O SOFRIMENTO É UMA ESCOLHA
​Por: Yoskhaz
Eu tinha chegado cedo à pequena e charmosa cidade situada no sopé da montanha que acolhe o mosteiro. Tudo parecia ainda adormecido em... suas ruas seculares de pedra, quando, para a minha surpresa, ou quase, vejo a antiga bicicleta de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e vinhos, encostada no poste em frente à sua oficina. O horário de funcionamento da sua loja era imprevisível e improvável. Nunca sabíamos quando a encontraríamos aberta. Fui recebido com alegria e um sorriso sincero. O meu amigo tinha acabado de passar o café e nos sentamos ao balcão com duas xícaras fumegantes para uma conversa vadia. O elegante artesão tinha no remendo do couro o seu ofício; a costura da vida pelas linhas da sua estranha filosofia, uma arte. Naquele dia não foi diferente, mais uma vez ele me desconcertou com o imponderável. O sapateiro comentou que uma de suas sobrinhas, filha de sua irmã, tinha acabado de sair da oficina. Ela estava muito abalada, pois o seu marido resolvera dissolver o casamento. Tinha vindo em busca de uma palavra de consolo, de uma ideia que servisse de lanterna para iluminar os seus passos. Perguntei se a moça tinha saído melhor depois da conversa com o tio. Então, Loureiro começou a me surpreender: “Acho que não. Na verdade, saiu daqui pior do que entrou. Mas com o tempo ela irá entender o que eu tentei explicar”. Eu quis saber o que ele havia dito para aliviar a aflição da moça que gerou o efeito contrário. O sapateiro respondeu com naturalidade: “Todo sofrimento é uma escolha”.
Pudera! Questionei se meu sábio amigo tinha enlouquecido. Isso era conselho que se ofereça? Quem de sã consciência escolheria pelo sofrimento? O artesão, sem se abalar, bebericou um gole de café e falou: “Todos aqueles que ainda não conseguem ver além das névoas da ilusão”.
Deu uma pequena pausa e fez um parêntesis: “Apenas quero fazer uma distinção. Não falo da dor física, aquela oriunda de uma perna quebrada, por exemplo. Me refiro ao sofrimento que surge das fraturas emocionais, aquelas que abalam e afogam a alma em mar de lágrimas desnecessárias”.
“Entenda que a finalidade do Caminho é aperfeiçoar o andarilho, ensiná-lo a ser feliz, em perfeito equilíbrio interior, em plena harmonia com o mundo, porém sem qualquer tipo de dependência externa. Solidário e independente ao mesmo tempo. Independente por não permitir que nada, nem ninguém, tenha o poder de abalar a sua paz. Enquanto a sua serenidade estiver sendo esbulhada significa que ele ainda não aprendeu as lições indispensáveis para seguir adiante. Por outro lado, solidário por entender a necessidade de sempre compartilhar o seu melhor sem esperar nada em troca. No dia seguinte, com a consciência em plena expansão, oferecerá um pouco mais e esperará ainda menos. Esta prática cura e transforma. Esta é a Lei do Amor, uma das que compõe o Código Não-Escrito. Os conflitos são as lições; as escolhas são as canetas com que escrevemos as provas”.
Falei que ele estava delirando. Exemplifiquei com as muitas situações que surgem na vida de todos, alheias a nossa vontade e que trazem sofrimento. A morte de um parente querido, doenças, desemprego, separações afetivas, entre outras variantes. Loureiro não se abalou: “As situações surgem na exata medida do indispensável aprendizado, cabível naquele momento, para a evolução pessoal. A questão não é o problema em si, mas como você reagirá diante dele. Isto pode encerrar um ciclo de lições ou fazer com que o repita. Para tanto, lhe resta tão somente as suas escolhas. Nada mais. Elas definem quem somos e as condições do próximo trecho do Caminho”.
Argumentei que a teoria é sempre perfeita. No entanto, a prática costuma ser bem complicada. O sapateiro balançou a cabeça e disse: “A dificuldade do problema na verdade diz muito sobre você mesmo. O primeiro passo é entender que cada qual enfrenta os exatos conflitos na medida das necessidades do seu aprendizado. A vida é perfeita nas suas imperfeições. Esse é o seu método de aprimoramento. Aprender que a maneira como reagimos aos problemas determina as condições da viagem, quem nos fará companhia, as pontes, os abismos e a paisagem que encontraremos na jornada é o segundo passo. Perceber que as escolhas são as únicas ferramentas disponíveis é fazer uso da sua magia pessoal. Magia é transformação. Este é o terceiro passo e traz o poder alquímico de transmutar chumbo em ouro, ou seja, de substituir a agonia pela paz”.
Achei um pouco confuso. Pedi para que ele fosse mais específico. Loureiro não se fez de rogado: “Não importa qual é o seu problema. Todos serão sempre sérios e enormes. No caso da minha sobrinha, por exemplo, ela teima em acreditar que apenas será feliz ao lado do ex-marido, em comportamento de completa dependência afetiva. Não percebe que este comportamento cria um peso no casamento que o torna insustentável. Ao entender que ninguém pode conceder a ninguém o poder sobre a sua felicidade, irá buscar a alegria no lugar certo: dentro de si. Tão somente. Então poderá compartilhar com o outro, na indispensável leveza do amor. Percebe que é uma escolha”?
“Com a morte não é diferente. Muitos sofrem pela ignorância de acreditar que ali se coloca um ponto final na história, quando na verdade é apenas uma mudança de capítulo. Outros, apesar de entenderem que a morte não é fim, insistem em confrontá-la como uma perda, em apego à presença física, em atitude repleta de egoísmo por não levar em conta o aprendizado pessoal e os interesses espirituais de quem partiu. A famosa teimosia em ser o centro do universo alheio ao invés de focar na beleza das próprias lições inevitavelmente trará sofrimento. Entende que a ótica com que escolhe encarar a situação determina suas dores ou delícias”?
Sustentei que muitas vezes sofremos por saudade. Loureiro abriu um largo sorrido e falou: “A saudade é algo maravilhoso, pois é o registro do amor naquele convívio. Apenas existe saudade onde há amor. O amor não precisa da presença física para existir, pois está muito além do que se pode tocar. Agradeça por sentir saudade, pois demonstra que a vida não foi em vão. O que não deixa saudades se perde no vazio da existência. Portanto, toda vez que a saudade lhe invadir, você deve sorrir e comemorar”. Franziu as sobrancelhas e concluiu: “Claro, você pode escolher sentir-se vítima das circunstâncias, um abandonado pela vida e se afogar na tristeza. A decisão é sua”.
Lembrei que muitas pessoas sofrem pelo fato de ficarem desempregadas e passarem sérias necessidades materiais. O bom artesão enfrentou a questão: “Claro que todos devem ter o necessário para uma vida digna. No entanto, embora o dinheiro possa proporcionar muitas coisas boas, quando se tem uma relação saudável com ele, nem de longe consegue ser fator determinante para a felicidade. Canso de ver milionários em crises de depressão em suas mansões, enquanto me deparo com operários em plena alegria nas favelas. Claro, que a recíproca também ocorre, o que comprova que tudo depende, mais uma vez das escolhas que o indivíduo faz”. Deu uma pequena pausa e acrescentou: “Quantas vezes já vivenciamos que a desgraça, na verdade, é uma graça disfarçada? Sempre ouvimos histórias de pessoas que ficaram melhores depois de uma situação adversa, pois, somente assim, despertaram dons e talentos adormecidos. Não tenha dúvida, isto apenas foi possível porque escolheram enfrentar o problema com sabedoria e coragem ao invés de se afogarem em mar de lamentações”.
Bebeu mais um gole de café e aprofundou a questão: “As doenças, muitas vezes terminais, podem ser arrasadoras ou transformadoras, a depender da maneira que o paciente vai encarar o momento. Certa vez, fui visitar um amigo no hospital em tratamento contra um câncer. Embora fosse uma ótima pessoa, tinha certa tendência ao pessimismo e ao mau-humor. Fui preparado para o pior e fui surpreendido. Embora estivesse debilitado em razão da quimioterapia, com olheiras fundas e sem cabelo, o encontrei no melhor momento da sua vida. Me recebeu com um sorriso sincero, seus olhos transbordavam serenidade e suas palavras semeavam alegria. Ele disse que na doença encontrara a farmácia da alma e, somente por estar vivendo aquela situação, entendera toda a beleza do Caminho. Estava muito agradecido por tudo que estava vivendo, pela oportunidade de um novo e transformador olhar”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “O mais interessante é que, dividindo o quarto com ele, havia um outro homem completamente arrasado, se sentindo o sujeito mais infeliz do mundo e se perguntando porque aquela tragédia acontecera com ele, embora o seu quadro clínico não fosse tão grave como do meu amigo. Percebe que cada qual fez a sua escolha? Como diz o mestre, ‘quando o seu olho é bom, todo o seu universo é luz’”.
“Costumamos perder tanto tempo para reclamar do sapato que nos foi oferecido, que julgamos inadequado para aquele tipo de estrada, que não reparamos em andarilhos que seguem sem uma das pernas, com leveza e desenvoltura maior do que a nossa. Fazem mais com, aparentemente, menos. Na verdade, o poder deles está nas escolhas. Em saber que tudo pode ser diferente e melhor, revelando o espelho de um ser já em harmonia consigo mesmo e, por consequência, com o universo. Esta força está adormecida dentro de cada um. Ao escolhermos o olhar que enxerga os defeitos do mundo perdemos a oportunidade de ver as suas maravilhas. Toda vez que permitimos o sofrimento significa que acabamos por negar uma chance para a alegria em razão de uma escolha equivocada. Lamentamos o leite derramado ao invés de abençoar a lição de manuseá-lo corretamente”.
“Nada atrapalha mais o andarilho do que os lamentos. Quando reclamamos, no fundo, tentamos justificar para nós mesmos a nossa pouca disposição em permitir uma escolha diferente, capaz de transformar a realidade. Esperar que o mundo se adeque às nossas necessidades e desejos é bem mais cômodo do que lutar pelos mais belos sonhos, certo? No entanto, não é assim que toca a grande orquestra da vida e acabamos envoltos em esfera de amargura por perdermos o baile. Em ciclo vicioso, continuamos a reclamar e a esquecer que tudo foi consequência das escolhas que fizemos ontem, repetimos hoje e projetamos para o dia de amanhã”.
“O ciclo se torna virtuoso a partir do momento em que aceitamos que a colheita sempre está de acordo com a semeadura. A história de cada pessoa nada mais é do que o somatório das escolhas que fez durante a viagem. Nesta e em estações anteriores. Definir os próximos destinos significa fazer escolhas concernentes a eles. Alterar futuras rotas exige modificar as escolhas de agora. Por isto a importância do mergulho profundo nos confins do ser, para entender e aceitar o que o trouxe até aqui e, então, transformar a realidade. Para tanto, é preciso sinceridade e coragem para consigo mesmo. Entender quem fomos e quem somos, para redesenhar quem queremos ser. De verdade”.
“Por medo, escolhemos a gaiola ao invés das asas; por egoísmo, escolhemos possuir no lugar de compartilhar; por ignorância, escolhemos o ter em detrimento do ser; por ciúme, escolhemos nos distanciar do amor; pelo brilho do desejo, escolhemos apagar a luz dos sonhos; por teimosia, escolhemos a estagnação, impedindo o germinar da sabedoria; por comodidade, travamos o movimento da vida; por orgulho, escolhemos a ilusão na tentativa de esquecer a verdade. Assim, inconscientemente, acabamos por escolher a doença ao não permitir a cura”.
Falei que todo conceito novo é um pouco confuso até encontrar o devido lugar dentro da gente. Porém, confessei que havia razão em seus argumentos. Loureiro disse com seriedade: “Todo conflito externo é reflexo da bagunça interna. A maneira como reagimos às dificuldades demonstra o maior ou menor poder das sombras que ainda nos habitam. Todas as desavenças, dos problemas sociais aos relacionamentos pessoais, revelam o grau de predominância do ego sobre a alma daquele grupo ou indivíduo. O sofrimento de um indivíduo é diretamente proporcional às sombras que o habitam. Iluminá-las é uma escolha”.
O artesão me observou por instantes, ofereceu um lindo sorriso e finalizou: “A escolha é o único instrumento que possuímos para exercitar a nossa espiritualidade. Não há outro. As sombras podem tornar a existência um pesado ofício. Por sua vez, seguir pelos meandros da luz, com sabedoria e amor, transforma a vida em fina arte. Somente as escolhas lhe darão a leveza, ou não, para se sustentar no ar”.
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Enviado por Tânia de Oliveira em 24/09/2016
Reeditado em 24/09/2016
Código do texto: T5771058
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