OS TOUROS
O senhor Abel Garcia morreu depois da esposa. Cinco anos depois e foram casados por quarenta. Mas para o senhor Abel Garcia a morte da esposa não incomodara, porque já havia dez anos, ele não convivia com a mulher real, a idosa encurvada na poltrona da sala, mas com outra fêmea, a sua cara metade amável e linda que lhe sorriu um dia, quarenta anos antes, que recebera-o como marido e uma noite retornara em sonhos, permanecendo assim, diariamente, como algo arrebatador e revigorante. A esposa noturna de Abel, essencialmente cara metade.
Uma ocasião esta novíssima mulher saiu nua de um banheiro dourado em busca de uma cama vaporosa. Depois beijou Abel, chamando-o de meu único amor. Tão sonora foi aquela afirmação em um sonho lúcido para depois ouvir-lhe dizer:
- Meu amor! Meu amor eu te perdoo!
Abel, já absolvido, não soube o motivo do perdão, nem o porquê da nudez. Mas em sonho sentiu o calor desta antiga esposa. O calor parecia vencer o tempo até Abel acordar, com a responsabilidade de medicar a mulher real, doente de Alzheimer.
O senhor Abel sabia de suas obrigações como marido até a morte, no entanto, outras permaneciam em sonhos.
Nem todos os sonhos eram lembrados. Houve o sonho do labirinto. Abel se encontrava perdido em um lugar sem saída quando o percurso encheu-se de flores diante da aproximação dela, do cheiro perfumado do seu corpo pronto para o amor. Seu amor era a saída, um outro lugar, um alívio e os dois voaram.
Houve também o sonho da represa. Abel avistava, da varanda do seu apartamento, uma grande represa. Ele se sentou em uma poltrona, uma poltrona feita de palha trançada, quando a jovem esposa deitou-se em seu colo e dormiu ali como a gata, a felina daquela união também trançada e tão imensa quanto a represa azul a pedir o desejo do casal.
Mas a mulher marcou mais outros sonhos de Abel. O sonho das festas quando surgiam borboletas. Tais insetos mudavam de cor e Abel completamente abstrato, viu a esposa surgir radiante, dizendo-se dona das lagartas, dos casulos, dos lepidópteros e das asas coloridas. Elas voavam para anunciar uma vontade dela em permanecer perto do seu amor, do seu marido ruborizado de vergonha, diante de uma plateia de olhos gordos.
Foram anos de encontros ilusórios. O senhor Abel não contava as histórias. Um dia, porém, perguntou a mulher real, calada no canto direito do sofá, se ela sonhava também, se ainda sonhava com ele, aquele noivo elegante perfilado em frente ao altar da igreja de Santa Barbara. A esposa respondeu, do fundo da esfera irreal onde também deveria estar; embora o tremor tivesse se estabilizado naquela semana:
- Sonho com Carlos, meu toureiro espanhol!
Na hora o senhor Abel percebeu; toda a sua ilusão conjugal era uma doença real, até maior do que a doença da antiga mulher, contudo, não atestou o seu grau da enfermidade comparado ao da esposa, porque ela morreu três dias depois.
Abel, no entanto, continuou a receber a outra em sonhos. Um dia ela estava naquela mesma viagem de ônibus feita pelos dois durante a adolescência. Abel acordou, abraçou o antigo travesseiro da esposa que em sonhos estava lindamente sentada no banco mais alto do ônibus e reinava sobre todos os lugares.
Abel, lembrava bem da sua companheira de sonhos lúcidos; ela era tão intensa que, às vezes, Abel até preferia a lembrança do Alzheimer da finada esposa. Ora, o Alzheimer... ficou em sua memória, como permaneceram, em seu apartamento, as fotos antigas do seu casamento e isso era igual aos seus últimos dentes permanentes e também as calcinhas pretas da esposa que ocuparam o inútil varal da lavanderia durante muito tempo.
DO LIVRO: "OS TOUROS DE COPACABANA"