O VELÓRIO
Depois de tantos anos de um casamento feliz, brigas houve, claro, mas o amor sempre a falar mais alto. E agora aquela solidão, uma apunhalada no peito, aquele mar de lembranças doces, ali diante dela, aquele corpo inerte. O homem que mais amara não poderia voltar a tocar-lhe os seios e arrepiá-la, nunca mais a acordaria com beijos e sorrisos, quem no mundo recitar-lhe-ia os versos de Neruda com igual paixão? Ainda lembrava-se do último presente: um vestido florido, por ocasião do dia dos namorados. Pois agora todas as flores estavam mortas, secas. Sem ele, jamais seria completa. Sem ele, só lágrimas e desalento.
Ainda podia ouvir as derradeiras palavras de seu homem, eu te amo, naquela fatídica manhã de outono. Como a vida pode ser tão cruel? Não há mais o que fazer, mãe, disseram os filhos. A eutanásia, ah, bando de abutres, a melhor solução, quanta ingratidão. Só assim pra esse velório que já dura sete anos finalmente chegar ao fim.
Mas Deus, que costuma comover-se com amores assim tão abnegados e viscerais, poupou a todos o trabalho: providenciou o enterro dele antes do desligar de aparelhos.
E, quando o caixão baixou à sepultura, lá estava ela, ao lado do homem de sua vida, os dois deitados sob a mesma cruz eterna.