Perto aqui dentro

- o senhor está passando bem?

a indagação invadiu-me feito um tiro à queima-roupa. Sim, é claro que eu estava bem. mas me preocupava, seriamente, porque tal indagação havia sido feita. primeiro porque eu apresentava todos os sinais vitais, não havia desmaiado, vomitado ou batido com a cabeça em algum objeto que pudesse causar um traumatismo craniano. era plenamente dono de minhas faculdades físicas e mentais e sentia-me disposto a disputar uma meia maratona ou até mesmo uma maratona inteira se surgisse a oportunidade. Para que vocês tenham ideia do meu estado de êxtase, no dia anterior subi e desci as escadas do prédio onde moro três vezes. e olha que moro no décimo primeiro andar. para ser sincero, nada conseguia impedir a fúria com que eu queria devorar a vida naquele momento. era um desejo insaciável de uma fome que vai nos consumindo e, quanto mais fome se tem, mas fome se quer ter. era uma fome homérica, se é que a força do adjetivo seria capaz de dimensionar a quem quer que fosse o tamanho do meu apetite. e de repente estava eu ali, o olhar parado no tempo, a lembrar de cada passo que me conduziu até aquele exato momento. queria tatuá-los em minha memória e dizer que, que valeu a pena, que sempre valerá: "tudo o que se faz em nome do amor há de permanecer". estaria eu devaneando e por ventura alguém de olhar atento captou meu pensamento? depois da indagação, voltei ao corpo que havia abandonado por alguns segundos. horas, relataram-me depois. para ser mais exato, fiquei prostrado durante duas horas e trinta e sete minutos, o olhar parado no tempo, os ouvidos fechados para qualquer fala, diálogo, gracejo ou mesmo grito que pudesse me despertar. era como se estivesse em um mundo paralelo, dançando compenetradamente um tango. a sincronia dos corpos. a cumplicidade do olhar. a desenvoltura dos gestos e a segurança dos movimentos nos tornavam o centro das atenções. em meus braços, sentia o calor do seu corpo, a suavidade do seu perfume, odor de terra molhada em dias de chuva fina depois de meses de estiagem. a dança prosseguia e, a cada movimento, entrávamos cada vez mais naquele mar de amor e nadávamos, mergulhávamos, sentíamos o sal das ondas banhar nossa felicidade. nossos corpos desmanchavam-se em átomos de oxigênio e hidrogênio e, num átimo, percorríamos vinte mil léguas submarinas longes um do outro, quase que dois estranhos. mas, depois do vai e vem das ondas, encontrávamos novamente sob o infinito ar, o infinito mar, o indecifrável amar que lógica nenhuma consegue explicar. e tampouco se busca entender. faz-se necessário sentir. e habitar sempre que possível esse espaço-tempo, longe de tudo, mas perto, dentro de nós mesmos.

- Sim, estou bem, - disse, recobrando os sentidos. - não saberia explicar tudo o que se passou, mas há coisas que nem carecem de explicação. são assim. acontecem e ficam em nós, habitando nossa alma sem pagar aluguel. é um misto de tudo, tudo o que nos alegra e dá sentido à vida. é chama que se renova a cada amanhecer com pouco, muito pouco de quem amamos incondicionalmente.