O antes e o depois da separação do seu Assis

É um tipo mediano, fala rápido com voz grave e rouquenha, já passa dos sessenta é aposentado, mas ainda presta serviço como vigia da prefeitura. Gosta de uma boa conversa e aprendeu a ser bom ouvinte, conta com facilidade o que sabe e não pede segredo de nada. Chama-se Assis, é bem conhecido na cidade não só por ser vigia de prédios públicos, mas também por ter sido garçom quando era mais moço, no tempo em que às festas da cidade aconteciam em clubes. Conta histórias do passado, de pessoas importantes hoje, que eram simples jovens naqueles tempos, fala de brigas por causa de bebedeiras nas festas, sabe de mortes acontecidas depois dos bailes, vinganças, de moças que fugiram com os namorados por não terem permissão da família para casarem com eles e por aí vai.

Certa noite ainda cedo, o encontrei em frente ao posto onde ele vigia, de lá ouvíamos o falar de um pastor da igreja de crente que fica ao lado. Conversa vai, conversa vem, lhe perguntei o que achava daquela falação do religioso. Disse que não tinha nada contra, pois até um de seus filhos do primeiro casamento era um fervoroso evangélico. Perguntei se ele era viúvo, e me disse que não, era divorciado, e sem que eu perguntasse mais nada, foi relatando que viveu com a primeira mulher mais de doze anos, com ela tivera quatro filhos e naquele tempo ele era apenas garçom. Chegava em casa quase de manhã nas noites de festa, precisava descansar durante o dia, pois durante a semana à noite trabalhava na churrascaria da BR. No começo a mulher até era prestativa, mas as coisas foram mudando.

A casinha onde moravam no tabuleiro da vaquejada era um ambiente quente e barulhento pelo som alto que os vizinhos escutavam. Muita coisa se suporta melhor quando se é mais novo, porém o tempo não para. Depois de quatro anos já tinham dois filhos e um terceiro a caminho, a mulher não era mais tão zelosa, nem com os filhos, nem com a casa, nem com ele que era quem ganhava o pão. Foi se desgostando. A mulher fumava e as vezes bebia, eles não frequentavam igreja alguma, ela já não ia com ele ao clube, tinha que ficar com os filhos, mas saía com algumas amigas e ia ao terreiro de macumba a noite depois que as crianças dormiam. Eles não tinham televisão em casa ainda. Depois que ele soube do novo hábito da mulher, discutiram, ele a proibiu, disse que não aceitava que ela frequentasse aquele lugar de azar. E ela disse que ele olhasse o lado dela também, que não tinha diversão nenhuma, que não saía, ele ia ao clube a churrascaria e ela tinha que ficar em casa cuidando dos meninos todo santo dia, não via mal nenhum em sair um pouco com as amigas, o terreiro de umbanda era ali na mesma rua. Prestasse atenção e visse que ele estava sendo injusto com ela que precisava se divertir também. O Assis disse que não gostou da conversa, não estava saindo para ir se divertir em clube e em churrascaria não, se saía era para trabalhar e sustentar a ela e os meninos, quem dera pudesse ficar em casa à noite e dormir o que não dormia durante o dia por causa do barulho e do calor.

Apesar da proibição dele, a mulher continuou a desobedecer, e isso só foi contrariando-o mais e mais. Aquele não era o primeiro desentendimento deles, mas ele, apaziguador, sempre que podia trazia a mulher e os filhos para jantar na churrascaria nos dias de folga. A mulher, contudo, não recusava o convite das amigas de ir ao terreiro pelo menos duas vezes na semana. De igreja de padre ou de pastor não queria nem saber. Nasceu o quarto filho, o último. O relacionamento deles foi se arrastando por mais de dez anos a partir daí, até que de crise em crise, de raiva em raiva e de desentendimento em desentendimento, o convívio dos dois ficou por um fio. Só faltava a gota d`agua fatal para que o casamento fosse pro espaço.

Foi quando numa tarde de sábado, ele falou para mulher botar brasas no ferro e engomar o seu jaleco de garçom, que ele ia usar a noite. Na maior tranquilidade e descaradamente disse que não ia engomar roupa nem para ela, quanto mais para ele. Assis teve vontade de dar uma surra na malcriada, mas se conteve, guardou a raiva. Para não ficar calado disse que ela se preparasse, que ele ia largá-la só. Ela não demonstrou preocupação com o dito dele, já havia ouvido aquela advertência outras vezes. Assim, de pior a pior a nefasta rotina continuou.

Pouco tempo depois, numa daquelas noites de festas, o Assis passou a notar os olhares de uma dona. Esta, estava com uma amiga, parecia disponível e talvez até fosse bem compatível com ele. Aproximou-se, garçom pode conversar com qualquer um. A dita cuja estava só e ele podia muito bem dizer que não tinha mais uma companheira. O namoro começou e já foi em termos de proposta de nova vida para os dois, já que ela também vinha de um convívio frustrado.

Depois de duas semanas, já estava morando com a outra e foi aí que deu o ultimato em casa. Houve discussão, lorota, a mulher disse que ele não podia sair assim, quem era que ia sustentar ela e os filhos dele? Ele disse que de fome eles não morreriam, podia ficar tranquila que ele trabalhava, bancaria o alimento, só não queria mais era conviver com ela. Que ela procurasse outro, ou buscasse seus direitos na justiça se quisesse. Ele era assim, podiam chamá-lo de bruto, mas tinha consciência de que não era o ruim da história.

Uma vez por semana vinha ver os quatro meninos, trazia uma certa quantia em dinheiro para a compra da comida e ouvia reclamações da mulher, que sob a fumaça do cigarro gritava que ele ia ver o que era “bom pra tosse”, que ia responder diante do juiz pelo que estava fazendo, ela já tinha botado advogado e que ele aguardasse o dia da audiência. Nessas discussões, ele dizia que tinha sido ela que tinha escolhido aquele viver, ele trabalhava como podia, mas era ela quem não o ajudava. Ela dizia que tinha parido os filhos dele sem reclamar, agora que estava ficando velha ele lhe dava um chute na bunda, safado, e arrumava outra mais nova. Se antes ele se zangava com as palavras dela, agora parecia nem ouvir seus despautérios. Até que antes do primeiro mês de separados, numa das visitas no fim de semana, ouviu do menino mais velho reclamação de que estavam passando fome. O homem se zangou, interrogou a mulher, ela disse que era mentira do descarado, que comprava a comida, mas eles é que só queriam comer bagana, e para reforçar sua retórica de arrogância, deu uns tapas no menino delator o que aumentou o barulho do barraco com um choro desabrido no meio do falatório exaltado.

Assis não gostou daquilo, contrariado procurou se informar do vendedor da bodega onde compravam. Veio a confirmação, ela estava comprando menos comida, mas tinha aumentado a compra de cigarro, cachaça e velas coloridas. Seu Assis tinha agora uma pista, devia consultar o macumbeiro dono do terreiro. Tudo confirmado. O pai de santo disse que não ia mentir, tinha muita consideração por ele, sabia que era gente boa, mas era verdade, que a sua ex-mulher havia frequentado o seu terreiro sim, vinha com as amigas e recentemente havia encomendando um trabalho contra ele, Assis. Não aceitou fazer e disse que não trabalhava naquela linha de trazer amor de volta. Mas ela disse ao macumbeiro que se ele não fazia, não tinha problema, ela ia procurar outro mais forte, um de candomblé legítimo que era famoso lá no outro lado da cidade. Pode ser que tenha ido, disso o macumbeiro não estava certo, mas sabia que desde aquele dia ela não havia mais frequentado ali.

Pois era, a mulher estava gastando o dinheiro da comida das crianças com porcaria de macumba para fazê-lo voltar para ela, que ilusão do diabo! Voltou a casa, advertiu a ela que não lhe daria mais dinheiro, e antes que ele terminasse de dizer que agora ele mesmo ia fazer as compras no mercadinho, ela foi respondendo que queria ver se ele era macho para dizer aquilo perante o juiz, e disse outras frases exaltadas, ele foi embora e a deixou falando só.

O oficial de justiça trouxe o comunicado, chegou o dia da audiência, Assis compareceu ao fórum. Ao chegar foi vendo a mulher envolta na fumaça de cigarro, andando nervosamente na calçada. Era esperar o momento de entrar e responder às interrogações do juiz, não tinha nada a temer, falaria abertamente como conversava com qualquer um. Faria as compras tinha as provas, uma cesta básica por mês e uma feira toda semana, trabalhava, não era doido nem desalmado para deixar os filhos passarem fome, mas se recusava a dar dinheiro a ex-mulher.

- E sabe proque incelência? Proque ela tava gastando o dinhêro cum porcaria de macumba, tinha as prova, pelas compras que ela fazia na budega e pelo que o pai de santo macumbeiro da rua tinha lhe dito.

E foi com aquela voz rouquenha e fala desabrida de emoção que o ex-garçon, Assis, hoje vigia dos prédios da prefeitura, obteve aprovação do seu argumento perante a autoridade judicial, contra o desejo de sua ex-mulher, fumante e macumbeira. Depois de me contar isso, lembrei que o fio de toda essa história nasceu da pergunta que fiz sobre a pregação do crente que continuava com as suas citações e aleluias no templo ao lado, e eu achei que era hora de me ir. Tenho certeza de que se eu fizesse outra pergunta, era capaz de ele querer me contar pormenorizado algum outro acontecido com ele e eu não estava mais disposto a ouvir.