A derrota de um amigo

Encontrei-me com o Carlinhos dentro do mercado velho de Aracati, e ele ao me avistar foi dizendo com tristeza no seu jeito calmo que "o Pinduca havia pegado o beco”... de imediato não me dei conta da mensagem, pensei que ele estivesse se referindo a alguma viagem que o mano dele tivesse feito, porém a constatação do dramático fato veio em seguida. É bom que eu conte a história desde o início:

Pinduca e eu frequentamos a mesma sala do segundo ano primário em 1972. A figura dele era raquítica, de mediana estatura, garoto de grande agilidade e inteligência. Era rápido no falar, desenhava em preto e branco, possuía um traço forte e grosseiro em suas cópias de figuras. Menino que não parava, vivia balançando às pernas num constante movimento quando sentado na carteira alta. Ficava rabiscando no papel, demonstrando agilidade, nervosismo. Era apressado no que fazia, gostava de falar sem medo, de jogar dama riscada nas calçadas com carvão. Meteu-se desde cedo a aprender uns acordes num cavaquinho de um tio, depois passou a aprender os tons do órgão de fole que havia na capela do colégio. As pessoas viam que era interessado em artes e estavam certas, era versátil, contudo a verdade é que ele não soube muito bem lidar com alguns embaraços da vida.

Nossa amizade começou por causa do desenho e da música, é que eu também me interessava por esses assuntos naquela idade. Mas vou me adiantar no tempo para dizer o que se passou quando ele já rapaz foi morar na capital. Foi ocupar uma vaga de tecladista numa pequena banda de forró. Daí foi que ele começou a ter contato com outras emoções que o fizeram perder o norte. O efeito da aguardente, ele já conhecia bem quando saiu daqui. Isso de tomar umas não parecia ser embaraço na vida profissional dele, pois demonstrava saber lidar com as poucas doses. O problema é que havia algo inebriador com o qual ele não estava acostumado, e este sim, foi quem lhe trouxe um grande prejuízo.

Meu amigo forrozeiro ainda não estivera em contato com os bichos de saia e nem sequer imaginava que fosse se tornar tão dependente daquilo, mas foi. Pinduca se não era do tipo raro que se vicia em sexo, era do tipo que passa a ser dependente da parceira com a qual se une. Teve algumas companheiras de cama, mulheres de programa que mesmo na condição de putas, mexiam com o seu coração musical, mas é isso mesmo, alguns sentimentais são assim. No fim das transas ocasionais, lá estava ele quebrantado, caído, embriagado de paixão.

Sei que o tempo foi passando e era de se esperar que ele parasse de se comportar como um menino velho, mas é lamentável que isso não se deu. A situação piorou quando depois de alguns anos de convívio com uma companheira, esta resolveu se separar dele. O vendaval foi muito grande, insustentável. Pinduca caiu num buraco fundo, envelheceu precocemente, passou a exagerar nas doses, e a dor de cotovelo só fez aumentar. Foi então que ele passou a tomar remédios junto com álcool e perdeu a vaga de músico na banda. Teve que retornar à nossa pequena cidade e fazia pena vê-lo, atingido pela depressão e o atordoamento. Em alguns momentos parecia de uma euforia fora do comum e noutros se apresentava taciturno, muito cabisbaixo e o quadro se agravou. Os familiares tentaram com palavras tirá-lo daquele estado mórbido, mas foi em vão. O homem perdeu o prazer pela arte, não pensou em procurar outra companheira, e se entregou ao desânimo. Passava as manhãs em casa, deitado na rede. Se algum amigo o chamava para um passeio, ele recusava, e assim chegava a tarde e vinha a noite e ele só definhava. Caso raro de se ver, mas que ninguém levou muito a sério, pois, de repente ele podia aparecer pelas ruas numa euforia anormal. Aquilo não era natural, só podia ser efeito químico, só que quase ninguém percebia, eu mesmo achava que ele logo, logo estaria curado e levando vida normal, afinal o tempo é um excelente remédio mesmo para grandes dores.

Naquele dia no mercado, o Carlinhos, de voz macia, disse-me que o seu mano havia pegado o beco e acrescentou que o corpo dele havia sido encontrado sem vida às margens do rio Jaguaribe. Não havia tristeza em seu olhar e sim uns olhos esbugalhados e um largo sorriso de satisfação na cara do pequeno e solitário artista.