AMOR EM TEMPOS DE ÓDIO I

I

Um lobo no aprisco

Eis que vos envio como ovelhas ao meio dos lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes e inofensivos como as pombas.

(Matheus, Cap. 10 v. 16)

O ano de 1572 se iniciara na França trazendo presságios funestos.

Após as vitórias católicas nas guerras religiosas de três anos antes, os huguenotes haviam voltado a se organizar e se fortalecer, o que inquietava profundamente ao Louvre e as casas da nobreza juramentadas à Coroa.

Estamos numa manhã ensolarada do mês de abril. Destas em que a primavera no hemisfério norte se veste de verão para espantar o frio costumeiro do Velho Mundo. Uma sege com as armas da Casa de Guise adentra os jardins de um palácio nos arredores de Chartres. Apenas um passageiro viaja nela. Trata-se de um homem de presumíveis vinte e sete anos, de cabelos encaracolados e negros como a noite. Os olhos, de um castanho escuro profundo e cismático, fixam o vazio através da janela da carruagem, indiferentes à beleza do cenário em derredor.

Uma vez no pátio destinado aos coches, o passageiro, guiado por um soldado de armadura e alabarda, segue ao encontro do seu anfitrião. À medida que avança, é saudado pela guarda palaciana com a continência devida aos oficiais de alta patente. Finalmente alcançam a sala de audiências, onde o proprietário do solar, debruçado sobre a mesa de trabalho, detinha-se a examinar alguns documentos nos quais figurava o brasão real de Charles IX. Henri de Lorraine, o terceiro duque da casa de Guise, contava vinte e dois anos por essa época e, malgrado a pouca idade, já era um dos homens mais poderosos do país, partilhando com o então duque de Anjou a sucessão ao trono da França.

- Capitão Jerome Villeneuve – exclamou o duque de Guise com certa afetação – Os Céus o enviam em tempo hábil. Espero que a viagem tenha transcorrido a contento.

O interpelado executou a vênia tradicional e agradeceu:

- Muito grato pela deferência com que me honrais, Sua Graça. Não poderia ter quaisquer reparos com relação ao cuidado extremo com que fui conduzido até aqui.

O dignitário dispensou o soldado com um gesto e convidou Jerome a sentar-se. Ofereceu-lhe uma taça de vinho e, sem maiores rodeios, iniciou a exposição dos motivos que o levavam a convocar os seus serviços.

- A França vive um período assaz turbulento, capitão. A cizânia divide a nação e tem se tornado mais difícil a cada dia preservar a unidade do reino. Por toda parte espocam rebeliões, atentados, proliferam conspirações e assassinatos levados a efeito nas sombras. De nobres a campônios, ninguém está a salvo. Uma onda de intolerância varre o país de norte a sul, malgrado todo o nosso empenho em buscar restaurar o equilíbrio. A Coroa sozinha não tem conseguido manter a ordem e reclama com constância que todos os aristocratas leais ao rei e à Santa Sé, multipliquem esforços no sentido de obstar que essa praga separatista continue a vicejar. Desde que aquele maldito monge herético da Saxônia(1) se pôs a semear a discórdia no seio da cristandade, perdemos por completo o direito à paz e à tranquilidade. É como se o próprio Inferno se houvesse retirado das entranhas da Terra para materializar-se na Europa.

Jerome assentiu com um gesto de cabeça:

- De fato... Até receber a vossa missiva, supunha que apenas os arredores de Nantes sofressem com tais dissabores, mas constato agora que Paris também segue sendo assediada por esse espírito de discórdia fratricida.

- Antes fosse assim, meu caro – lamentou-se Guise enquanto sorvia um gole de vinho – Não me ative a maiores detalhes na mensagem porque julguei mais pertinente deixar-te a par dos acontecimentos apenas quando estivéssemos frente a frente.

O duque se dirigiu até a porta e trancou-a, isto depois de dispensar os soldados que montavam guarda à entrada de seu gabinete. Tendo se certificado de que estava a sós com o oficial de Nantes, discorreu acerca da missão que lhe reservava:

- Os motivos que me impeliram à tua convocação, capitão, são da mais estrita confidencialidade. Tenho motivos para suspeitar que os bastardos huguenotes arquitetam um levante armado contra a realeza e que estariam recrutando soldados entre os miseráveis de Paris para levar a curso essa odiosa sedição.

Era visível a estupefação no semblante de Jerome. Guise, contudo, não lhe permitiu formular quaisquer indagações.

- Há pouco mais de dois meses – prosseguiu o dignitário – fui informado de uma movimentação assaz suspeita nos arredores de Montparnasse, mais precisamente, nas cercanias da necrópole. Pelo menos uma vez por semana uma grande multidão de estropiados, maltrapilhos, prostitutas e toda a escória da sociedade parisiense, aflui para as catacumbas, fazendo-se acompanhar até mesmo por alguns fidalgos. Dentre estes, verificou-se que um certo André de Chauvagne sempre se faz presente. De acordo com os últimos relatórios – ele designou com um gesto os papéis dispersos na mesa de trabalho –, trata-se de um conde oriundo da região de Flandres que teria apostatado da fé cristã para abraçar essa odiosa mistificação calvinista. Ao que me parece, este tal conde estaria empenhando a sua fortuna na difusão da heresia protestante...

- Compreendo – aventurou-se o militar – Dar-se-á seja este mesmo conde um sedicioso?

- Tua perspicácia é realmente invejável – respondeu Henri com um sorriso que lhe conferia algo de sinistro à catadura – Ainda não disponho de provas contundentes neste sentido. Além do mais, trata-se de um fidalgo, o que torna as coisas sobremodo mais complicadas. O país vive um período demasiado turbulento para que eu me atreva a acusar de forma leviana um aristocrata e, desta forma, conjurar uma tempestade sobre a minha cabeça. O simples fato de ser ele um huguenote já deveria bastar para acusá-lo de sedição, não obstante, é preciso ter cautela.

Sem conseguir conter mais a curiosidade, Jerome finalmente inquiriu:

- Qual o meu papel, Sua Graça? De que forma os meus préstimos poderiam servir à causa nacional?

Guise tomou assento novamente, mas desta vez inclinou-se na direção do seu convidado:

- Capitão Villeneuve... Tua longa folha de serviços prestados à França te gabarita a ser o único homem que eu poderia cogitar de incumbir de uma tão arriscada empresa: preciso que te imiscuas entre essa ralé subversiva e obtenhas as informações necessárias ao desmantelamento da cáfila de celerados que rasteja nos subterrâneos de Paris! Não foi por outra razão que determinei a nossa reunião aqui, em Chartres, fora da capital e fora de Nantes, onde resides. O fato de não seres conhecido pelos frequentadores da corte, há de facilitar o teu contato com os demais nobres que andam a maquinar torpezas na escuridão.

Jerome fitou o seu interlocutor como quem já adivinhara desde o princípio os seus reais móveis.

- De fato é uma tarefa arriscada... Mas não me cabe senão aceitar. Disponha de meus serviços como desejar, Sua Graça.

- Excelente! – exclamou o duque apertando as mãos do oficial entre as suas – Então devemos iniciar os preparativos o quanto antes. Ainda esta semana seguirás para Paris. Os meus informantes pôr-te-ão em contato com essa “sociedade das trevas”.

Uma semana depois, Villeneuve se encontrava nos subsolos de Paris, imiscuído com a imensa grei de deserdados que, hebdomadariamente, se congregava nas catacumbas para ouvir a pregação de um mancebo cuja idade não deveria ultrapassar, quando muito, os trinta verões.

O conde André de Chauvagne era um homem de compleição esguia e de basta cabeleira loira a cair pelos ombros. Os olhos azuis como safiras, a boca de lábios róseos e o nariz, pequeno e afilado, completavam o conjunto de um ser que parecia saído das páginas da mitologia celta, ou mesmo de alguma iluminura angélica caprichosamente traçada por um monge copista enquanto traduzia os sagrados manuscritos. A sua figura andrógina sugeria tamanha fragilidade, que Jerome duvidou seriamente da possibilidade de que aquele mancebo pudesse representar qualquer risco para quem quer que fosse.

"Então é este o tal que vem tirando o sono do duque de Guise?" – pensou o espião esboçando um sorriso discreto.

A impressão inicial se desvaneceu como a névoa do amanhecer, tão logo o conde de Flandres iniciou a preleção:

- Caros irmãos e irmãs em Cristo, graça e paz sejam convosco. Possam os anjos do Senhor derramar as bênçãos imortais que manam do Trono Celeste sobre os vossos corações ulcerados.

Um “amém” discreto, mas poderoso, ressoou pelas paredes do recinto em resposta à saudação do pastor huguenote, cuja voz grave e solene contrastava sobremodo com a aparente fragilidade de sua constituição física.

- Como de praxe, a passagem do Evangelho da noite será escolhida aleatoriamente, pois é o Senhor quem revelará os seus desígnios para nós através da Sagrada Escritura.

André tomou da bíblia que portava e solicitou a um dos presentes que a abrisse ao acaso. Uma vez feito o procedimento, o colaborador em questão realizaria a leitura do trecho designado e o pregador passaria à interpretação do excerto junto à assembleia dos fieis.

A incumbência de selecionar a passagem bíblica coube a uma jovem de presumíveis dezesseis anos que, apesar da dificuldade comum aos membros das camadas populares que principiavam a ler, deu cabo da tarefa de forma satisfatória:

“- Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e todo o conhecimento, e ainda que tivesse toda a fé ao ponto de transportar montanhas, se não tivesse amor, nada seria...(2)”

A leitura prosseguiu até o final do capítulo, entremeada por alguns tropeços rítmicos, mas firme, resoluta. Jerome se estarreceu ao ver aquilo: desde quando campônios e populares dispunham de letramento para reconhecer palavras, ainda mais para ler as Escrituras numa celebração religiosa? Embora não cultivasse qualquer fervor religioso, sabia que a leitura e interpretação da bíblia estavam reservadas apenas aos padres e demais ministros da Santa Sé. A assistência ter livre acesso às Escrituras era algo que jamais poderia conceber ainda mais em se tratando de uma congregação daquele porte, formada pela camada mais baixa e miserável da sociedade. Começou a ver algum fundamento nas suspeitas de Guise. Se a plebe ali presente era capaz de ler – ainda que fossem apenas alguns indivíduos – é porque o tal conde os estava alfabetizando e o fito de tal empresa não poderia ser outro além de uma sublevação. Um povo capaz de ler é um povo capaz de pensar por si só e nada pode se configurar em maior ameaça para um Estado alicerçado no medo e na opressão.

Mas eram apenas as primeiras peripécias de uma noite que iria afetar drasticamente o capitão de Nantes. Ainda havia mais a caminho.

Finda a leitura da epístola de Paulo, André se ergueu da cadeira em que tomara assento para dar início à pregação. Com um sorriso estampado no rosto, dirigiu-se à assembleia de braços abertos como se quisesse estreitar a todos em afetuoso amplexo. Agradeceu efusivamente à moçoila que se dispusera à leitura, passando em seguida ao Sermão da Palavra:

- Irmãos e irmãs – prosseguiu o conde com uma entonação onde se fundiam gravidade e ternura –, devo dizer que poucas passagens do Evangelho me enternecem tanto quanto esta epístola endereçada à Igreja de Corinto. Aqui o Apóstolo dos Gentios foi de uma felicidade ímpar ao falar do amor. E o fez de uma forma que talvez nenhum poeta seja capaz de sequer aproximar-se... Sim, o amor! Se há algo que diz com propriedade daquilo que é Divino, talvez da essência do próprio Deus, esse algo é o amor. Não me refiro aqui ao amor que une os casais enamorados, nem ao amor que congrega homens e mulheres para formar uma família, ainda que eles sejam expressão dessa mesma Essência Celestial. Conquanto este sentimento se mostre tão poderoso ao ponto de fazer com que os membros de uma família abandonem o solar paterno para formar um novo núcleo doméstico, superando dificuldades e tribulações as mais variadas, ouso dizer que isto é apenas uma faceta quase que insignificante do amor. É apenas aquilo que vemos, mas não a sua totalidade. A real magnificência desse sentimento divino foi experimentada por poucos homens e mulheres, mas foi vivida por estes com tamanha intensidade que o mundo nunca mais foi o mesmo, desde que alguns mortais se dispuseram a vivenciar essa possibilidade divina a que chamamos de amor e que o Apóstolo Paulo descreve de forma tão brilhante em sua missiva. Falo do amor enquanto possibilidade de experimentar a própria divindade em nós mesmos, e de que nos falam tanto o Antigo quanto o Novo Testamento! Essa divindade capaz de afrontar os maiores horrores e perseguições, sem que as ameaças do mundo consigam sequer arranhar o aço inquebrável do espírito, concebido pelo Criador nas mesmas forjas em que Ele engendrou o sol e as estrelas que cintilam no firmamento. Sim, meus irmãos. Refiro-me ao amor como centelha divina, centelha esta que pode conjurar um incêndio tão flamejante e incontrolável quanto aquele deflagrado pelo Salvador ao abraçar a cruz do seu martírio. Um incêndio que pulverizou a soberba e a arrogância dos conquistadores romanos, fazendo com que mesmo as Águias Imperiais dobrassem a cerviz ao Divino Cordeiro, reconhecendo nele a Única e Suprema Majestade deste mundo!

A congregação ouvia absorta a exortação do pastor de Flandres. Nem o mais leve ruído ousava turbar a solenidade daquele momento.

- Vivemos tempos difíceis e sombrios na atualidade, quando monarcas e pontífices que afirmam seguir e representar a autoridade de Cristo na Terra, fogem à sagrada responsabilidade de zelar pelo destino de milhões de vidas que lhes foram confiadas pela Divina Providência. À semelhança dos antigos déspotas romanos, os dignitários hodiernos se arrogam status de divindade, esquecendo-se da condição mortal que é apanágio de todas as formas viventes no planeta. Tanto quanto o menor de vós, também eles haverão de prestar contas estritas ao Tribunal Divino pela desídia com que se portaram na qualidade de administradores infiéis de um patrimônio que lhes foi outorgado com um único objetivo: disseminar o bem e o progresso! Não obstante, àqueles que ouviram o chamado do Mestre ecoar no âmago de seus corações, cabe tão somente atender ao divino desiderato e cooperar no sentido de estabelecer na Terra este reino de bem-aventurança prometido pelo Messias para quem se decidisse a seguir Seus passos.

Villeneuve ouvia cada palavra da prédica fazendo um esforço sobre-humano para conservar-se imparcial, mas sentia dificuldades cada vez maiores em manter o foco. Jamais antes tivera a oportunidade de ouvir um sermão tão arrebatador quanto aquele. Dir-se-ia que a verve do pregador huguenote tinha algo de fantástico, pois ele parecia sublinhar cada palavra que proferia com um fragmento da própria alma, ao mesmo tempo em que tocava o mais recôndito do ser de quem se dispunha a escutá-lo. Aquela menção a “um reino de bem-aventurança”, entretanto, soou como um chamado sutil à subversão, utilizando o Evangelho como alicerce para uma sedição, o que era mais do que condenável.

André continuou:

- A Irmã Cossette, que realizou a leitura do Evangelho de hoje, é um dos melhores exemplos do poder transformador da Palavra do Senhor em nossas vidas. Seu empenho e dedicação no sentido de se alfabetizar, a despeito das muitas adversidades com que se vê a braços, recordam-me o episódio da mulher do fluxo de sangue que, rompendo a multidão, obteve a cura apenas por tocar na orla do manto do Salvador. A fim de se alcançar a transformação concedida pelo Alto, faz-se mister que despendamos a nossa quota de esforço. Crede-me, irmãos: estar convosco a cada semana e poder colocar a serviço das vossas necessidades o pecúlio de que disponho é para mim a maior das riquezas. Regozija-se o meu coração e o de cada um de nós – designou com um gesto os demais fidalgos que, apesar de envergando trajes sóbrios, denunciavam a sua posição aristocrática pelo porte e pela forma como se conduziam – ao sabermo-nos úteis a cada um de vós. E é neste contato convosco, no partilhar a riqueza que nos foi outorgada para mitigar a dor alheia, bem como no profícuo aprendizado que cada um de vós trazeis a partir da própria experiência, que nos é dado sentir e compreender a grandeza sublime deste amor de que nos fala o grande amigo da gentilidade. Sim, pois o amor há de ser transformador e nunca, jamais, um sentimento frígido, extático. O amor é dinâmico, revolucionário na acepção mais arrebatadora que o termo exprime, ainda que não se pareça como tal. É o laço sagrado capaz de conectar almas para além das diferenças de classe, raça, credo ou sexo, levando-as a perceber que a vida só ganha sentido e cor, quando nos reconhecemos limitados, porém, capazes de fazer destas mesmas limitações a razão para compartilhar o melhor de nós com o nosso semelhante.

A exortação ainda prosseguiu por alguns minutos, sendo intercalada por alguns hinos religiosos que Villeneuve já tivera oportunidade de ouvir entoados pelas facções huguenotes de Nantes, o que exacerbou ainda mais a sua inquietação. Ao final, uma oração foi proferida pelo celebrante, sendo seguida pelo “Pai Nosso”, que todos os membros da congregação entoaram em uníssono.

Regressando à estalagem em que ficaria hospedado, Jerome experimentou sérias dificuldades para conciliar o sono. As palavras do pregador huguenote reverberavam em sua mente e ele não saberia dizer se o impacto era devido às mensagens subliminares que julgara haver detectado, ou se a interpretação do Evangelho o havia realmente seduzido como àquela chusma de desgraçados que se congregava nas catacumbas, à semelhança dos cristãos de outrora.

(1) Alusão a Lutero

(2) 1ª Epístola de Paulo aos Coríntios, Capítulo XIII

Alan Thanatos
Enviado por Alan Thanatos em 30/11/2016
Reeditado em 30/11/2016
Código do texto: T5839528
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