Uma voz em branco

De cada abraço um desejo obscuro. E em cada olhar se sente tanto.

Francisco, sabe quando seus olhos estão pesados, seu coração bate cansado, e tudo ao redor parece estar morrendo ou dormindo? Não é uma sensação pouco conhecida, tendo em vista que estamos vivendo com bilhões de pessoas. Uma vontade tão cruel, que você pode enxergar vários culpados, inclusive a si mesmo. Como pode uma noite eu estar tão preenchido de algo desconhecido e bom, mas em uma outra noite não tão distante os dias estarem mergulhando em caos e desordem? Acho que é mais que isso, se me permite tentar responder por você. Eu costumava acreditar em coisas que me foram ditas para acreditar. Quando criança, eu sentava na frente da minha mãe, e ela costumava me fazer entender sobre as coisas do mundo - Haha, coisas do mundo! E alguma coisa acontece nesse mundo, se não as mesmas coisas? Descobri que o as histórias se repetem em personagens nem tão diferentes assim. Quando muito novo, me ensinaram como as outras pessoas eram. E que eu precisava estar conectado com o mundo todo através de uma cartilha normativa dos interesses de alguém que a criou. Mas eu não pude. Então eu fiquei só por muito tempo, meu amigo. O mundo descobriu a minha fuga, e eu fui o culpado do meu próprio sofrimento. Eu apenas não entendi do por que eu não conseguia me encaixar no espaço que foi criado para mim.

Depois de um tempo eu não sabia mais se eu tinha sorte ou não. Eu realmente acreditava que tinha sorte em saber que se eu não quisesse mais sentir essa dor, então eu a faria para. Isso custaria a minha liberdade, meu sim, meu não. Eu nunca iria conseguir me entregar ao desejo de outras pessoas. Eles queriam que eu dissesse sim depois deles, e se eu dissesse não, como fiz, eu seria punido, como fui. E algumas pessoas podem ser muito cruéis.

Um dia, meu irmão do meio me olhou e disse que eu tinha uma escolha. Será que ele acha que eu realmente me divirto sendo alvo de dor, ódio e tanta angústia? Como ele não pode entender que o livre arbítrio é uma ilusão? Eu não conseguia entender isso, eu não sabia como o fazer entender. Então mais uma vez fui punido, quando ele deixou de querer. Tenho vergonha de você, ele disse. E consequentemente, o mundo me deixou também. As respostas para as minhas perguntas eram gritos, socos, chutes, olhares de reprovação, e abandono. Estou no mesmo lugar que sempre estive. Eu caminho sobre uma trilha morta sacudindo essa desordem em mim.

Não é que eu não aguentasse mais estar só, mas eu precisei fazer tudo o que fiz. Eu nunca quis chamar a atenção para mim, mas para todos esses corpos mortos que o punidor não queria deixar só, nem esconder. O punidor não fazia questão de esconder, porque queria que todos vissem, queria usar como exemplo para os sins e nãos que estivesse fora de ordem. E o meu sempre estaria.

As pessoas que me amavam sempre tentaram me adequar e burlar o punidor. Será que elas realmente me amavam? Elas diziam que ele admitia tentativas, o que o faz ser bonzinho. Mas com o tempo, eu fiquei cansado de estar cansado, e tudo o que eu queria era gritar na cara dele todos os meus sins e nãos irregulares. O punidor nunca me deixou chegar tão longe. Ele erguia o meu corpo e plantava trezentas marcas nas minhas costas. E eu ficava agonizando, esperando para me juntar nos corpos sem vida que estavam do meu lado da cerca. Eles vinham, sobiam sobre o meu corpo. Frios. Sem vida. Fediam a carne podre. Carregavam tantos sins e nãos quanto eu. Se fundiam a mim. Curavam as marcas, mas as cicatrizes sempre estariam aqui, em toda essa região, consegue as ver? Essas sãos as cicatrizes de tantos nãos quanto sins. Fundadas com sangue, ódio, e sem amor.

Eu conheci o Kaio quando ainda limpava o sangue dos mortos. Ele chegou bem no meio de uma tempestade, tentou me dizer para não ter medo. Eu já estava tão desconfiado, tão cansado. Dentro de mim só havia tripas podres cheias de morte e caos. Mas ele veio. Ele me acalmou, disse que eu não estava sozinho. Eu já não entendia o que isso significava mais. Seria outra estratégia do punidor? Eu não sabia. Eu tinha tanto medo. Não sei o quanto ele caminhou, não sei quantos corpos ele encontrou no caminho. Ele me ofereceu ajuda, mas eu já não mais pensava por mim. Eu tinha a pele dos mortos, e as marcas do punidor, secas, fundas, me mostrando o quanto ele poderia ser cruel. Então eu fiquei, e o Kaio continuou andando por aquele caminho.

Eu queria dizer que ele me despertou vida novamente, e que através dele, eu comecei a enxergar um novo mundo. Mas ele se foi, e eu não disse nada.

Eu corria com a forçada que ainda tinha, e então eu o reencontrei. Já não queria mais o abandonar nunca mais! Com o tempo as cicatrizes foram se recuperando, mas as memórias sempre estariam na minha cabeça. Kaio me mostrou tantas coisas, mas tudo o que ainda tinha dentro de mim era a dor. Ela sempre estaria no lugar mais fundo, onde ninguém, nada a poderia tirar. Mas ele sempre conseguiu fazer do nosso mundo um lugar muito melhor, entende Francisco?

- Então qual o problema?

- Os corpos estão sempre lá, aumentam a cada minuto. E o punidor nunca esquece.

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 10/05/2016
Reeditado em 10/05/2016
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