesmo correspondido, contudo, jamais tivera coragem de unir seu destino ao de alguém. A carreira militar lhe concedera certo alívio para a solidão que o vergastava. A rotina de caserna e os triunfos que lhe conferiram o título de capitão haviam logrado apaziguar essa dor inconfessável. Uma dor que ele jamais conseguira compreender e que jamais tentara fazê-lo. Intimamente, Jerome Villeneuve, agora Jerome De La Rue, sempre soubera do que se tratava, mas dera tudo de si para jamais admitir o que sentia.
Agora, porém, a situação mudara drasticamente.
Pela primeira vez na vida se julgava capaz de abraçar o próprio desejo, mesmo sabendo do altíssimo preço que teria de pagar por isso. Assim, Jerome tomou a firme resolução de confessar a André o sentimento que o consumia, revelando-lhe igualmente a sua verdadeira identidade e como viera ter até aquele núcleo cristão no subsolo de Paris. Jamais fora homem de esposar crenças religiosas, mas sentia que era impossível não abraçar o Evangelho e querer vivê-lo depois de tudo que vira naquele santuário subterrâneo. Em nome desse sentimento inexplicável ao qual não mais buscava resistir, sabia que devia toda a verdade a André, tanto por amá-lo, quanto por se sentir tocado pela Boa Nova.
Numa tarde do início de julho, o capitão renegado solicitou audiência particular com o líder da congregação. Sem delongas, o pastor acolheu o seu pedido e eles demandaram a um cômodo mais reservado que se destinava tanto ao atendimento aos enfermos, quanto à escuta dos fieis, numa prática bem próxima da confissão católica, exceto pela ausência do dispositivo penitencial e do confessionário propriamente dito.
A pequena enfermaria contava com duas cadeiras, um leito e uma bilha de água que ficava à cabeceira. André convidou Jerome a tomar assento e, apaziguador como sempre, incentivou-o a dizer do que o inquietava:
- Fala sem receio, Irmão De La Rue. E que Cristo possa nos inspirar a encontrar a melhor solução para o problema que ora te aflige.
Jerome torceu as mãos nervosamente, cerrou os olhos por um instante e mordeu os lábios, reunindo forças para dar início às terríveis revelações que tinha a fazer. Sabia de antemão que André iria repudiá-lo com asco quando terminasse de falar, ou mesmo antes disso. Não obstante, sentia a imperiosa necessidade de fazê-lo.
- Antes de mais nada, gostaria que me chamasses pelo meu primeiro nome, pastor... declarou por fim com voz soturna – Pois tenho uma miríade de revelações a fazer e gostaria de ouvir, pelo menos uma última vez, o meu nome sendo pronunciado por ti, antes de receber o justo veredicto pelas minhas muitas iniqüidades.
André franziu o cenho sem compreender muito bem o significado daquelas colocações, mas assentiu com um sorriso:
- Como o queiras, Jerome. Mas com uma condição: a de que também tu não me chames de pastor, mas te refiras a mim no primeiro nome.
O capitão de Nantes esboçou um sorriso e murmurou uma confirmação tímida.
- Ademais – acrescentou o conde de Flandres – Não posso emitir qualquer veredicto sobre nada. Só a Deus cabe julgar os homens, a mim cabe apenas ouvir e aconselhar no que esteja ao meu alcance.
- Pois bem! – iniciou o militar após um longo suspiro – Devo começar pelo meu nome. Não me chamo Jerome De La Rue, mas sim Jerome Villeneuve. Sou capitão do regimento real de Nantes e aqui vim ter três meses atrás a mando de Henri de Lorraine, o duque de Guise, com o objetivo de reunir informações sobre um possível levante huguenote contra a Coroa. Não havendo quaisquer indícios concretos de sedição nesta comunidade, o duque me dispensou de seguir como espião. Mesmo assim, retornei em seguida, não para seguir espionando, mas sim porque, de alguma forma, a vossa mensagem logrou um efeito sobre mim que jamais imaginei possível. Ao longo de mais de uma década como militar, já pude testemunhar muitas cerimônias religiosas e convivi com clérigos sumamente esclarecidos que nunca conseguiram tocar a menor fibra do meu ser com suas prédicas vazias e empoladas. Diferentemente de tu, André, cuja verve carrega algo de divino e que arrebata a alma de quem se dispõe a escutar o que tens a dizer. Aqui vim ter julgando encontrar inimigos da Coroa a maquinar planos contra a ordem pública e me deparei com um conde de Flandres que se dedicou a trazer luz e esperança para esta imensa multidão de miseráveis! Enquanto os ministros da Santa Sé se empenham em inflamar os ânimos contra a Reforma, fazendo coro aos delírios regicidas propalados pelo Louvre, um membro da aristocracia decidiu viver o Evangelho como experiência de liberdade, buscando um reino que não pertence a este mundo, mas que pode empanar a glória mundana e perecível dos vermes vestidos de arminho que se autoproclamam monarcas.
O pregador huguenote ouvia-o atentamente, sem conseguir disfarçar a estupefação em seu semblante quando das revelações que se seguiam, cada vez mais estarrecedoras.
Jerome prosseguiu;
- Fui, de fato, o lobo em pele de cordeiro que se imiscuiu no rebanho para devorá-lo. Contudo, o pastor mostrou-se tão sábio e capaz que mesmo o lobo não lhe pôde resistir e agora deseja oferecer-se para guardar o aprisco da alcatéia que o ronda. Retornei em segredo a Paris, depois de instruir os meus comandados a me manterem informado sobre os próximos passos de Guise. André – o tônus de Jerome mudara visivelmente, denotando profunda inquietação –, ele tenciona atacar este santuário, cedo ou tarde. Espera apenas uma oportunidade que lhe granjeie notoriedade face ao rei e à Rainha-Mãe e é uma questão de tempo até que isto aconteça. A ascendência do almirante(1) sobre Charles IX desgosta tanto os Valois(2) quanto os Lorraine e Guise é o tipo de homem que não mede esforços para alcançar os fins que almeja. Ele se encontra na linha de sucessão, mas apenas se Catarina e os demais príncipes sucumbirem numa refrega é que poderá ascender ao trono...
O pastor huguenote alçou a destra e pediu que ele se detivesse. As informações que lhe eram atiradas ali, de chofre, numa catadupa tão impetuosa quanto a de uma queda d’água, demandavam tempo para ser processadas.
- Detém-te um instante, por favor – disse por fim enquanto passava a mão pelo rosto, visivelmente chocado com o que ouvira – Então vieste até aqui com o fito de nos espionar?
Jerome baixou a vista e meneou a cabeça de modo afirmativo. André inquiriu-o com uma inflexão mais severa do que a de costume:
- Afirmas que a mensagem do Evangelho te abriu os olhos para o que fazias e que isto te fez retornar. Pois bem! Que provas podes tu nos dar de que não mais segues na qualidade de espião da Coroa?
Houve uma breve pausa. O militar respirou fundo e retomou o fio de sua narrativa:
- Durante o período em que estive a serviço do duque pude me inteirar dos seus reais propósitos. Como disse antes, o Louvre se encontra dividido. Os Valois detêm o trono, mas são cautelosos com os Lorraine, a quem buscam conservar como aliados, temendo que eles desejem solapar a coroa. Ambos os lados têm em comum o ódio pelos huguenotes, mas tratam a questão de forma distinta. O Louvre tolera a aproximação de Coligny na esperança de obter algum meio mais sutil de desmantelar o partido calvinista, certamente fazendo uso dos serviços de algum envenenador leal à Rainha-Mãe para dar cabo do almirante. A posição de Catarina é das mais graves. Ela só pode contar com os próprios filhos para seguir reinando. O simples fato de ser uma estrangeira já a coloca em grande perigo. A sua única legitimidade enquanto regente deve-se ao fato de haver sido casada com o finado Henri II e de seguir velando pela prole real. No caso de Guise, a situação é totalmente diferente. Ele pode invocar o seu direito ao trono, sugerindo que Charles IX se mostra permissivo para com os rebeldes calvinistas e que a sua política indolente põe o país inteiro em risco. A solução seria bastante óbvia: o duque lançaria uma ofensiva militar contra os huguenotes partindo deste santuário, alegando que os Valois toleraram o surgimento de uma ameaça para a segurança nacional, mesmo sabendo de antemão da sua existência. O exército seguiria Guise sem hesitar, como a um messias e, depois de deflagrada a crise, ele invadiria o Louvre, mataria a família real acusando-a publicamente de trair a França e se sagraria rei. Creia-me, André, ele é capaz de fazê-lo. Mesmo antes de vir ter aqui, Guise já dispunha de informantes que o mantinham a par da movimentação nestes subterrâneos, alguns deles membros desta congregação e pessoas acima de qualquer suspeita.
- Pois bem! E o que sugeres? Que eles sejam denunciados à comunidade? Que tu constituas uma milícia própria para punições aqui dentro? Não há garantias de que não estejas ainda a mando do duque de Guise e que esta tua revelação não seja parte de um plano para nos entregar às autoridades! – declarou por fim o huguenote sumamente exasperado.
- Não, não! – interveio Villeneuve – Isto não se fará necessário. Os próprios membros da comunidade identificaram os espiões e eles foram removidos daqui com a ajuda de alguns dos meus homens...
- Removidos? – replicou André temendo que o militar houvesse tomado alguma decisão terrível – Então tu ousaste promover escaramuças no seio desta comunidade? Deus, que fiz eu! Como pude permitir que te inteirasses tanto do que aqui acontecia, sem saber que rastejavas entre nós como a serpente no Éden?
A reação do conde de Flandres deixou Jerome em frêmitos de desespero. Tentou acalmá-lo e explicar o que de fato ocorrera, mas o pregador não estava mais em condições de ouvi-lo e o despediu fazendo um esforço hercúleo para não explodir numa torrente de impropérios.
- Sai daqui! Deixa-me, por Deus! – exclamou por fim – Tudo quanto fizeste é demasiado torpe para que eu prossiga a te ouvir sem que se revoltem todas as entranhas do meu ser! Mentiste com a mesma dissimulação do mais vil dos anjos caídos! Escarneceste de nós enquanto te acolhíamos fraternalmente! Vai-te embora, em nome de Deus e do sentimento que alegas ter encontrado entre nós! Não nos insultes mais com a tua sordidez!
Jerome compreendeu que seria inútil insistir. De fato, merecia cada uma daquelas palavras, por mais dolorosas que fossem as acusações que lhe eram agora atiradas em rosto. Retirou-se em silêncio e fechou a porta, deixando André entregue ao pranto do desconsolo e da frustração. Aquele rumor sim, lhe pungia o coração mais do que se mil punhais fossem brandidos de um só golpe contra a sua carne.
O desolado militar alcançou a estalagem sem sequer perceber como fora capaz de vencer a distância entre o santuário huguenote e o albergue em que se hospedara. Uma vez a sós nos seus aposentos, sentou-se na cama, escondeu o rosto entre as mãos e se pôs a soluçar. Urrou desesperado ao cogitar que acabara de perder para sempre o objeto de sua afeição, ao mesmo tempo em que se amaldiçoava por ter servido a Guise, dando-lhe a chance de ascender ao trono da França galgando uma escada formada por cadáveres empilhados de reformistas.
Por fim, as forças lhe faltaram e ele desfaleceu sobre o leito.
Na manhã seguinte, foi despertado pela estalajadeira a lhe bater com insistência na porta, informando-o de que alguém queria falar-lhe.
- De quem se trata, Madame Roger? – indagou com a voz roufenha de quem acaba de acordar.
- O pastor Chauvagne e, a julgar pela sua expressão, trata-se de assunto por demais grave.
Villeneuve arregalou os olhos, espantado, mas não se deixou dominar pela lassidão. Recompôs-se rapidamente e pediu à senhoria que o fizesse subir.
Conforme descrevera Madame Roger, André transparecia inquietação. O semblante acusava uma noite insone e chorosa. Jerome ofereceu-lhe a cama para sentar-se, mas ele preferiu tomar assento numa cadeira rústica que, juntamente com um espelho, uma mesa e a jarra de água, compunham toda a mobília do ambiente. O militar agradeceu à estalajadeira por acompanhar o visitante e, assim que ela se retirou, fechou a porta. A pedido do pastor huguenote, verificou antes se não havia ninguém nas adjacências que fosse ouvir a conversa entre ambos. Depois de tranquilizá-lo, Villeneuve sentou-se no leito e, um tanto curioso, inquiriu do conde de Flandres o que o levara tão cedo até aquela pensão.
André fitou-o longamente e, após um suspiro, respondeu com voz grave:
- Depois de tudo quanto relataste ontem, fiz questão de inteirar-me sobre os tais espiões de Guise imiscuídos na comunidade e pude confirmar que não mentiste. De fato, três dos membros da congregação que ingressaram alguns meses antes de tua primeira aparição, cumpriam ordens de Henri de Lorraine e desapareceram tão misteriosamente quanto surgiram.
Houve uma pausa breve, mas tão densa como se o oceano estivesse sobre as cabeças dos dois interlocutores.
- Dize-me com toda a franqueza – interpelou André com ar severo, retomando o fio da conversação – O que fizeste deles? Afirmaste que eles foram “removidos” da congregação. Porventura os mataste?
Jerome meneou a cabeça afirmativamente, o que fez o pastor cerrar os olhos como se acabasse de levar uma punhalada.
- Temi que fosse esta a resposta quando me revelaste a verdade sobre ti ontem – considerou o huguenote erguendo-se da cadeira e seguindo em direção à janela – e devo dizer que me foi sumamente difícil acreditar em tua honestidade de propósitos, aliás, ainda o é para mim. Porém, tão logo procurei me informar dos detalhes, soube que os três estavam entre os assassinos mais próximos do duque. Carrascos que ele empregava para se desfazer secretamente dos desafetos políticos, sem precisar manchar com sangue as próprias mãos. Não fosse a tua confissão de ontem, decerto temeria que eles houvessem regressado ao covil para deflagrar uma ofensiva contra nós... Jamais pensei que um dia pudesse agradecer a alguém por haver tirado a vida a um semelhante, mas vim aqui também para isso. Que Deus possa me perdoar se eu disto for merecedor, já que estou prestes a incorrer em outra transgressão não menos terrível, mas que deve, pelo menos, reparar o meu rompante de ontem para contigo.
- André, não há nada a ser reparado – volveu Jerome indo na sua direção – Eu é que jamais poderei me perdoar por haver agido como agi durante o tempo em que estive a serviço do duque de Guise. A tua indignação foi e é mais do que compreensível diante de tudo que...
- Por favor, não me interrompas! – interceptou o conde de Flandres com voz súplice, quase chorosa – Do contrário, não terei forças para ir até o fim!
O capitão de Nantes estacou surpreso com aquela reação. André uniu as mãos sobre os lábios como se estivesse em oração.
- Vim até aqui para agradecer-te por nos livrar, ao menos por enquanto, da sanha dos lobos rapaces que rondam o nosso rebanho – afirmou com voz mais firme – Devo-te desculpas pela forma grosseira como te despedi ontem, quando te acercaste de mim buscando acolhimento para revelar verdades que, apesar de duríssimas, eram necessárias. Pedi-te provas de lealdade para com o Evangelho e tu as deste de sobejo, desnudando-te diante de mim sem temer as represálias que viessem de minha parte... Sou-te imensamente grato, capitão Jerome Villeneuve. Por mim e por todos os desvalidos que vimos buscando socorrer. Entretanto, tenho um pedido a fazer-te: não voltes mais à congregação, por favor.
- Como? – revidou o militar atônito com aquele pedido – Mas por quê? Queres afastar-me do Evangelho e do serviço aos necessitados, justo agora que eu descubro uma razão para viver?
André cerrou os olhos e encostou a fronte no vidro da janela, como se buscasse a aragem fria da manhã para aplacar o incêndio voraginoso que consumia sua mente. Sem se voltar para o seu interlocutor, disse em tom quase que monocórdio:
- Há muitos outros núcleos espalhados pela França e mesmo em Nantes poderás manter contato com outros irmãos reformados que desempenham tarefa semelhante a minha. Ademais, se seguires entre nós, temo pela tua segurança. Guise certamente já descobriu que os seus chacais foram dizimados e não tardará a associar o feito a tua pessoa.
- Temes que eu ponha a congregação em perigo, é isto? – indagou Jerome cada vez mais exasperado.
- Estamos prontos para o martírio há muito tempo – ripostou o pregador – Na qualidade de seguidores de Jesus, não ignoramos que o testemunho nos será exigido, assim como o foi aos primeiros cristãos na Antiguidade. O que não quero é que tu venhas a ser tragado nesse torvelinho de sangue e morte, justamente agora que, como acabas de dizer, encontraste uma razão para fazer valer a tua vida.
Jerome não conseguiu mais se conter. Avançou em direção a André e, tomando-o pelo braço, fê-lo virar-se para si e encará-lo.
- Por quê? – inquiriu autoritário – Por que queres tanto assim me afastar de ti? Ignoras que sou um soldado e que não há para mim maior glória do que dar a vida em batalha por uma causa verdadeiramente justa?
André não foi mais capaz de conter as lágrimas e explodiu num brado lancinante:
- Porque eu te amo e não quero ser o causador de tua desgraça, não entendes?
Villeneuve recuou estático. Não conseguia acreditar no que acabara de ouvir.
O pastor huguenote desvencilhou-se de seu interlocutor e escondeu o rosto entre as mãos dando livre curso ao pranto, que agora fluía caudaloso como um rio longamente impedido de seguir seu curso. Em seguida, caiu de joelhos deprecando aos Céus que se apiedassem de sua sina.
- Deus meu! Deus meu! – exclamou por entre soluços – Por que me destinaste tão acerba provação? O amor de Tua palavra não foi suficiente, minha carne clama pelo gozo diabólico da depravação e não tenho mais forças para resistir à esta odiosa tentação! Por piedade, afasta de mim este cálice! Se alguém deve perecer pelo pecado, que seja apenas eu e não a alma de quem acaba de encontrar os Teus caminhos...
O capitão renegado caiu igualmente de joelhos e envolveu-o num amplexo tão efusivo que ele mal teve forças de balbuciar uma recusa:
- Não... Por favor...
- Se o sentimento que nutres por mim é um pecado, então não és o único – replicou Villeneuve, que jamais suspeitara da hipótese de ser correspondido pelo conde de Flandres – Amo-te com todas as forças do meu ser e nada que digas ou faças poderá mudar tal fato!
André fitou-o incrédulo por entre as lágrimas.
- Se o que sentimos um pelo outro for realmente uma afronta ao Criador, então isto significa que o próprio Cristo pecou ao legar o amor como mandamento supremo! – declarou Jerome com uma convicção que fez o huguenote abandonar toda a hesitação e premir em seus lábios um beijo repleto dos sentimentos mais profundos e intraduzíveis.
(1) Alusão a Gaspard de Châtillon, o almirante Coligny. Líder dos calvinistas (huguenotes) e figura política de grande relevo na França de Charles IX.
(2) A dinastia reinante na França na época em que se desdobra esta história. A Casa de Valois se manteve no poder de 1328 a 1589, quando Henri de Navarra assumiu o trono como Henri IV e deu início à dinastia de Bourbon.