NELLY, A CATHARINA*
Vendo-a depauperada, vago alento no olhar, aos 94 anos cessava, finava em suspiros compassados, num ressonar difícil, pausado, registrando o enfraquecimento das fibras de sua matéria, seu débil corpo expirava...Liberto estava aquele espírito audaz.
Impotente assistia os últimos momentos frente ao inevitável. Se pudesse a impedia, mas como mantê-la, pela minha vontade e egoísmo, retê-la a voos mais altos? Momentos em que todo humano se questiona, aprofunda-se em si mesmo, devaneia na dor da ausência presente, se ressente, se amargura.
Assinalava o tempo, inexorável e fatídico, sugando energias e vida. A mente em retrospectos rebobinando o filme passado presente...Nas noites na fazenda, com a sua proteção de avó enfrentava o medo do escuro na parca claridade das lamparinas de então, avultando imagens nas paredes no bruxulear das chamas fracas, temores infantis, monstros imaginários, terrores... A compreensão bondosa nos amanheceres molhado de urina, com receio de enfrentar o breu da noite e ir ao banheiro.
Que sensação aquela, sentir-me distante, isolado, apartado de minha amiga, tantas lembranças juntos, despedia-se de sua companhia. Já adulto, via-me menino necessitado dela, instantes finais de vê-la a fugir de minhas retinas.
Gratas memórias vividas, sabores das mangas trazidas de uma chácara próxima, coração de boi, coco, rosinha e espada, fruta de nossa predileção, com as mãos e caras lambuzadas, crianças os dois na lambança dos dedos, sorrisos, alegrias, desleixos...
Quando saíamos, a mim cabia a escolha, irmos de charrete, trem, ou a jardineira, meu desejo, uma ordem... Agora ela ia só, sem a mim e a ninguém, no encontro do inescrutável, viagem solitária e misteriosa, sem acenos de despedidas, sem olhares de afetos, sem esperanças de um até breve, um voltar logo mais que me acalentava ao esperá-la, não mais.
Cúmplice de meu primeiro gole, o Martini, bebida alcóolica doce e inebriante, sua favorita, partilhou comigo, anistiado de censuras, onde tudo era permitido, ela feito criança nas transgressões. Não era o neto então, apenas o acompanhante nas travessuras inesquecíveis, tão vivas e saudosas. Sem esquecer as vitrines das docerias, com guloseimas à mão, e, na sua bolsa pródiga e farta, surpresas, mimos e atenções. Nem tudo eram festas, contudo, nas estripulias de seu companheiro, as leituras e releituras das revistinhas em quadrinhos, no maçante passar das horas, de infinitas consultas ao relógio na parede,sentado no salão da cabeleireira, verdadeiras torturas a esperando, mãos esticadas, cabelos entintados, no ar o aroma dos cosméticos , entre os bobes, grampos, laquês e esmaltes que a deixavam engraçada, piscando amiúde para mim, entre sorrisos afetuosos.
Sempre jovial, até um codinome adotou, como Nelly foi conhecida, raramente Catharina. O apelido, de tão familiar e conhecido de todos, gerou um erro no registro do nascimento de um dos seis filhos, três homens e três mulheres, figurando como o nome real na hora do escrivão anotar, falha provável de meu avô. Precoce para os estudos, teve a data de nascimento alterada para mais idade, para ingressar na faculdade de Farmácia, fato raro em seu tempo, em sua turma apenas mais duas estudantes femininas. Atuou como professora, responsável por farmácias, em laboratórios, ativa a vida profissional.
Vaidosa, elegante, esguia, a tez sempre maquiada, unhas pintadas e batom, cabelo sempre penteado em inconfundível estilo.
Vê-la inerte, maquiada, rubro batom nos lábios cerrados, maçãs das faces retocadas, tal como viveu, se despedia...
Foi-se a Nelly, a Catarina, com ela o tempo de minha inocência e fantasias, cicerone e companheira em tantas alegrias...
• Em memória de Catharina Sanches Ferraro, a Nelly, minha avó paterna.
* Publicado em livro na antologia CONTOS FANTÁSTICOS, 2018, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ, abril de 2018.