O desejo do pai e o desatino do filho

Seu Franciné era um austero e pequeno comerciante que vendia cereais na pedra do mercado. Homem respeitador das leis, bem-humorado e conversador, era também grande religioso e devoto de Nossa Senhora do Rosário, além de frequentador da confraria dos Vicentinos. Já estava bem idoso quando sua mulher pariu o menino caçula, que foi batizado com o nome de João José.

Morávamos na mesma rua, conheci todos os filhos e filhas do feirante. Naquele tempo as famílias eram grandes, éramos muitos, tanto lá quanto cá. Enquanto éramos crianças, íamos acompanhando os acontecimentos do pequeno lugar e os de fora: eleições, copa do mundo, festejos de padroeiro, invernos com banhos de chuva nas bicas da fábrica de tecido, verões com banhos nas salobras águas do velho Jaguaribe, e na semana da pátria participávamos dos desfiles cívicos dos colégios.

Na minha rua, era comum nos finais de tarde as pessoas sentarem-se nas calçadas. Lembro que seu Franciné colocava o menino João em seu colo e cantava cantigas para enaltecer seu último rebento. Ouvíamos claramente ele entoar frases: “Ele é o maior? É sim senhor! Queremos o João José prá ser o governador”.

A cantiga inventada por ele para endeusar o seu filho era motivo de riso bom para nós meninos e até os adultos que o ouviam cantar. Mas fomos crescendo e cada um tomou seu rumo. Eu, ainda adolescente, quando menos esperava, me vi abandonando meu lugarejo. Era a batalha da vida começando a me fazer suar mais ainda, era a necessidade agarrando a primeira oportunidade, não havia tempo a perder. Esperar outra chance era contar com a dúvida, e a dúvida como se sabe é um dos grandes dos martírios da alma.

Nas férias eu sempre vinha visitar meus parentes e rever os amigos da minha rua. Foi assim por alguns anos. O menino João José ficava adolescente e nós não esquecíamos a frase do pai dele: “queremos João José para ser governador”. Semelhantemente a mim, o agora adolescente João José também saiu da cidade à procura de melhores condições de trabalho e nisso foi tão feliz quanto eu. Nas férias, algumas vezes nos encontramos na nossa cidade e eu até brincava com ele, chamando-o de governador. Ríamos, a nossa amizade era franca.

Porém o velho destino tem suas curvas e ninguém está livre das surpresas que ele nos reserva. Está provado que nem todo cidadão do interior se adapta bem às constantes pressões do dia a dia junto à correria das grandes cidades. Aos poucos e inevitavelmente, um nervosismo foi tomando conta do meu conterrâneo João. Inexoravelmente a debilidade o atingiu em cheio. Depois de muitos exames médicos o rapaz obteve por lei e direito, a aposentadoria. Segundo os boletins médicos estava inapto para a atividade que exercia. Ia ter o seu salário de aposentado e era aconselhável procurar um calmo lugar para viver.

Retornou ao lar. Era um vencedor, não perecera na batalha. A tristeza do seu pai foi grande, porém, não era um revoltado com a má sorte do filho, era um homem resignado e de fé, que praticava o jejum e a oração. Na modéstia do mesmo lar, abraçava o filho fragilizado, como na época em que este era criança e ele lhe ninava com aquela canção que não se profetizou. Agradecia a Deus e à senhora do Rosário pelo retorno do seu rapaz, e abnegado aceitava o inesperado destino. Lembrava-se de que São Vicente de Paulo, era o protetor dos enfermos e de todos quanto eram desvalidos.

A Maria Dolores, uma das irmãs do João era a responsável pela medicação deste. Marcava os horários numa tabela e ministrava com cuidado os muitos comprimidos de tarja preta. Não podia esquecer da medicação, para manter as crises nervosas do irmão sob controle. Passaram-se dias e meses. O rapaz começou a pensar na continuação da sua vida, precisava viver, era solteiro, havia viajado e trabalhado fora, era informado, a aposentadoria o amparava e não tinha compromissos. Estava agora fadado a conviver com uma enfermidade, mas isso não era o fim, podia arranjar uma namorada, casar-se, ter filhos...

Fez algumas economias, comprou um carro popular, era habilitado e aos poucos fazia seus passeios. Com a irmã, visitava amigos, ia à praia, ao centro da cidade, até que encontrou uma moça e eles começaram a se conhecer. O namoro transcorria normalmente, a moça passava muito tempo na casa do João e a vida dele adquiriu nova cor. Ela era do tipo fogosa, rechonchuda, de estatura menor que a dele e era bem simpática. Muita gente observadora da vida alheia estranhou a princípio, a figura dos dois, mas depois, aquilo que era novidade passou a ser mera rotina. Será que iriam casar em breve? Não tão breve! Contudo, os dois já começavam alguns preparativos e marcaram a data do casamento para maio do ano seguinte.

Assim, se passaram seis meses, ela ficava a maior parte do dia na casa dele, levava-lhe os remédios no quarto, deitava-se ao lado dele na rede... até que certa tarde de inverno, carícia vai e carícia vem ela se entregou a ele. Ele tentou recebê-la com a dignidade de um macho viril, porém, aquele contato não funcionou como eles previam. Veio a decepção para ambos, porém com mais intensidade para ele.

A dúvida ficou no ar. Talvez aquela impotência fosse produto de uma primeira vez, quem sabe na próxima tudo funcionasse bem. Estavam de casamento marcado, os tempos não eram mais como os dos avós deles, era necessário se conhecerem melhor no que diz respeito aos principais assuntos de casal. Ele, porém, começou a se intrigar com a própria virilidade muito mais do que com a doença nervosa que lhe atormentava. A bonança dos ventos deu lugar a um início de tempestade na vida do João. Suas ansiedades redobraram. Com tristeza constatou que, mesmo sendo muito atraído pela namorada, não conseguia seus objetivos na cama. Botou na cabeça que era um infeliz por ser como era. Em seu desespero chegou a dizer de si para si que não passava de um morto vivo. A namorada se esforçava por confessar a ele que não via grande problema naquilo, que não estava frustrada nem insatisfeita, que compreendia suas limitações momentâneas, que aquilo podia ser tratado e que iriam a um médico. Depois de muito argumento e insistência dela, o João aceitou consultar um médico. A tentativa foi boa, mas as observações do médico infelizmente não deram muitas esperanças ao rapaz.

E o pior aconteceu mais rápido do que se pensava. A Maria Dolores chamou com urgência a ambulância para levá-lo a um hospital da capital. Naquela semana depois da consulta, o João não saiu no carro, brigou e acabou o noivado com a moça, teve crise nervosa compulsiva e como um tresloucado quebrou objetos dentro de casa. Seu Franciné não sabia mais o que fazer, a não ser com palavras pedir calma e com orações pedir as graças do céu e de seus santos para aliviar as dores e transtornos do seu filho.

João faleceu na ambulância a caminho da capital, sua irmã e o motorista assistiram aos seus últimos instantes. Ele vomitava sangue, houve uma hemorragia interna, asfixia.... Se foi tão breve, tive dó. Estive no seu funeral, fiquei consternado. Foi mais comovente o velório quando ouvi as palavras de sua ex-namorada. Ela, entre lágrimas disse ao pé do caixão, que não precisava ele ter feito aquilo que fizera com a própria vida. Deus sabia o quanto ela lhe tinha amor, não era interesse não. Ela sabia que aquele namoro era o culpado pelo desespero dele, se tivessem se casado, mais cedo ou mais tarde aquilo talvez viesse a acontecer, mas que ele a compreendesse e a perdoasse, que ela não tinha culpam pela morte dele, só queria fazê-lo realizado e feliz, se soubesse que ele ia se desesperar ao ponto de beber uma superdose dos remédios, teria ficado como um cão de guarda na casa dele, mesmo depois dele ter acabado o relacionamento com ela. Que ele a perdoasse pela morte dele, que ela sem maldade nenhuma, tinha o céu como testemunha, causara.