Querido Leitor
Querido leitor,
Há muitos anos, no auge de minha comedida juventude, conheci um rapaz de personalidade incomum, cabelos cobertos de gel e ar de superioridade contido em sua postura irreverente, vestindo um casaco dos Beatles velho e descorado. Ele carregava um violão e a imensa vontade de mudar o mundo – o seu mundo, como sempre dizia.
Não demorou, e dispenso contar a história, para que nos tornássemos amigos. Eu, com minha timidez deslocada e inteligência ligeiramente acima da média, apreciei sua companhia e amizade que me afastaram dos meus impasses. No começo, satisfizeram-me as conversas banais e o silêncio profundo de alguns momentos, que muito falavam sobre quem ele era. Apenas no começo.
Depois de poucos meses, a admiração se transformou em amor, como acontece nas verdadeiras amizades, e o amor foi tomando forma, moldando-se pela convivência e pela troca de ideais. Quando percebi, aquele amor dividia espaço com a paixão, acolhedora e imparcial aos defeitos, mas, acima de tudo, assustadora.
Apesar do medo de afastá-lo, senti que deveria confessar meus sentimentos. Sem me preparar, sem esperar o instante certo, contei, observando-o parar em minha frente, de costas, e repousar os braços ao longo do corpo enquanto movia as mãos. De todas as reações que ele poderia ter, de todas as consequências possivelmente desastrosas de meu impulso, ele escolheu aquela que mais me surpreendeu, motivo de grande alegria e tristeza futura: virar-se e me beijar com suavidade, por minutos que se estenderam ao inimaginável.
Se digo que precisei lidar com a tristeza, nada tem a ver com a perda da amizade ou com desilusão amorosa. Quem ama sabe que o único sentimento capaz de se igualar a felicidade de ser correspondido é a dor de ver quem está ao seu lado partir. Foi essa dor que se instaurou em meus dias, mais cedo do que eu poderia imaginar, e se negou a deixá-los.
Meu companheiro morreu há longos anos, ainda menino e com a mesma vontade de mudar o mundo. Já não podia mais moldar os cabelos com gel, talvez sua maior insatisfação, por conta do cansativo tratamento que se arrastou por meses e meses. Eu o vi perder parte da energia e da atitude inquebráveis, mas a imagem mantida em minha mente foi aquela que ficou desde o nosso primeiro encontro. Mudou somente a admiração, que cresceu, inevitavelmente, vendo-o lutar pela vida sem nunca abandonar o espírito e a invencibilidade que me cativaram.
Da amizade, guardei a felicidade. Da companhia, guardei o amor. Dos maus momentos, não raros em seus dias no hospital, guardei os ensinamentos. Da dor, guardei a força. Dele, guardei poucas letras nunca cantadas, uma saudade imensa e as lembranças ora dolorosas ora admiráveis. Sei que o tempo que passamos juntos valeu por uma vida, e não carrego arrependimentos. Assim, deixo um trecho de sua última música, feita às pressas e não terminada: “Se voltarmos atrás, deixamos de seguir em frente. Leve só as lembranças boas, amor, e grite-as quando se sentir sozinho”.
Agradeço por ler, Thiago.