Fernanda
Fernanda
Um bom poeta pode fazer uma alma despedaçada voar.
Charles Bukowski
Um dia estava andando à beira de uma praia. Era um dia lindo,deveras,o sol irradiava toda sua pompa sobre nós,velhos mortais,enquanto nós o judiávamos,reclamando do calor que a cidade no verão acentuava. Mas aquela não era qualquer dia de verão. Era um dia à beira de uma praia. Um dia de maresias frescas,areias quentes e cervejas geladas. Era um dia que o prosaico e o extraordinário se confudem em um guarda-sol,olhando os ambulantes passando gritando "olha o biscoito,biscoito globo...". O sol outorgou seu portento e,com exímio e maestria,fez daquele dia comum uma esplêndida ocasião. E,ao lado das músicas boêmias ao fundo,que se confundia com o som das ondas quebrando na areia,passa uma jovem,ao torno dos dezoito anos. Uma jovem que,assim como sol,irradiava sua vocação inata ao brilhantismo,irradiando sua graciosidade nas areias daquela praia. Ah,que moça. Que doce gosto do seu olhar,que mesclava ousadia e timidez,que induzia seus admiradores à loucura e à confusão. Não digo que por intenção,mas sim por natureza. Ela,que exaltava a mais refinada repulsa ao refino e à sofisticação por meio de um inefável sorriso espontâneo,derramava sobre a água salgada a doçura do seu olhar. A alma que iluminava os nossos abismos escuros de miséria. E tudo isso com um só andar. Bastou-se. Não foi preciso mais nada. Era,de fato,apaixonante. Mais ainda quando as ondas do mar azul quebraram no seu corpo,espalhando sua forma rija e graciosa naquelas águas que se misturavam com o céu azul,sem nuvens,somente aquela tela clara predisposta a talhar nas suas entranhas histórias de amor. E que sortudo eu seria se pudesse tê-la como minha esposa eterna. Que sorte. E ela,arrisco,que talvez adoraria alguém para declamar-lhe poemas,escrever-lhe longas prosas,dedicar-lhe vários contos,alguém para lhe dar filhos como alguém dá uma poesia. Ah,eu não seria um prosador como Machado ou um poeta com espírito inebriante como Leminski. Talvez seria mais um poeta João Alguma Coisa,que venderia seus livros por anos na avenida Paulista,até conseguir pagar o aluguel de casa. Eu estaria triste,mas aquela casa seria a nossa casa. A casa dos nossos filhos. A casa das nossas alegrias,dos abraços,de vinhos e cervejas baratas. Alphaville? Experimente morro dos Prazeres. Que se foda. Eu estaria radiante. Vi toda nossa vida juntos,de mãos dadas,caminhando na orla,vendo o vento fresco recompor e fortalecer o mais grácil da nossa alma. Acordaria cedo. Faria café,bem forte. Talvez um pão com queijo,ou manteiga. Talvez teríamos um quintal. Bem verde,bem vivo. Plantaria as flores mais lindas,para mostrar-lhas crescendo e seus estágios de desenvoltura. Colheria as rosas mais vermelhas,quem sabe algumas brancas,e lhas daria quando percebesse que o sorriso lhe era ausente no momento. Quem sabe eu seria um bom pai,veria nossos filhos correndo,de um lado para o outro,se empurrando e se amando. Quem sabe adotaríamos um gato melancólico,um cachorrinho lépido e agitado,e daríamos as mãos para ver o pôr do sol encima da nossa laje. E se eu regasse todo dia a flor do nosso amor? E seu lesse a ela meus contos preferidos?
Parei um pouco o devaneio. Vi que todos os desejos estavam a poucos metros de mim,debruçando-se nas ondas. Tudo que eu precisava era falar com ela. Talvez um "oi,tudo bem?" para começar. Não,como sou idiota. Uma mulher tão magnífica merece algo magnífico. E se eu chegar com palavras bonitas,lautas e pomposas? Acharia-me muito prepotente? Claro que sim. Não posso ir com essa pedantice. Como ainda pensei nisso? Ela gosta da boemia,talvez. Como vou iniciar uma conversa? Por que ela faz isso? Poderia ser mais fácil. E seu chegar e falar tudo que imaginei? Que eu farei todos os dias com ela serem especiais? E se eu for direto e a pedir em casamento? Não ligo. Vou como vão os bons prosadores e poetas,improvisando. Cansei de fazer planos napoleônicos para invadir Moscou,vou lá neste exato momento. Até que,quando chego perto,vejo algo brilhando. Dessa vez não era só o sorriso. Aquele vidro refinado no qual expusera nossa pequena história foi quebrado. Era um anel. Um anel. Talvez a bela moça já havia sido desposada. Não sei o que está acontecendo. Naquele momento,abriu-se um buraco na praia,eu cai nas profundezas,no mais âmago do meu ser,ficando absorto e afogado por uma onda de desprezo e uma literal de água e,o relevo se modificou,as pessoas sumiram,cadê ela? Cadê a moça bonita? Cadê nossa casa? Um tubarão branco e,as flores e as noites e luas e os poemas rasgados e os cigarros queimados,o império,a república,a felicidade...
Acordei espantado. Toda a digressão supracitada fora apenas um sonho. Que susto. Achei que tinha morrido. Mas como pude criar,ao sabor dos meus recônditos desejos,uma mulher como aquela? Como pude criar uma fantasia tão real e bela como aquela? Como pude me entregar a um sonho dentro de um sonho? Fiquei atônito,sem resposta,sem esclarecimentos. Fiquei confuso. Não sabia o que tinha acontecido. Estava ainda tão envolvido no sonho que nem onde estava sabia. Nem reconheci o ambiente direito. Estava em uma cama pequena,com alguém ao meu lado,que me chutou a noite toda,de fato. Levanto sutilmente a cabeça,observo uma garrafa de vinho de dois litros vazia sobre a cama,junto a duas caixas de pizza vazias. Olho para o lado e tenho uma surpresa que me debuxou no rosto um terno sorriso. Era ela. A moça. Ela. A mais linda que já tinha visto. Eu fui aos poucos retomando a consciência e me localizando no recinto. Já me lembrava de tudo,dos joguinhos,da dissimulação recíproca,do dia 20 de agosto. Lembrei-me de que ela era a maior paixão que já tive,poesia expressa naquele olhar,meu grande amor. Eu sabia que havia vencido. Sabia que a moça da praia era minha moça. Sabia que ela estaria comigo para tudo. Eu me agarrei a ela,com força. Dei-lhe beijos,abraços,carinhos... sabia que repetiria aquela cena até os fins dos meus dias. E eu não podia estar mais feliz. Eu a cutuquei,cantei "Exagerado",do Cazuza,em seus ouvidos:
—Amor da minha vida,daqui até a eternidade...
Ela era fã das mais clássicas músicas do rock nacional.
Ela se esticou e ,simultaneamente,soltou um sorriso e um "bom dia meu amor."
—Fernanda,eu te amo. Você merece todo amor do mundo. Você é a mulher mais linda que eu já conheci,eu te amo loucamente. Sou perdidamente apaixonada por você.
Eu não sabia o que eu tinha de tão especial por ela estar comigo. Eu não fazia ideia. Mas Amor é assim mesmo. Sem nenhuma razão,a não ser a de existir,conclui. Trocamos algumas palavras de amor. Ela sorriu e,consequentemente,eu sorri. Era ela. A mulher dos meus sonhos. Ela levantou e fez o café. E como ela era linda. Como aquele quebradinho no dente dela era o mais lindo,junto àquelas bochechas robustas,àquele olho maior que o outro...como aquela capacidade inefável de ver perfeição no imperfeito,dom que é concedido a um grupo seleto de pessoas,àquelas capazes de amar. O amor é o ânimo dos povos. É a riqueza das nações. É o combustível ao meu espírito. Talvez nunca descubra a razão do amor. Talvez nunca declame as poesias que disse que declamaria,ou talvez não teremos aquele quintal verde e vivo. Talvez nossos sonhos se percam com o tempo,que é mordaz e indiferente aos desejos. Contudo,se o dia nascer amanhã,se o sol se predispôr a nos iluminar,mesmo que recatado,entre as nuvens,minha certeza é que levantarei com o mais terno e doce sorriso e direi àquela moça da praia:
—Bom dia,amor da minha vida.
Fernanda,que não era poeta propriamente dita mas sim a própria poesia,fez de mim,uma alma perdida e despadaçada,um aviador,que encontraria naquele abraço apertado um conserto a todos os meus pedaços quebrados e um assento para viajar aos mais distantes universos.
Fernanda volta da cozinha com o café. Enquanto isso,do quarto ao lado,ouvia-se choro,salteadamente. E lá estava o outro amor da minha vida,tributo do nosso amor e redenção das nossas almas.
—Eu te amo,Mallu—disse Fernanda,com cara de sono,mas com o mais absoluto prazer.
Era nossa pequena filha.
Eu nunca fui tão feliz—conclui.
Rimos muito sobre os nossos dias 20,comemos bolo de cenoura e estranhamos que nenhuma parte tinha sido misteriosamente comida. Fomos ao parque e comemos pastel.
De queijo,da promoção,com direito a meio litro de caldo de cana.
Doze reais.
Ela pagou.
Obrigado,Fernanda.
J. Izidoro