Silêncios

Para minha querida amiga, Ana Thiesen.

Andei me perdendo entre algumas ruas e esquinas que aparecem na vida. Não acho que isso seja exclusividade minha. Na verdade tenho certeza que não é, por que ultimamente eu tenho visto uma multidão de pessoas perdidas se esbarrando por ai. No entanto eu só posso falar do meu caso.

Frequentemente eu me pegava parado e pensando no estado atual da minha vida, como se pensar e remoer sobre aquilo fosse mudar alguma coisa. Eu continuava com os mesmos hábitos de cinco anos atrás e seguia colhendo os mesmos resultados.

Não que eu vivesse mal, ou em constante sofrimento. Eu só achava que me faltava algo de muito importante e eu ainda não tinha me dado conta do que era. Essa sensação era um incômodo sempre presente.

Eu procurava essa tal coisa sem nome e sem forma em todos os lugares possíveis. Havia quase se tornado uma obsessão. Primeiro foi no trabalho, depois no álcool e então nas mulheres. Com o tempo passei a me entorpecer das duas últimas coisas e negligenciar a primeira. Não é preciso ser uma pessoa muito inteligente pra saber que só podia dar errado. Mas eu insistia.

Nos meus momentos sóbrios, escrevia. Meus textos iam se acumulando num canto do meu quarto e garrafas de cerveja iam tomando toda casa. Meu corpo e minha alma, repletos de cicatrizes de relacionamentos falhados e minha cama torta, sob o peso de minhas angústias e noites de insônia. Isso deve ter durado uns cinco anos, até eu me cansar. Retornei a sobriedade, arranjei um trabalho convencional e abracei a castidade.

A abstinência foi dura para mim, e só depois de um ano e dois meses que me permiti dividir a companhia com uma mulher.

Lara tinha 21 anos. Era uma artista polivalente. Pintava, cantava, dançava e escrevia. Não era fantástica em nenhuma das atividades, mas fazia todas com decência. Apesar da pouca idade ela me prendeu com seu diálogo extremamente sério e maduro. Ríspida e sem medida, ela me tocava com uma intensa verborragia que me lembrava de minha juventude e contrastava com o meu atual laconismo. Feminista, militante de esquerda quando podia, não tinha o costume de baixar a cabeça para imposições sociais. Em nossas discussões, raramente cedia. Simplesmente juntava suas coisas e saia. Assim nos poupava da guerra de trincheiras que os relacionamentos tendiam a se tornar.

Eu tinha o costume de contemplar minha apatia e falta de inspiração, sentado no taque de lavar roupas, acompanhado de um cigarro ou uma dose de uísque. Nesses momentos, quando Lara estava comigo, ela deixava que o meu silêncio me consumisse, mas ainda assim mantinha o olhar preocupado sob mim.

Certo dia me perguntou.

- Você anda fodendo outra mulher?

Retirado bruscamente da minha contemplação, voltei meu olhar para Lara, mas me mantive calado.

- Com quem você anda fodendo... me diga!

- Com ninguém, mulher – respondi espantado.

- Eu sei quando um homem está pra me trair. É como se eu pudesse sentir o cheiro.

- Pois então você está cheirando demais. Você sabe que isso não é da minha índole.

- Então me jure.

- Eu juro.

- Jure enquanto me fode. Só assim acredito.

Me levantei do tanque e puxei Lara pra dentro de casa.

Eu não gostava de resolver problemas na base do sexo. Mas eu sentia que faltava a Lara nesse quesito. Talvez eu transasse de menos e por isso ela achasse que eu não lhe tinha mais interesse.

Senti que precisava compensar.

Dei-lhe tudo de mim. Jurei minha fidelidade, que nunca precisei jurar a ninguém.

Ainda assim Lara chorou. Perdida em meus braços após o gozo. Culpada, entregue num vazio sem nome, sem tamanho, sem forma.

- Me perdoa?

- Perdoar de quê, Lara?

- Eu transei com outra pessoa.

- Tudo bem..

- Não quer saber com quem foi? Não tem ciúme?

- Tenho um pouco. Mas o que isso vai mudar? Já está feito.

- Mas por que você é assim? Todo homem tem ciúmes.

- Eu costumava ter tanto quanto qualquer outro. Mas aonde isso me levou? Não sou seu dono.

- Não é.

- Você sabe que nunca lhe cobrei exclusividade. Só sinceridade.

- Mas eu me sinto suja.

- Só se sente assim por que contrariou sua consciência.

- Você podia ser menos frio.

- Não peço que você seja algo que você não é...

Irritada, Lara se levantou, com o corpo completamente exposto e ergueu a mão, como se fosse me bater.

- Faz isso, Lara. Te torna a coisa contra qual você luta.

- ODEIO QUANDO VOCÊ SE COBRE DE RAZÃO!

- Eu me despi de todo resto pra estar com você, Lara. Não me peça pra me despir de minha razão também.

- PORRA! O QUE VOCÊ QUER DE MIM?

- Quero que você se acalme e me conte a história.

- Não quero mais... – disse entre lágrimas.

- Claro que quer. Foi por isso que você veio aqui hoje.

- Você tá certo.

- Tudo bem. Estou te ouvindo.

Abracei Lara e a pus deitada em meu colo. Corri minhas mãos por seus cabelos e sequei suas lágrimas.

Mais calma, Lara foi falando.

- Transei com uma colega da faculdade.

- Eu a conheço?

- Não, ela é do primeiro período.

- O que te atraiu nela?

- Acho que ela me lembra a você.

- Lembra em que exatamente?

- O silêncio dela é muito parecido com o seu.

- Acho que todos os silêncios são parecidos...

- Não seu idiota. Você entendeu o que eu quis dizer.

- Entendi, Lara. Estou brincando.

Lara se permitiu rir um pouco, mas logo voltou ao clima triste de antes.

- Me senti te traindo o tempo todo, mas algo me impediu de parar.

- Você não me traiu e não deve se sentir culpada. Não se preocupe mais com isso.

- Você é o cara mais estranho que eu já encontrei nessa vida.

- Talvez você ainda encontre uns outros doidos por ai.

- Não quero outro doido. Quero você.

- Então fica comigo.

- Vou ficar.

E ficamos. Até que Lara dormisse.

Me levantei e voltei ao tanque.

Acendi um cigarro e fumei até a metade.

Fiquei encarando o céu noturno, ofuscado pelas lâmpadas dos prédios e dos postes. As estrelas iam perdendo aquela luta injusta, no centro da cidade. Eu me sentia da mesma forma. Ainda assim mantínhamo-nos brilhando, mesmo que pouca gente visse.

Pensei então sobre a garota de Lara e sobre os nossos silêncios.

Achei engraçado.

Como aquilo poderia ser atrativo para alguém?

Sinceramente eu não sabia, e acho que nem Lara conseguiria me explicar.

Voltei para a cama e me deitei ao seu lado.

Deixei que o sono me carregasse para junto dela.

Com nossos corpos entrelaçados... Unidos no silêncio de nossas bocas e no ressoar de nossas respirações, no meu último instante de consciência antes do adormecimento tive a impressão de ter achado...

aquilo que eu tanto procurava.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 10/11/2016
Código do texto: T5819138
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