Aqui jaz ...

Assim se passaram os anos, tolos, apáticos indiferentes e finalmente caiu por terra , findou-se num final sem graça , sem surpresas, nada teatral , nada imoral , assim bestamente normal .

Passou até despercebido, algo mal concebido, nada proibido como se nem tivesse existido.Deixou-se findar , entregou-se a inércia , ao vazio , ao nada ...

Vez ou outra ela olhava as mãos enrugadas, que já destoava de tudo, seu cérebro ainda teimava em quere ser jovem mas, a pele lhe denunciava. Procurava no espelho o brilho, o viço, o frescor das manhãs, os lábios rosados, os olhos de gazela. Buscava tanto e tudo que encontrava era aquele rosto marcado, mostrando que o tempo deixara vínculos, marcas, histórias e pairava em cada linha delineada .

-Quem é você que hora me olha assim? que roga a Deus por nós? que medita e repensa diariamente no passado? quem é você ?

Mulher que permanece quieta, calada, nem alegre nem triste , em paz com suas seus botões, pensamentos e pecados, arrependidos ? não , pecado é pecado , se Deus disser que tá perdoado aceita e segue em frente. Talvez nem fosse pecado, quem sabe um pecadilho muito mais no pensar que em cometer.

A agulha de crochet trabalha quase no automático um tic, um toque nervoso , um passatempo ?

- Ora deixa-me em paz! melhor enrolar linha que a vida dos outros!

Enquanto desenrola relembra ...

Viagens longas ao passado, as danças , valsas boleros, os vestidos de cetim com a enorme rosa de organza, seus quinze anos , a pele rosada e fresca de moça virgem e pura.

A primeira valsa dançada com seu Pai orgulhoso e ciumento ao apresentar ao Mundo seu primeiro botão em flor...

Ah, como é perfeito a mudança de menina mulher... um turbilhão passando pelo seu corpo ainda despreparado, sem conhecimento, lutando para lidar com os seus hormônios enlouquecidos em profusão .

Uma vontade louca de ser, saber, conhecer um dia achou que estava pronta disse:

-Bença Mãe , bença Pai e se foi ...

Ganhou cidade grande, abriu os horizontes e vivia cada segundo como se fosse único, corrida desenfreada mas, pouco conquistando.

-Bom de que me serve as pernas senão para andar ?

-Servem também para abraçar o Mundo, então vamos lá?

Nem pensou duas vezes, sem medo sem indecisão, deixou tudo para trás e partiu, mais uma vez maldizendo a falta de sorte que teimava em lhe perseguir .

-Quem sabe encontro outro jeito ? quem sabe o que me espera ? preciso ver, tentar, arriscar.

Montou seu cavalo prateado e lá se foi . Saiu em noite negra com o coração na mão já meio partido , meio remendado . Medo ? teve medo não senhor , o que tinha em tamanho triplicou em coragem, enfrentou o desconhecido de peito aberto , segurando as rédeas com a força tirada sabe-se lá de onde .

-Vamos embora! finge que você é corajosa, finje que não sente saudades, que vai dar tudo certo, que um dia há de dar !

Seus cabelos castanhos reluziam pro dourado, dando-lhe um certo destaque, sabe Deus como, mas ela se apoderou dessa arma e não ?? cada um usa as armas que tem ! se bem que não lhe valeu muito, mas ajudou um pouco por um tempo.

Com o passar dos anos isso não fazia mais diferença, afinal nem tudo que reluz é ouro . Precisava encontrar novas armas e descobriu que suas mãos valiam mais, assim passou a usa-las tanto que fez delas suas escravas, trabalhadoras e obedientes, faziam com gosto tudo que ela mandava, depois como recompensa, eram acariciadas, massageadas com cremes importados e aconchegadas dormiam em luvas macias...

O mundo deu voltas, tantas que ela parou de contar ....

Não sabe exatamente quando começou o fim ou se o fim já iniciou no começo...

Sabe aquela receita que já começa a dar errado desde o princípio ? e aí o bolo fica solado , a gente deixa na mesa ninguém come , tira daqui põe pra lá quando vê foi pro lixo... ninguém nem percebe que aquilo era um bolo .

Assim também somos nós, insistir no errado é o maior erro , a gente acaba se acostumando com ele e um dia percebe que está ali mais uma sombra que uma vida. Sem nada , tão nada ou quase tão nada ...

Certa vez ela conheceu um casal idoso tão unidos, já bem velhinhos, cabelos brancos, andavam de mãos dadas pela calçada.Quando a Senhorinha falava o Marido parava e a olhava bem dentro dos olhos, segurando suas mãos como se fossem preciosidades.

Os olhos de ambos ainda brilhavam e a doçura da voz era perceptível ...

-Olha que lindo aquele casal ainda carregam a chama do amor...

Ele respondeu :

- Anda depressa, eu lá tenho tempo de prestar atenção em velhinhos !

Ela pensou mas não falou:

-Que pena...nós nem começamos e já terminou.