Paixão febril de uma semana
Aos quatorze anos de idade, espinhas se espalhavam pelo rosto e ele olhava as mocinhas do colégio como um gato maldoso olha um rato displicente. Não era para menos, adolescente saudável, andava a pé, nadava no rio, subia em cajueiro, da cacimba carregava no ombro as duas latas d´agua em galão, usando bem o machado, cortava no mato a lenha para o fogão de casa. Não era maior ainda, mas já era trabalhador como qualquer adulto, conhecia e praticava com destreza os trabalhos manuais, desde o amolar de facas ao uso da enxó. Ao chegar no povoado nos dias de festa, vezes em que vinha um padre celebrar a missa, fazer casamentos e batizar, ele se ajoelhava perto do altar e como um velho beato inclinava a cabeça e fazia a sua reza sentida de gratidão, arrependimento e súplica talvez, era um bom matuto com a pureza que um pode ter. Trazia bem acentuados os traços da mãe, de olhar firme e devocioneira.
A procura de melhoras, o rapazote veio com os pais morar na cidade, e ele agora via muita gente todo dia pelas ruas. No colégio onde estudava, a princípio, era meio encabulado na hora de falar alguma coisa, sua voz mudando de tom despertava riso de alguns gaiatos, mas ele não era tímido. Não tinha medo de perguntar o que não estava bem claro no seu entender, possuía um enigma no olhar, uma dureza quando queria, uma seriedade para afastar a pilhéria que só de olhar para os brincalhões na hora dos risos, os repreendia. Gostava particularmente do recreio, quando podia se sentar na mureta do corredor e ficar a admirar o passar das alunas mais taludas das classes mais adiantadas, eram franguinhas, mas já quase maduras, dizia de si para si.
Lá no interior, sempre teve admiração pelos bichos do mato, dos passarinhos aos preás, dos cachorros aos burregos, garrotes e cavalos. Ele os admirava e sentia a graça que o canto, a presença e o movimento imprimem a cada espécie. Admirava-se até com a beleza do nadar de carás e traíras do córrego. Com as estudantes de saias azuis era assim também, havia nelas sempre algo de belo nos gestos, no esvoaçar dos cabelos, no falar. Sabia admirar as fêmeas, sentia-se atraído por aquele espetáculo, logo era grande a variedade, mal comparando com a sua visão de interiorano, aquilo parecia um rebanho de graciosas e inofensivas ovelhas. Ao aproximar-se mais de um grupo delas, via em cada uma os seus encantos natos, umas mais brancas, outras amorenadas, a cor dos olhos variava, a doçura da voz também, algumas eram pernaltas, já outras mais baixinhas, mas havia algumas que mereciam menos e outras mais admiração embora em todas houvesse sempre alguma graça para ser apreciada.
Alguns anos se passaram, trabalhava num depósito de bebida e agora estudava no período noturno. Em seguida veio a oportunidade de ganhar mais um pouco na capital e lá se foi, o rapaz com dezenove anos. Com o segundo grau concluído, uma grande vontade de melhorar e uma sensibilidade poética mais apurada do que nunca, era hora de respirar outros ares e ver novas imagens. As mocinhas eram sua atração e atenção prediletas. Numa dessas idas e vindas de ônibus da capital, seu olhar tropeçou no olhar de uma jovem, e será que ambos estavam à procura do que cada um tinha em mente? É provável que sim. Conversa vai, conversa vem, viajaram lado a lado e aquilo deu namoro, ora. Moravam na capital, podiam se achar donos dos seus narizes. Daí foi beijo e riso embrulhado em confissões e entre emoção e palpitação de coração cada um contou um pouco de sua vida para o outro. A história e a vida dos dois tinha muita coisa em comum, eram do interior, trabalhavam na cidade grande e agora se enamoravam.
A paixão aumentou tanto naquela semana que se conheceram, que a ansiedade de se encontrarem no sábado à noite já não tinha tamanho. Escolheram a orla marítima, ele resolveu tomar uma cervejinha, ela quis sorvete, conversaram, trocaram carícias e beijos num namoro apaixonado, porque entre eles havia muita coisa coincidente, muito riso ao exporem suas ideias, muita atração e afinidade. Uma das provas é que ela confessou que um dia havia pensado em ser freira, ele disse que também um dia pensou em ser padre, riram, e quase que ao menos tempo um disse para o outro:
- Que desperdício! Em seguida os dois de olhos arregalados de um para o outro começaram a rir da coincidência de suas palavras. Era bonito vê-los, formavam um belo e saudável par, começavam a se conhecer e a fascinação recíproca só aumentava.
Naquele tempo, início de 1980, pouca gente fazia caminhadas pelo calçadão à noite, muitos casais ficavam na areia da beira-mar despreocupados, havia rodinhas com violão, gente fumando e bebendo como num piquenique noturno. Do outro lado da avenida se via os bares, os hotéis, o pouco movimento dos carros e tudo parecia muito tranquilo, mas até quando? Será que seria para sempre? É, nisso deu dez horas e eles estavam tão interessados um no outro que não se deram conta que muitos casais já haviam saído da areia, e o lugar bem que podia não estar mais tão seguro quanto antes. Estavam apaixonados, nada perceberam, até que veio o momento do grande susto. Estavam de frente para o mar e de costas para o calçadão, quando ouviram a voz interrogadora:
- Qual é a tua? Fica sentado cara, levanta os braços!
Ao se virarem, a surpresa nada agradável, viram três rapazotes escuros, um deles, o maior, no meio dos dois era o que dava as ordens, empunhava uma grande faca peixeira que reluzia com o movimento. Mandou um dos comparsas revistá-lo. Nisso, deu tempo do casal se levantar, ela se agarrou nele, trêmula, chorando, ele pediu calma ao assaltante, não havia como se afastar mais, um deles aproximou-se e foi lhe revistando os bolsos, tirou a carteira, abriu em busca de dinheiro, tirou o que tinha e a jogou no chão. Ele ficou a olhar para o que estava armado, seu olhar estava de frente para a luz da avenida, e naquele instante se lembrou dos tempos em que no colégio conseguia intimidar os gaiatos com os olhos severos que eram os de sua mãe. A namorada o abraçara lateralmente e com a cabeça baixa, trêmula chorava. O que havia pegado o dinheiro, puxou a bolsa dela assustando-a ainda mais. Enquanto isso ele dizia para ela se acalmar e que eles levassem o que quisessem, mas seu olhar estava sobre o armado e o outro ao seu lado que era o menor dos três. O ladrão despejou na areia todos os pertences da bolsa dela, e pegou tudo quanto quis. Como já haviam conseguido algum dinheiro, o da faca disse que era hora de se mandarem e saíram correndo em direção à praia, para escaparem das luzes do calçadão.
Ela ficou chorando e agarrada a ele, ainda quase sem acreditar que não havia acontecido nada de pior com eles. Ele a amparou tentou desculpar-se, ela disse que ele não tinha culpa, os dois eram culpados, por serem inexperientes e terem ficado ali até aquela hora. Se havia milagres, hoje ela acreditava que sim, graças a Deus. Era hora de irem embora, os ladrões haviam levado todo o dinheiro dos dois e os documentos dela, os dele ainda estavam na carteira, o que tinham a fazer agora era irem para o calçadão e andar até chegar em casa. Ela foi se acalmando e parou de chorar, andaram de braços dados um bom tempo, ele a amparando ainda. De repente, passou por eles um carro da polícia com a sirene ligada, o que serviu para aumentar outra vez o susto dela. Ele sabia que era preciso prestar queixas pelo roubo e pelo furto dos documentos, mas estava sereno, aquilo era o de menos e logo resolveriam. Se pudesse falar com algum policial durante o caminho, ia pedir informação sobre a delegacia mais próxima dali. Caminharam alguns quarteirões e lá estava um carro da polícia parado ao lado do calçadão, uma aglomeração adiante, alguma ocorrência por certo. Interessaram-se pelo acontecido, havia um corpo na areia, talvez fosse um dos ladrões do assalto. E era, dois haviam sido presos, mas o mais velho fora baleado e morrera. Era o trio que os havia assaltado e outras pessoas pela orla. A praia era calma e acontecido daquele tipo era raridade naquele tempo. O rapaz com a namorada se dirigiu a um dos policiais e contou do assalto. Que eles haviam levado além do dinheiro dos dois os documentos dela, e que se ele pudesse pelo menos recuperá-lo nem iriam prestar queixa. Mas o policial era daqueles casca grossa e disse que o caso não podia ser resolvido pela metade, tudo o que foi apreendido com os marginais devia ser levado para a delegacia e lá o delegado era quem tomaria as decisões cabíveis. Abria um precedente, se o casal quisesse ir até a delegacia prestar queixa, levaria os dois na viatura militar, porque ele era o mais antigo ali. Na delegacia houve a burocracia de praxe, e os documentos dela foram recuperados.
Um final quase feliz, se não fosse a mudança que se abateu sobre ela, quando no dia seguinte ele lhe telefonou e ela resolveu acabar com o namoro. Ele quis saber o porquê daquilo e ela lhe contou umas coisas que tinham se passado no instante do assalto e que somente ela e Deus sabiam. Começou por dizer que jamais vivera tão intensamente uma paixão como a que sentiu por ele durante a semana que se seguiu ao dia que se conheceram, mas tudo aquilo caiu por terra no momento do assalto. Ele talvez não a entendesse, mas ela havia lhe dito um pouco antes que, um dia na sua adolescência ela havia pensado em ser freira. Sim, é claro! Ele se lembrava de tudo, pois é, mas no momento do assalto enquanto ela estava agarrada a ele, fez uma promessa a santa Luzia de sua devoção que se não acontecesse nada de mau aos dois ela iria entrar para uma comunidade de celibatárias. Ele entendia a fé e a promessa dela, mas será que não era melhor pensar mais um pouco? Ao que ela disse que agora tinha mais uma prova de que o relacionamento deles não podia dar certo, já que ele nesse tempo de namoro começava a contrariar os princípios de devoção dela. Era melhor esquecer, fazer de conta que nem tinham se visto um dia, havia algo que parecia diabólico naquela louca atração, aquele assalto havia sido um aviso da providência divina para ela, e estava tudo acabado.
Diante do que ouviu, algo o abrasou e ele não se conteve, o jeitinho dela o fascinava sim, mas agora via o quanto era supersticiosa, estava arrasado, mas não podia deixar de ser irônico. Que ela interpretasse o acontecido como quisesse, ele mesmo não via nada daquilo que ela lhe dizia, talvez até achasse que na sua profecia ela o visse como um padre velho todo de preto também. Ela pedia para ele não se zangar e ele não a ouvia mais, antes de desligar o telefone ainda disse raivoso: Pois fique você por aí com o seu convento, com a sua comunidade, e seja muito feliz com esse seu desperdício voluntário!