ANO NOVO

Conheço Irene desde sempre. Como se deu início a nossa amizade? Não me lembro. Irene é desses tipos de mulheres diferentes. Não está dentro do padrão de beleza que a sociedade impõe. A beleza de Irene é ... simplesmente é. Irene é um pouco mais velha do que eu. Não sei quantos anos, nunca tive a curiosidade de saber. É baixinha, gordinha e um sorriso encantador. Irene nunca me perguntou como eu estava. Simplesmente chegava e:

- Oi gatinho. Não fique triste. Tudo vai dar certo. Eu cheguei. – e a gargalhada logo em seguida era simplesmente contagiante.

Um dia nós discutimos. Coisas de amigos. Mas, pela primeira vez eu vi nos olhos de Irene uma tristeza imensurável. Irene chorou. Faltou ao trabalho e eu? Eu senti-me a pior pessoa do mundo.

No dia seguinte ao retorno dela, percebi que o choro foi muito mais do que aquele simples momento. Mas eu não disse nada demais. Ao menos não para mim. Estávamos zoando um com o outro e em um determinado momento eu simplesmente disse:

- Me dá um tempo!

- Tempo dado.

- Por que você não morre!!!! – Foram essas as palavras que fizeram com que o semblante de Irene decaísse. A tristeza estava estampada no rostinho dela. Naquele dia ela estava especialmente linda. E eu consegui destruí-la.

O sentimento de Irene foi tão perceptível que até os outros colegas queriam saber o que estava acontecendo. Mas ela não dizia nada. Não tocou no meu nome. Ignorou-me por completo. Uma semana, uma semana de isolamento. Senti falta dela. Das brincadeiras espontâneas, das gargalhadas sinceras, do sorriso discreto e sedutor.

Durante três dias seguidos, Irene não olhou em meus olhos. O peso de culpa... na minha cabeça eu não disse nada demais. E simplesmente não conseguia entender o porquê de tanta tristeza.

De repente, sem mais nem menos, fiz-lhe uma pergunta sobre o trabalho que desenvolvíamos juntos e ela me respondeu com um sorriso maravilhoso. Não havia necessidades de palavras, os olhos diziam tudo o que eu precisava saber.

- Eu estava morrendo de saudades do seu sorriso. Obrigado por me desculpar. Não gosto de ver você triste.

- Ninguém na firma gosta de ver você triste, Irene. - completou um colega e mais alguns concordaram.

- Isso quer dizer que sou a palhaça da empresa?

- Não. Nunca. Mas a sua alegria é contagiante.

Irene sorriu um pouco desconfiada e voltou ao trabalho.

De vez em quando, eu olhava para ela e percebia que ela disfarçava. Será? Não. É amizade sincera, só isso. Eu repetia para mim mesmo o tempo todo.

Irene tinha algumas manias. Uma delas, que para mim era o máximo, ela simplesmente punha o dedo na boca e ficava por alguns segundos pensando sei lá no que. Aquele gesto era muito sensual. A impressão que eu tinha era que ela fazia isso para me seduzir. E conseguia. Quando olhava para ela, simplesmente, sorria. Simples, sorria.

Fizemos algumas viagens juntos. Viagens à trabalho. No caminho conversávamos sobre tudo e sobre todos. Éramos amigos de verdade. Contei-lhe meus segredos mais secretos. Ela ouvia com carinho. Querendo dar palpites e ao mesmo tempo não dizendo nada. Durante essas viagens compartilhávamos nossas aventuras e desventuras amorosas. E em alguns momentos senti ciúmes. Em alguns momentos, ela também sentiu ciúmes.

Na última viagem, Irene confessou:

- Sei que pode ser ridículo, afinal somos amigos, colegas de trabalho, mas eu tenho ciúmes de você. Gosto de ficar perto.

Senti um calafrio. A vontade de beijar aquela boca era.... imensa. Mas ela estava dirigindo. Na volta, Irene passou mal. Parei o carro. ... não dissemos nada. Eu sei que aquele era o momento. Mas não tive coragem, eu tinha medo de Irene. Exatamente isso, medo. O desejo dela por mim estava explicito e eu simplesmente não fiz nada. Não tomei a iniciativa.

- Homem que é homem de verdade tem que ter iniciativa. – dizia sempre entre uma brincadeira e outra. Eu não tive inciativa. Travei.

Férias. Delicia. Férias. Irene viajou. Sem se despedir. Durante mais de quinze dias não deu notícias. Fiquei preocupado. Ninguém sabia nada. Quando retornamos ao trabalho, Irene havia sido transferida para outro estado. Despediu-se dos colegas, incluindo-me, por e-mail.

Conversávamos quase todos os dias. Novidades e mais novidades de ambos os lados. E mais um ano estava chegando ao fim.

- O que fará na virada de ano? – perguntou-me de repente.

- Festa. O que mais?

- Onde?

- Ainda não sei.

- Quer vir onde estou?

- Posso?

- Quer?

- Nem sempre o querer é o poder!

- Está com medo de mim?

- ....

- E então?

- Passe o seu endereço. Ano Novo estaremos juntos. Você e eu. Eu e você. Ok?

- Ok!

Irene e eu marcamos nos encontrar no ano novo. Confesso que estava nervoso. Quando cheguei ao local combinado para o encontro, ela não estava. O meu coração disparou.

- A dona Irene avisou-nos da sua chegada. – disse-me o porteiro do prédio. O senhor pode subir. Aqui estão as chaves.

O apartamento era pequeno, simples, confortável, a cara da Irene. Algumas fotos. Fotos minhas. Fotos nossas. Comecei a ver e perceber que nós tínhamos uma história que precisava ser escrita ou apagada de vez.

O tempo não passava nunca até que o meu telefone tocou:

- Oi gatinho. Já chegou.

- Já. Cadê você?

- Tô chegando. Se quiser beber alguma coisa, tem água na geladeira.

- Você não muda mesmo.

- Engano seu. Já, já estou aí. Beijos.

Desligou. O silêncio era ensurdecedor. Fiquei incomodado. Meia hora depois ela chegou. Eu cochilava no sofá. Eram dez horas da noite. Quase Ano Novo.

- Acorda dorminhoco. Disse Irene dando-me um beijo na boca. Um beijo não, um selinho. Eu tentei beijá-la. Ela não permitiu.

- Oi gatona. Saudades.

- Será?

- Você está maravilhosa.!!!!

- Magra né!!!!

- Você já foi gorda algum dia? Se foi, nunca reparei. Você sempre foi linda, agora.. esta maravilhosamente linda.

- Ok. Eu preparei o nosso jantar.

- Você? Cozinhando? Estou com medo!

- Claro que não. Me ajude aqui. Por gentileza.

Para variar, tudo congelado ou pré-congelado. O jantar ficou pronto rapidinho. Enquanto eu arrumava a mesa, Irene me disse que iria tomar um banho. Estava exausta e necessitava de uma ducha.

- A casa é sua.

Ela sorriu e saiu.

Fiquei ali zanzando...

- Ligue a televisão.

- Prefiro música.

- Eu também.

Quando me virei, Irene estava na porta do quarto com um vestido branco, muito leve, parecia um anjo. Fiquei sem palavras.

- Vamos jantar. Não gosto de beber de estômago vazio.

Durante o jantar falamos sobre tudo. Sobre todos. Sobre alguns. Menos sobre nós. De vez em quando um silêncio reinava entre nós.

- Já olhou o relógio?

- Por quê?

- Quase meia-noite. Venha até a sacada. Vamos ver a queima de fogos.

Irene puxou-me pela mão e conduziu-me até a sacada do apartamento. A vista era linda. Eu não sabia se olhava para os fogos ou para Irene. Não resisti.

- Feliz Ano Novo.

- Feliz Ano Novo.

Depois de tantos anos, minha boca finalmente tocou aquela boca. Foi um beijo verdadeiro, sincero, apaixonado. Um beijo desejado. Os olhos de Irene me diziam que ela não queria só um beijo. Ela queria muito mais. Eu desejava aquela mulher... toquei o seu corpo, senti calafrio, senti vontade de guardá-la só para mim. Olhei bem fundo nos olhos daquela que eu amei a vida inteira e não percebia, soltei as alças do vestido. Ela estava nua, na minha frente. Ela era minha. Ela era minha para sempre. Nos amamos. Nós nos amávamos. Nós havíamos descoberto o quanto precisávamos um do outro.

E assim, abraçados, grudados mesmo, apaixonados, iniciamos um Ano Novo. Uma vida nova. Agora? Juntos. Juntos para sempre.

Fátima da Silva
Enviado por Fátima da Silva em 13/09/2016
Reeditado em 11/12/2016
Código do texto: T5759618
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