Tudo será diferente no ano que vem
Tarde fria, junho de 1968. Os alunos da terceira série ginasial, aflitos pelo sinal do intervalo, assistiam aos minutos finais da aula de Frances com uma impaciência que não ousavam revelar. Edmur, da carteira do meio da fila que ficava no meio da sala, percebe acidentalmente que Miriam, a menina da segunda carteira da fila vizinha à dele, olhava para trás em sua direção. O que ele não via, era que ela, alheia ao que ia à lousa, escrevia um bilhete.
Edmur era um pacato adolescente de quinze anos. Tinha cabelos castanhos ligeiramente avermelhados que realçavam seus olhos verdes fundados no rosto de uma pele cor de bronze, igual a que se obtém tomando sol. Chamava a atenção das garotas mais por esses dotes que por outros dons. Era tímido, desligado e não tinha muito molho. Ficava em desvantagem diante de outros que mesmo feios tinham o charme da atitude e o olhar insinuante dos conquistadores. Se bem que acima da média estavam a sua inteligência e uma rara capacidade de imaginar. Sonhador de tanto ler fotonovelas, sonhava com uns romances quase puros, de abraçar a namorada que não tinha e beijar de leve os lábios que imaginava macios e doces, de camomila. Nos últimos tempos, na medida em que a púbere acrescia, ia aos poucos acrescentando uns ingredientes mais picantes em seus amores de ficção para onde fugia a viver distraído. Não obstante, jamais abandonava a ideia do etéreo amor que almejava viver. Naquela tarde em suas aventuras, levara Gorete, uma morena estonteante que sentava uma carteira atrás da sua. Rolava com ela no gramado que havia no pátio da escola, beijando como uma máquina as virtudes daquela pele. Não fosse aos outros alunos, o professor Mattoso falava às paredes.
Miriam era uma flor de moça, meiga e inteligente, além de muito bonita. Sonhava também com um amor de lealdade absoluta, carregado de sentimentos, um amor forte, desses que tem a grandeza de ser único. Os cabelos negros e curtos pronunciavam o rosto cheio de viço e contrastavam com a pele clara deixando à vista o pescoço sobre a gola da blusa do uniforme. Os olhos irradiavam a beleza ímpar de um raro azul escuro que beirava o violeta. Edmur quase encerrou o semestre sem notá-los - imagina se fossem discretos - mas, um fato depois do intervalo, fez com que lhes deitasse olhos de admiração e a partir de então, passou a chamá-los de olhos de Liz Taylor. Se não os notara antes foi por ser muito distraído de tanta imaginação e um bocado tímido para fitá-los de frente. Tinha a menina um corpo vistoso, muito diferente do corpo das modelos magérrimas porque dispunha de outro tipo de beleza: a de atrair os olhos descompromissados de medidas. Tinha urgência de vida como se tudo o que queria viver tivesse que acontecer naquela hora. Daí, o bilhete onde escrevia coisas que ele tinha que saber urgentemente.
Enfim, o sinal. Miriam guardou o papel entre as folhas do caderno e saiu na mesma pressa dos colegas para o pátio do colégio sem perder Edmur de vista que andava a dissimular os olhares que lançava às pernas de Gorete.
No intervalo, a algazarra dos alunos em recreio era uma alegria de pássaros em revoada, indiferente às frases fixadas a tinta nas paredes: “Fora Fulano”, “Liberdade ao Centro Cívico”, “ Abaixo a ditadura”, “.....”. Provavelmente escritas pelos alunos do clássico, do normal, do científico, engajados ao movimento estudantil na luta contra o regime militar no Brasil. Ainda não havia sido redigido o Ato Institucional Nº 5, fato que aconteceria no dia treze de dezembro daquele ano e que tornaria mais intenso o autoritarismo e a repressão. Forças repressoras dispostas a massacrar jovens idealistas e contestadores, ou quaisquer que simpatizassem com ideias consideradas subversivas. Aos alunos da terceira série, porém, não tinham nenhum significado aquelas frases. Eram juvenis demais para enxergarem além da flor dos quinze anos.
Gorete não perdia ocasião para assediar Edmur que só tinha coragem de abraçá-la em seus devaneios. Era mais velha dois anos, entrara um ano atrasada na escola e repetira a segunda série. Todo dia na sala de aula insinuava-se dizendo frases que o deixava encabulado e sabia disso. Gostava do efeito que causavam. Às vezes, tocava de leve com a ponta dos pés o seu calcanhar e quando se voltava para olhar, ela de propósito derrubava qualquer objeto para apanhá-lo, e curvando-se, deixava à mostra as coxas roliças que a saia curta não cuidava de encobrir. Divertia-se o vendo corar, mas desejava-o intensamente. Naquela tarde, vendo o rapaz sozinho no banco em frente à cantina, aproximou-se cheia de cismas e sem pudores:
- Oi, menino!
- Oi, Gorete!
- Acho você lindo. Sai comigo. Vamos nos encontrar dia desses em algum lugar?
Dizia isso com o olhar cheio de langor e fixo em seus olhos que despencaram ao chão enquanto que a face corava e as mãos suavam a encharcar a palma.
A sirene tocou e Edmur, que não sabia o que dizer sentiu-se salvo pelo gongo. Gorete, interrompida em seu intento, mas, convicta de ser desejada.
Miriam, pedindo licença à dona Geny, professora de Matemática levantou-se da carteira, entregou o bilhete a Edmur e voltou assim como saiu, rapidamente para o seu lugar. O papel cheirava a perfume e tinha o desenho de um coração feito com lápis vermelho acima das linhas escritas. A cena aconteceu durante o burburinho da volta à sala, antes do pedido de atenção da professora que na época era uma ordem. Por isso, nem Gorete, nem tampouco os outros alunos perceberam o que Miriam entregara, quanto menos o que escrevera no bilhete:
“Edmur, faz tempo que estou apaixonada por voce. Melhor dizendo, faz tempo que eu te amo. Sei que não tem olhos para mim porque nunca te vi me olhando. Só queria que soubesse desse meu sentimento que é sincero. Não tive namorado, mas sonho com seus olhos o tempo todo. Quero que me responda se sente ao menos carinho por mim. Assim podíamos namorar e quem sabe, você também me ame um dia. Espero ansiosa a sua resposta, meu amor, minha vida. Eu te amo. Sua Miriam para sempre”.
As frases ternas do bilhete, a equação de primeiro grau, os sussurros de Gorete às suas costas, os olhares de Miriam para trás, a inexperiência com garotas, estava tudo misturado num caldeirão que era o peito de Edmur. A cabeça não assimilava quase nada do que fervia em seus pensamentos, sentia-se perdido. Aquela tarde tinha que acabar e depressa. Urgia deixar a sala e ficar sozinho, pensar em tudo aquilo que como uma revolução, estava acontecendo em sua vida. Pensava na moça da segunda carteira da fila vizinha. Que olhos os dela. Olhos de Liz Taylor dizia a si mesmo depois de finalmente enxergá-los e notar a semelhança. Que palavras, falando dos sentimentos que tinha por ele. Do jeito que sempre sonhara que viria da boca de uma mulher. Gorete também, não lhe saia do pensamento. Que pernas mais grossas, que lábios mais fartos. Imaginava seus cabelos crespos e longos entrelaçando-se por entre seus dedos. Quase não ouviu o sinal de saída.
Miriam saiu apressada e triste por não ter resposta alguma. Seu pai esperava ao portão da escola como sempre. Gorete como que pressentindo perder seu menino se não tomasse atitude, chegou bem perto, pôs a mão em seu braço, fê-lo parar e colocou em seu ouvido palavras redemoinhando em hálito quente:
- Vá amanhã à hora da aula em minha casa. Não haverá ninguém lá, só nos dois. Vou ficar te esperando. Não vai se arrepender. Aqui está meu endereço.
Assim terminou aquela tarde, a hora do jantar, a noite de insônia que Edmur atravessou sem pregar os olhos. Voou por horas imaginando se deveria pousar nos braços de Gorete e viver ao seu lado uma paixão ardente, ou se deveria inclinar-se ao sublime amor que Miriam lhe oferecia. Decidiu-se ao amanhecer pela primeira. Não era pequeno o desejo que sentia pela morena. Sem contar que com ela, estaria a poucas horas de conhecer o sexo, o que com a outra, mais vigiada ao que parecia e menos solta, era evidente que demoraria um pouco mais. Além do mais, tinha a sua inexperiência e timidez que Gorete saberia contornar.
À hora marcada bateu ressabiado ao seu portão. Tinha receio de que a mãe ou o pai saísse a atender. Qual, sem responder palavra, Gorete entreabriu a porta e fez um sinal com a mão mandando que entrasse. De repente, a timidez deu lugar a uma vontade imensa de abraçá-la, de tocar aquelas pernas generosas que estavam à sua vista vestidas de um short apertado e curto a se espremerem entre a lâmina da porta e o batente. Entrou a passos apressados esquecendo lá fora o medo de que houvesse mais alguém em casa. Em fração de segundo, sentiu seu órgão intumescer e não deu conta de se preocupar com isso como fazia sempre que acontecia na rua, no ônibus, em lugares onde se desesperava por esconder. Gorete, estimulada pelo gozo da conquista ao ver o seu menino tímido ali em carne e osso excitado por causa dela, trocou até de hálito conforme pôde Edmur sem nada entender, sentir no beijo ardente. Para o quarto da moça, foram os dois e se amaram a tarde inteira.
Assim foi outras vezes, muitas vezes noutras tardes. A mãe de Gorete saía de casa as treze em ponto a trabalhar e o pai vendedor viajante, só voltava para casa nos finais de semana. O semestre letivo acabou, mas, as férias não separou o casal que se encontrava amiúde, continuando depois no retorno. Mataram as aulas tantas vezes que ao final de outubro seus pais foram chamados à coordenação a prestar satisfação. Não ligaram a falta de um à ausência do outro embora, a coincidência dos dias. Por isso, nunca souberam dos seus encontros que não pararam por ai, aconteciam com mais cuidado, mais espaçados.
Nesse ínterim, Miriam que entendia o que estava acontecendo entre eles, ouvira Edmur dizer aos colegas que no próximo ano pediria transferência para o período noturno. Queria trabalhar durante o dia, mesmo contrariando o pai. Achava que já era hora de ganhar seu próprio dinheiro. Ainda mais apaixonada, ressentia-se da indiferença do rapaz que nunca mais falara com ela e ainda abaixava a cabeça ao feitio dos devedores ao se cruzarem no recinto da escola. Não podia suportar a ideia de perdê-lo de vista. Enquanto estivesse por perto, conseguiria imaginá-lo rompendo com Gorete numa briga furiosa, dessas em que se dizem tantas duras palavras que torna impossível a volta. Mas, fosse para longe dos olhos, tinha certeza que a única cena que a sua alma veria, era a da outra em seus braços como vez ou outra via em sonhos, de onde acordava em sobressalto.
O ano chegava ao fim, se bem que muitos anos depois, Zuenir Ventura lançaria um livro em estilo jornalístico, retratando os fatos que marcaram o conturbado ano de 1968 no Brasil e no mundo, referindo-se a este como o ano que não terminou. Miriam alheia aos fatos políticos, aspectos sociais e culturais de uma época que marcou a história, tomou uma decisão e num ímpeto, abordou Edmur na saída da aula, aproveitando que Gorete já se distanciava atravessando a rua conversando com as colegas, e que seu pai não viria buscá-la como fazia todos os dias.
- Sei que sequer perdeu o seu tempo em responder ao meu bilhete. Inocente não é? Sei que tem ficado à cama com Gorete e é o que vejo em seus olhares. Não entendeu o meu sentimento.
- Mirim, me desculpe se não respondi, mas é que fiquei sem jeito de dizer. Achei que com o tempo as minhas atitudes responderiam por mim. Não vê que não consigo olhar para você quando nos encontramos pelos corredores? Acho que o seu amor é tudo aquilo que sempre imaginei e quis, mas, quando dei por mim, estava pensando que era jovem demais para desperdiçar a vida e a oportunidade de vivê-la. Quando vivi, senti que não era mais merecedor do seu amor. Dai meu embaraço e constrangimento sempre que a via.
- Não, você não entendeu. Achou o meu amor pueril. Não compreendeu que era a minha vida, meu tudo, e que a você eu me entregaria de corpo e alma. Não lhe culpo. Difícil decidir por uma menina que sai da sua carteira, entrega um bilhete com um coração vermelho desenhado e volta correndo deixando umas palavras bobas a declarar seu amor. Difícil imaginar que a moça daquelas palavras lhe quer tanto. Que pena, meu amor! Tudo será diferente no ano que vem. Voce há de estudar à noite e talvez nunca mais nos vejamos. Então, estou decidida a não mais te querer. Seja feliz.
Ele tentou dizer palavras, segurá-la, mas, ela determinada saiu a passos apressados sem olhar para trás. Mais uma semana e o ano letivo acabou. Pouco se olharam naqueles dias, mas a verdade é que o amor de Miriam fazia pulsar mais vivo que nunca e dela exigia um esforço sobre humano para não se trair e revelar. No coração de Edmur, nascia um sentimento a quem dera frouxas e infundadas explicações esforçando-se para sufocar e que só mais tarde chamaria de amor. Quando não tinha mais jeito.
Quando chegou 1969, a vida era outra, os rumos dispersos, Gorete continuava a estudar no período da tarde, não se encontrou mais com Edmur que estudava a noite e trabalhava de dia. Miriam, também estudava à tarde em outra classe e as duas não se olhavam quando se viam. Amou Edmur em segredo por três anos e raro o via à distância, até que conheceu Sérgio, dois anos mais velho e cheio de vida, louco por aventurar-se pelas estradas com sua moto que sempre a levava na garupa; ela que tinha tanta urgência de vida.
Foi em julho de 1978 que Edmur viu a manchete de um jornal local: “Casal morre em acidente de moto na rodovia”. Na foto, o rosto da moça por quem reconheceu um amor tardio, que nunca viveu, e que vividos outros tantos, loucos, mornos, serenos, febris, jamais sentiu igual. Na foto estampada em preto e branco, olhava os olhos rebentos de oceano no rosto claro de Miriam.