Apenas mais um olhar

“Ela sempre teve essas ideias...”, dizia a mãe da menina para si enquanto olhava a filha contemplando o nada no quintal de casa no auge dos seus oito anos de idade. Nunca soubera o que permeava seus pensamentos naqueles momentos tão estranhos. Nunca soube também como perguntar o que se passava naquela cabeça tão infantil, porém, já tão envolta em profundidade. Uma profundidade inocente, característica da leveza das crianças, porém, no seu íntimo, sabia que sua filha ia além. Depois de alguns minutos, Clara voltava ao normal, emergia à superfície e era, aparentemente, como qualquer outra criança, com toda a correria, suor e machucados característicos da idade. Subia e descia da goiabeira e do abacateiro do quintal como se tivesse nascido para escalar árvores.

Os anos iam passando rápido, mais rápido que a mãe gostaria. Clara se tornara uma bela moça, com seus 15 anos, mais alta que as meninas da sua idade. Nunca deixou de cultivar o antigo hábito de mergulhar para um não sei onde, para fazer não se sabe o que durante um período do dia. Já tinham tentando de tudo, de médicos a chamadas furtivas na hora do transe – chamadas essas não correspondidas por sinal. Os médicos diziam que nada tinha de errado com Clara; as chamadas sempre eram respondidas minutos depois com um “hum?” absorto estampado naqueles olhos castanhos.

“Não há nada de errado com a minha filha...” – repetia a mãe como um mantra todas as noites antes de dormir. Ela não sabia de onde vinha a necessidade de tentar se convencer da normalidade da jovem, mas precisava disso.

Clara completa seus 16 anos. No colégio não era a aluna mais brilhante, porém, sabia se sair bem. Quando a menina chegou chorando em casa um dia a mãe soube que não era por conta de notas nem nada congênere. Ao entrar no quarto de Clara, a mulher foi recebida com um “Eles não me suportam...” em meio a soluços de um choro que inutilmente, a moça tentava conter. Clara havia se desligado em meio a uma apresentação de um trabalho. Ficou estática, sem dar uma palavra, na frente da classe, com os olhos vidrados no nada. O professor e os colegas de grupo, chamaram-na, sacudiram-na, porém, foi tudo inútil. A menina era um corpo petrificado. Depois do tempo habitual, Clara voltou a si, com seu “hum?” característico, porém, se vendo em meio à risos de deboche e olhares de medo... Não teve outra alternativa a não ser correr da sala, da escola, o mais rápido que pode para casa, seu porto seguro.

“Não, ela não pode viver dessa maneira…” Pensou a mãe apertando a filha nos braços. Não havia, em termos práticos, o que poderia ser feito. Ambas sabiam. Ambas sentiam isso. Clara era daquela maneira e a vida se encarregou para que essa fosse uma característica imutável. Isso a tornava a única, era uma dádiva… ao passo que também era uma maldição, afinal mesma vida não se resumia ao seio de sua família e aos que a amavam.

Os dias passavam com Clara em casa, sem coragem de novamente se expor ao mundo grande lá fora. As abstrações continuavam.

Um dia, sentada de baixo da velha goiabeira, a mãe a observou novamente nesses momentos. Resolveu dar uma chance para a filha e olhá-la sem medo, de peito aberto. Foi quando a mulher, no auge dos seus cinquenta anos, descobriu uma beleza que jamais havia visto. Clara estava descalça, com os cabelos ao vento… e os olhos castanhos… ah os olhos castanhos… não brilhavam, soltavam faíscas! Para onde quer que a menina fosse naquelas horas, ela vivia. Mas não era essa vivência sem paixão e autônoma hodiernas. Era uma vivência repleta de paixão. Não havia nada mais bonito naquele momento que o silêncio, a quietude e a contemplação.

De repente, tudo fez sentido. O problema era o medo. O medo impedia a mãe de olhar à filha e igualmente de perceber quem naquele mundo, Clara era feliz. Um mundo com um ‘q’ de inacessível e incompreensível a olhos, mentes e almas desatentos, mas repleto de felicidade.

A mãe sorriu e suspirou no jardim contemplando aquele mistério da natureza, que ela, com tanto amor, tinha gerado. Disse novamente para si “Ela sempre teve essas ideias…” e pela primeira vez, a mulher passou a tê-las também.

Ynis Avallach
Enviado por Ynis Avallach em 10/07/2016
Reeditado em 10/07/2016
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