SOPHIA
- Ô Bigode! Mais um copo por favor.
- O Senhor já bebeu demais hoje professor Jorge, vai aca...
-Mais um copinho parceiro, a saideira.
A cena era triste de se ver, o bar era frequentado por alunos e professores da Universidade Federal, por ficar bem ao lado do Liceu, o bar fora apelidado de DCE, Diretório Central dos Estudantes, a maioria dos alunos sem futuro poderia facilmente ser encontrada lá, raramente via-se um professor por ali, em geral no fim do ano eles fechavam o lugar para a confraternização dos docentes da instituição, mas se você olhasse atentamente, veria nosso personagem destoando, debruçado sobre o balcão, visivelmente embriagado. O Professor Jorge era um homem conhecido no Liceu, lecionava a mais de 25 anos, tinha preferencia pelas séries iniciais, gostava de Álgebra linear e de Geometria analítica, mas, seus 2 doutorados, 3 mestrados e suas pós graduações a perder de vista lhe concediam cabedal suficiente para lecionar o que bem entendesse dentro da matemática. Era um professor nato, amante da matemática e amante do ensino, tinha paixão por ensinar, preparava as aulas meticulosamente e lecionava com verdadeira paixão, talvez por isso fosse tão amado por seus alunos, sua constante alegria contagiava a todos no recinto, mas isso fora antes, a figura que você veria agora seria a de um homem abatido, com a barba por fazer, olhos fundos e sulcados na face, lábios rachados e unhas crescidas, o cabelo desgrenhado e um cheiro acre que dizia a todos que o chuveiro não havia sido visado nos últimos dias. Se um dia os portões do inferno se romperem, e o espírito da depressão se manifestar fisicamente na sua frente, nesse dia você compreenderá a verdadeira descrição do professor Jorge sentado naquele bar.
-Boa tarde, com licença, o senhor está bem?
Jorge levantou os olhos, uma jovem que aparentava 28 anos lhe chamava, ela estava sentada ao seu lado, vestia uma calça Jeans azul e uma blusa de algodão branca, que usava presa, deixando assim seu busto desenhado, não era a melhor das estratégias, uma vez que busto não era necessariamente um dos seus pontos fortes, tinha um colar dourado com uma singela letrinha S pendurada; Seu rosto era suavemente redondo, enfeitado por um belo sorriso, usava brincos dourados, combinando com seu colar, havia uma corujinha em cada brinco que você poderia ver com certa dificuldade, uma vez que os cabelos as escondiam quase por completo.
O professor olhou para a jovem, abriu um sorriso e disse:
-Pedagogia.
-Como... Como o senhor sabe?
- As corujinhas na sua orelha, a coruja é o símbolo da pedagogia. Não foi difícil imaginar que estudes pedagogia aqui na frente, em qual período você está minha jovem?
A jovem suspirou aliviada, parecia que um peso havia saído de seus ombros.
-Vejo que o senhor está bem triste, o que lhe aconteceu?
-A vida, minha querida, é uma sucessão de desgraças e de alegrias, de modo que a balança do universo esteja sempre equilibrada. Se algo bom ocorre a você, algo ruim tem que ocorrer com outra pessoa, assim o universo se mantém equilibrado. Entende?
-Entendo que o senhor já bebeu demais.
-Em algum lugar do mundo algo maravilhosamente bom aconteceu com alguma pessoa, e o universo para compensar, choveu desgraças sobre mim.
-Mas que pessimismo professor, o senh...
-Não sou mais professor! Olhe aqui. (Disse enquanto tirava papéis de sua valise) Pedi minha exoneração hoje mesmo, nunca mais darei aula.
-Mas professor... Oque aconteceu?
-Prometheus, ele aconteceu.
-Não entendo.
-Zeus pediu que Prometheus criasse os homens, e ele o fez, mas Prometheus amou a sua criação e isso despertou a ira de Zeus, então... Ah, a história é grande, em fim, Zeus para punir o homem cria a mulher e diz que a ruína dos homens seriam as mulheres!
-Pelo visto alguma mulher quebrou seu coração.
Nesse momento a Jovem se aproximou do professor Jorge e com uma voz doce pediu que ele lhe contasse sua história. Foi notório a todos do bar que aquela jovem estava tentando ganhar o coração do professor.
-Quer mesmo saber?
-Conte-me professor, talvez eu possa ajudar a consertar esse mal.
-Então tudo bem. (Disse virando seu último gole e tomando a antiga postura de professor que se prepara para uma longa aula)
A maioria dos funcionários do Liceu entra pelo portão lateral, uma vez que é o mais próximo do estacionamento, comigo não é diferente, por isso sempre quando chego e quando vou embora eu passo em frente a esse bar. Em geral são sempre as mesmas pessoas, sempre os mesmos alunos. É comum no início do período aparecer um ou outro calouro, mas em geral nada de interessante acontece aqui, até o dia que vi ela...
-Até o dia em que "a vi", professor.
Ora não me interrompa.
Era uma mulher muito bonita, estava sempre naquela mesinha ali na calçada. Usava sempre o mesmo vestido longo e vermelho, tinha cabelos cacheados, semelhante aos seus. Não era um mulherão desses de comercial de cerveja, era uma mulher simples, mas... Havia alguma coisa nela que me chamava à atenção, uma sensação de que a conhecia de outro lugar. O mais estranho é que ela estava todo dia sentada na mesma mesa, tomando a mesma xícara de café, com o mesmo vestido sempre, tanto na hora que eu chegava quanto na hora que eu saía todo santo dia. As vezes eu tinha a impressão que ela me olhava. A curiosidade começou a crescer dentro de mim. Quem era aquela mulher? Por que sempre estava ali, com as mesmas roupas o dia todo? Nunca vi ninguém falar com ela ou notar sua presença estranha. Uma mulher que passa o dia todo na mesa de um bar é algo a se notar, parecia que só eu a via. Um dia algo aconteceu, que dia maldito esse... Um dia em que as Parcas decidiram brincar comigo. Nesse dia ela me olhou. Olhou dentro dos olhos e eu senti, senti que precisava falar com ela. No fim da aula fui direto até ela, como a ovelha que desce ao matadouro, como o Cristo que... Em fim, fui até ela e começamos a conversar.
-Esse lugar aqui está ocupado?
-Não, claro que não, pode se sentar professor.
-Como sabe que sou professor?
-Sou uma admiradora do seu trabalho professor Jorge, adorei aquela sua dissertação de mestrado, como era mesmo o nome? Uma abordagem sócio-crítica da modelagem matemática: a perspectiva...
-Da educação matemática crítica. Como... Como você sabe disso?
-Tenho acompanhado seus passos doutor, o senhor é um homem muito interessante, bonito por fora e por dentro.
-Que isso, dona... A propósito, como é mesmo o seu nome?
-Ah professor, essa pergunta não é necessariamente importante.
-Vejo que você gosta de mistérios.
-Gosto de desvenda-los, mas diga-me professor (disse aproximando-se lentamente), qual será sua próxima tese?
-Olhe dona persigo-professores, agradeço o interesse, mas estou mais interessado em outros tipos de teses como... Por que você fica o dia todo aqui? E por que sou alvo dessa sua obsessão? Sabia que meus rins não são tão saudáveis assim?
-Tem medo de mulheres professor?
-Das que conhecem minhas teses por nome, que me conhecem por nome e que desconheço o nome, sim.
-O senhor não lembra mesmo de mim não é?
-Nos conhecemos? Achei que sim, mas... Não consigo lembrar de onde.
-Sim, nos conhecemos ha muito tempo professor.
-Perdão querida, mas realmente não me lembro de você. Por acaso nos encontramos no mestrado?
-Sim, lá também, e antes disso.
-Você é aluna da minha turma de matemática? Sarah? É você?
-Aff, não! A Sarah é uma tapada, não conseguiria diferenciar uma hipérbole de uma parábola.
-Hahahah é verdade, Sarinha era... Espera ai, você conhece a Sarah também? Afinal de contas quem é você?
Nesse momento ela se levantou e abriu um sorriso cativante.
-Eu sou a Matemática.
-"Da" licença amiga, tenho mais o que fazer!
Eu me levantei furioso, mas que ideia? Confesso que aquela mulher estava me chamando a atenção, mas não estava com vontade de brincadeiras. Ela nem se incomodou, continuou sentada bebericando o seu café enquanto eu seguia para o meu carro. Nos dias que se seguiram ela continuava lá, sentada, de vermelho, tomando café, de manhã quando eu chegava e a noite quando eu saia. A diferença é que agora ela me olhava constantemente. Acredito que se passaram mais uns três ou quatro dias, até que resolvi voltar a falar com ela, ver até onde iria aquele delírio. Talvez fosse uma renomada doutora que surtou, quem sabe não poderia usar a história dela como tese no futuro? Enlouquecimento Matemático: Perigos do Estudo Sistemático da Matemática.
-Então, Dona Matemática. Acredito que a senhora seja filha da Filosofia e neta de Atena. Ou de Minerva, como preferir.
-O senhor ainda não me acredita não é professor Jorge? Uma pena, poucos tiveram o privilégio que se descortina ante seus olhos.
-Se você é a Matemática nós nos conhecemos desde cedo, acho que ha uns 40 anos atrás, quando mamãe me ensinou a fazer “um aninho” com o indicador hahaha.
-Por ai, nessa fase eu agracio todos vocês da mesma forma, não me lembro em especial de você, a memória mais antiga que tenho de ti é do início da faculdade, quando você se apaixonou por mim, ali começou nosso romance, gostei de você e por isso obtive autorização para um agraciamento especial.
-Autorização? De quem?
-De minha mãe oras, nem uma de nós pode agraciar ou desgraciar de forma especial sem uma autorização dela. Ah propósito, você devia experimentar esse café, está divino.
-E sua mão seria Atena, certo?
-Ai meu Pai, eu deveria escrever um folheto explicativo, você parece Pitágoras com esse papo de filha de Atena, eu...
-Você conheceu Pitágoras então?
-Sim, conheci muitos na verdade, mas acredito que queira saber se Pitágoras me conheceu. Apareci a ele sim, assim como a você, agora me deixe continuar a história. Sou filha da Sabedoria, todas nós somos, eu e minhas irmãs, Deus criou a Sabedoria, ela foi uma das suas primeiras criações, Ele a ensinou tudo o que ela sabe, então a Sabedoria nos criou e a cada filha ensinou uma ciência em particular. Desde então cabe a nós ensinar aos homens. De tempos em tempos eu em particular gosto de me revelar a alguém que me chamou atenção, dessa vez escolhi você. Simples assim.
-Hum... Engraçado, não me lembro de menção alguma a você ou a sua mãe no livro de Gênesis.
-Professor Jorge... Por favor, o senhor é mais inteligente do que isso. Pense um pouco, minha mãe era a Sabedoria, qual foi o homem mais sábio de todos os tempos?
-Salomão, eu acredito. Está dizendo que eu deveria procurar nos escritos dele? Imagino que em um dos muitos livros perdidos de Salomão certo?
-O senhor ainda não me acredita não é mesmo professor? Em Provérbios de Salomão ele conta sobre a minha mãe. O senhor teria uma Bíblia ai consigo?
-Eu... Eu tenho no celular uma...
-Ótimo, então me de aqui.
Ela digitou algumas coisas, começou a ler como que procurando uma passagem específica, quando seu sorriso brotou na face.
-Provérbios capítulo 8, começa aqui, no verso 23.
Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra.
Quando ainda não havia abismos, fui gerada, quando ainda não havia fontes carregadas de águas. Antes que os montes se houvessem assentado, antes dos outeiros, eu fui gerada.
Ainda ele não tinha feito a terra, nem os campos, nem o princípio do pó do mundo.
Quando ele preparava os céus, aí estava eu, quando traçava o horizonte sobre a face do abismo;
Quando firmava as nuvens acima, quando fortificava as fontes do abismo,
Quando fixava ao mar o seu termo, para que as águas não traspassassem o seu mando, quando compunha os fundamentos da terra.
Então eu estava com ele, e era seu arquiteto; era cada dia as suas delícias, alegrando-me perante ele em todo o tempo;
Regozijando-me no seu mundo habitável e enchendo-me de prazer com os filhos dos homens.
-Vê? Não é poesia com a maioria dos homens pensa. Deus de fato criou a Sabedoria, um ser, e não um conceito. E a Sabedoria criou a nós, as ciências, ou como Pitágoras gostava, as Sophias.
-Muito interessante sua história, deixe-me ver se entendi bem: Você é uma Sophia, uma das muitas filhas da Sabedoria que tem como missão ensinar os homens. Olha... Isso daria um bom filme.
-Professor, sei como é difícil para sua mente humana aceitar essas coisas, mas vou lhe dar uma boa prova. Aplique um teste surpresa amanhã, faça a prova mais difícil que conseguir imagina. Aplique na sua turma de calouros. Uma prova surpresa de pré-cálculo.
-O que vai acontecer? Você vai sair dançando da prova como um gênio da garrafa?
-Não seu bobo, mas vou anotar sua ideia para encontros futuros. Eu vou dar um agraciamento temporário a um dos seus alunos, ao pior da sua turma, o Raul, e vou dar um desgraciamento temporário ao seu melhor aluno, o Lucas. Ai sim o senhor me acreditará.
Conversamos bobeiras por mais uma meia hora, eu não acreditei em uma palavra daquela mulher, sem dúvida ela se chamava Sophia e estava tendo alguma espécie de surto psicótico, mas... Alguma coisa... Não sei explicar bem o que. Alguma coisa me compeliu a aplicar o teste surpresa, fiz a prova mais complexa da história, não era um teste de pré-cálculo, usei profundos conceitos matemáticos, até eu teria dificuldade de resolver aquilo. Os alunos entraram em pânico, claro, mas expliquei que não valia ponto e só queria fazer umas pesquisas e tal, aquela conversa toda de sempre.
-E então professor, o que aconteceu? Não vai me dizer que ela estava certa?
-Acredite você ou não, o Raul gabaritou aquela prova e o Lucas, coitado, não soube nem como começar.
-Está dizendo que acreditou naquela história?
-É fantástica, eu sei, mas... Acreditei sim, resolvi que embarcaria na loucura dela, afinal eu não tinha nada a perder. Ao menos era que eu pensava... Ledo engano.
-E então, o que aconteceu?
-No dia seguinte eu voltei ao bar, precisava falar com ela, afinal... Ela era a própria Matemática!
Nesse dia nem fui dar aula, era uma sexta, como hoje...
-Olá professor Jorge, veio cedo hoje, não vai dar aula para os seus alunos?
-Ok, vamos supor, apenas supor esta bem? Quero deixar claro que ainda não acredito em você. Mas vamos apenas supor que de fato você seja uma... Como é mesmo o nome?
-Sophia professor, sou uma Sophia.
-Certo, vamos supor que você seja uma Sophia, e que seja a responsável pela matemática, o que... O que você quer comigo?
-Ah professor, a vida de uma Sophia é muito solitária, não somos seres humanos, mas também não somos como os anjos, somos... Outra coisa. Não posso virar fumaça e ir para o Céu, nunca vi o Céu na verdade, nem anjos, nem Deus, sou física entende?
-Acho que... Não, não entendo direito.
-Não morro, nem adoeço, mas sinto fome e sede, preciso trabalhar e pagar impostos, todas nós precisamos, assim sentimos na pele como a humanidade esta usando nossos conhecimentos. É por isso que nem todo mundo é um Einstein, porquê se não o mundo seria uma grande guerra.
-Acho que compreendo Sophia, mas, me diz, você mora por aqui?
-Não, eu nem moro no Brasil, na verdade moro na Rússia já faz alguns séculos, gosto do clima de lá e do idioma de lá. Na verdade todas nós falamos todos os idiomas e dialetos, temos todas as aparências também. Aos olhos de um russo eu pareço uma russa, aos seus...
-Uma bela brasileira. Essa sua história... É bem fantástica, quer dizer que existem outras como você andando por ai? Que posso ter sentado no ônibus ao lado da Química e nem saber?
-Exato professor, mas não somos tantas assim.
-Inacreditável, mas me diz: Você esta dizendo que viajou da Rússia até aqui só para me ver?
-Sim, eu conheço por alto todas as pessoas que me procuram, sabe? Quando você olha para a matemática, a Matemática olha para você. Eu gosto de ti Jorge, e... Como eu disse, a vida de uma Sophia é muito solitária... Eu... Queria te conhecer pessoalmente.
Agora imagina a minha cara! A própria Matemática estava dando encima de mim! Dá para acreditar?
-É... É realmente uma história e tanto professor, não sei se o álcool seria capaz de criar uma história assim, é realmente difícil de acreditas. Mas... Ainda não entendo. Você é solteiro, e ela pelo visto também é, o que aconteceu? Você deveria estar feliz da vida e não aqui nesse bar tomando sabe-se lá Deus quantos copos. Ela largou você ou coisa do tipo?
-Na verdade ela era maravilhosa, namoramos por oito meses.
-Oito meses!? É um bom tempo... Professor, posso lhe fazer uma pergunta?
-Claro menina.
-Desculpe a intimidade, mas... Oito meses é um bom tempo... Vocês chegaram a... Você sabe, “às vias de fato”?
-Não, não chegamos tão longe, fui criado em um lar cristão, sou das antigas, essas coisas só depois do casamento.
-Não sei o que é mais difícil de acreditar. Nessa história de Sophias ou na história do “quarentão” que não leva as mulheres para cama.
-Quarentão? Hahaha Sou muito mais eu que esses meninos de 20 de hoje em dia.
-Tenho que concordar professor, o senhor tem seu charme.
Nesse momento o professor Jorge percebeu que a Jovem estava corada, a visão daquela mulher corada, tentando ganhar seu coração fez o professor se esquecer de sua depressão por alguns instantes. Se havia sido uma mulher o veneno para a sua alma, sem dúvida seria uma mulher a cura. O princípio homeopático funcionava ao menos para esses casos.
-Similia Similibus Curantur
-Como é professor?
-Desculpe querida, estou pensando alto.
-Mas e então professor, o que houve?
-Ciúmes.
-Entendo... Deve ser difícil ter que dividir a Matemática com todos os outros.
-Não! Não eu, ela!
-Ela tinha ciúme das outras mulheres? Já sei, das suas alunas!
-Não.
-Ah professor, agora eu me perdi de novo, será que o senhor pode explicar logo?
-Ela era extremamente ciumenta sim, mas, não tinha ciúme das minhas alunas, tinha ciúme... Das outras ciências.
-O senhor conheceu as outras Sophias!?
-Não criança, ela não queria que eu estudasse mais nada. Só podia estudar matemática, só podia pensar em matemática. Tudo tinha que ser ela por ela e para ela. Ler um pouco de história ou estudar um mapa era para ela como a trair com a História ou a Geografia, ela morria de ciúmes das irmãs. Brigávamos muito por coisa disso. Um dia chegamos ao limite. Com “x” tendendo a zero.
-Oi amor, cheguei.
-Olá Sophia, não vi que já tinha chegado, e então, como foi lá?
-Estou um caco, aquele supermercado é horrível.
-Não fique assim querida, você vai conseguir um emprego melhor. Por que não tenta no Liceu?
-Bem que eu queria, mas as regras são claras, não posso ensinar matemática como você. Só posso agraciar as pessoas. A única Sophia que pode lecionar é a minha irmã, a Pedagogia, seu o fizesse estaria entrando na praia dela.
-Falando nisso, olha que artigo interessante esse, é de Piaget, fala da criança no...
-Espera um pouquinho ai! Que pouca vergonha é essa Jorge!?
-Ah Sophia deixa de besteira, eu só estou estudando um pouco. Sou professor lembra? Preciso me inteirar nas técnicas pedagógicas, não basta só saber, é preciso saber ensinar. Vem cá... Você sabe que...
-Sai, não encosta em mim. Você acha que sou o que? Uma p***?
-Que isso Sophia!?
-É isso mesmo! Eu dou as costas para você algumas horas e você fica ai se esfregando com ela na minha cara.
A cena era constrangedora e inquietante, o professor Jorge não sabia como lidar com aquela situação, não era a primeira vez que aquilo acontecia, mas cada vez a briga era mais feia. Sophia estava com um ar transtornado, toda a sua beleza e simplicidade tinham se esvaído e tudo que o professor Jorge podia contemplar agora eram aqueles olhos fanáticos, um olhar doentio, psicótico. A Matemática estava descontrolada, possessa por uma fúria que só uma mulher imortal poderia ter. O professor Jorge tentou respirar e ser racional. O momento era crítico.
-Não estou me esfregando com ninguém amor, estou apenas estudando pedagogia e não pegando a Pedagogia, existe diferença querida.
-É a mesma coisa, acha que ela não pode ver você? Enquanto você fica ai lendo ela está olhando você, sentindo você, e vocês ficam ai, nessa fornicação! Desde quando eu deixei de ser suficiente para você?
-Ai amor, entenda, eu sou humano, não posso deixar de estudar as coisas, por mais que eu tente... Uma hora eu vou ter que ler um texto de alguma outra ciência. Caso contrário eu me tornaria... Sei lá, um autista talvez. Não tem como.
-Mas precisa! Eu te quero só para mim Jorge, vamos ficar juntos só você e eu, eu posso te agraciar, te dar o conhecimento que a sua espécie não conseguirá compreender em séculos.
-Como fez com Fermat?
-Não, muito mais que isso, a humanidade levou 400 anos para chegar aonde Fermat chegou em uma tarde, mas com você... Eu te amo Jorge, farei de você o expoente da matemática em um novo mundo, passarão séculos e séculos e os homem não acompanharão o seu conhecimento.
-Olha Sophia, eu te amo, você sabe disso, esses oito meses foram os melhores da minha vida, mesmo que você não fosse que é eu ainda te amaria.
-Que lindo meu bem, sabia que você não me desapontaria. Vamos, beije-me se sele o nosso trato.
-Trato?
-Sim, eu lhe agracio sobremaneira e você abre mão de todos os outros conhecimentos.
-Eu... Eu... Eu não posso. Não posso deixar de ser quem sou querida, não posso largar meus alunos e...
-Como!? Como pode pensar em lecionar quando te ofereço o mundo? Você precisa decidir agora o que você quer, mas pense bem senhor Jorge, porque seu eu sair por aquela porta você nunca mais me verá?
-Meu Deus... Ela é neurótica professor!
-Exato, era totalmente possessiva, sabe, eu amo a matemática, de verdade, mas não podia abandonar os outros saberes, não estava traindo ela, mas... Você me entende?
-Entendo sim professor, é como o marido que ama a esposa, mas tem amigas mulheres também.
-Isso mesmo! Algumas esposas são ciumentas, outras não. A Matemática era o ciúme em pessoa. Acho que todas as Sophias devem ser assim.
-Não sei professor, acho que cada um é cada um, do mesmo modo que os seres humanos são diferentes, acho que essas tais Sophias também devem ser.
-Não faz diferença, a desgraça já foi feita.
-Mas termine a história professor, o que você disse para ela?
-Resolvi por um ponto final naquela maluquice, ela ia sofrer e eu também, mas seria o melhor para nós dois. Disse que a amava, mas que minha verdadeira paixão era a pedagogia...
-Sério!? Que lindo professor...
-Você está corada! hahaha
-Desculpe, me emocionei. Seu amor pela pedagogia é lindo professor, o senhor ama lecionar de verdade, seus alunos deve ser os mais sortudos da faculdade.
-Mas... O que houve?
-Ela foi embora e nunca mais a vi. Disse que seu amava a pedagogia que ficasse com a pedagogia e só.
-Foi melhor assim professor, não acho que você deveria se deprimir tanto, ela estava fazendo tempestade em copo d’água. O senhor é uma boa pessoa, merece uma boa mulher. Não fique triste.
-Não é isso que me entristece.
-E o que é então?
-Ela me tirou tudo. Ela disse que para agraciar de forma especial a um homem ela precisava de uma autorização, pelo visto a autorização também servia para desgraciar de um modo especial.
-Meu Pai... O que ela fez com você professor?
-Ela me tirou tudo, me levou todo o conhecimento de uma vida, hoje em dia eu não consigo nem contar até três, não consigo dar um simples troco, na verdade... Não lembro ao certo nem o nome dos números. Por isso pedi minha exoneração. Não posso mais lecionar.
-Gente, mas isso é horrível, ela não tinha esse direito!
-Logo que percebi o que havia acontecido entrei em crise, não queria acreditar, todo o meu trabalho, todo um legado jogado fora. Não conseguia dar aula, não conseguia acompanhar meus alunos do mestrado, não conseguia nem ver as horas. Tentei, juro que tentei, mas simplesmente não consigo. Pensei em voltar a estudar matemática, mas sempre que começo... É como se ouvisse ela rindo de mim, ela me vê, e ri de mim. Lutei para dar aula, fiz alguns slides, tentei enrolar as turmas, mas simplesmente não consigo. Meu rendimento caiu assustadoramente. Já estou nessa luta há um semestre, então essa semana resolvi pedir as contas e desistir da vida acadêmica. Estou em absoluta desgraça, não sei o que será de mim.
-Uma vaca professor! Isso sim! Uma vaca! Que tipinho vingativa! Mas não fique assim professor. Imagina só como seria sua vida casado com ela?
-Eu seria pai de um triangulo retângulo! Hahahah
-Hahaha, o senhor não tem jeito não é mesmo? Ânimo professor, o senhor é um bom homem e... Sinto que coisas boas vão acontecer ao senhor.
-Acha mesmo? Não consigo nem comprar as coisas direito, não entendo bem como o dinheiro funciona, não mais. Agora na dúvida dou uma nota amarela, aquela da onça, mas não consigo gravar se a onça vale mais ou menos que o peixe ou a tartaruga. Minha vida simplesmente acabou, não é possível viver no mundo sem a menor noção de matemática, sem noção de quantidade, de maior e menor...
-Calma professor! O senhor mesmo disse que a vida é uma balança, aconteceu algo super-bom, que foi conhecer uma Sophia, depois algo super-ruim que foi... Essa briga de vocês, agora algo bom deve acontecer de novo, fora que...
-O que?
-Ela disse que precisava da autorização da Sabedoria para lhe abençoar certo? A Sabedoria vem de Deus e Deus sabe o que faz. Talvez Deus tenha um plano nisso tudo. Quem sabe coisas boas não acontecem?
-Não sei não...
-Ânimo professor, olhe, vamos fazer o seguinte, hoje é sexta-feira e já está tarde, o Sol já se pôs. Amanhã o senhor vai cancelar sua exoneração, vai pedir uma vaga para lecionar outra coisa. Todos gostam do senhor lá, o senhor poderia lecionar pedagogia para os professores mais novos em forma de cursos ou para os alunos de pedagogia mesmo, é só você inventar que teve um surto ou coisa do tipo, a faculdade vai entender, sem dúvida vão preferir o realocar a lhe aposentar.
-É uma boa ideia, sou bom com isso, me dou bem com pedagogia.
-É assim que eu gosto! Gostei desse seu sorriso! Agora vamos, eu moro aqui perto, vamos lá em casa tomar alguma coisa, garanto que o senhor se sentirá melhor.
O professor Jorge sorriu, aquela jovem era realmente bela e tinha um sorriso encantador, de alguma forma ele se sentia a vontade perto dela, Levantaram-se e saíram de mãos dadas do DCE, sorrindo feito dois adolescentes, o professor Jorge sentia que algo muito muito bom estava prestes a acontecer. Afinal a vida não era tão ruim assim, perdera seus conhecimentos, mas o "acaso" o levara a conhecer aquela Jovem, ela tinha um semblante de paz e sempre que olhava no fundo dos olhos dela sentia que coisas boas aconteceriam...
-Você mora perto a ponto de ir a pé? Vamos no meu carro, está logo ali. (Disse o professor passando o braço envolta da cintura da jovem.)
-Nem morta, você já bebeu demais. É pertinho, algumas quadras só, vamos aproveitar o tempo para nos conhecer um pouquinho mais.
-Tudo bem dona se-beber-não-dirija, vamos a pé. Ah propósito, como é mesmo seu nome?
-Ah professor, essa pergunta não é necessariamente importante.