Paralisia da Gratidão

Paralisia da Gratidão

por E. Alyson Ribeiro

Não sei o que sou ou quem sou. Sei apenas que vivo, mas não de forma semelhante às demais pessoas. Ah! Quem me dera ser igual a todos. Eu vivo sobre uma cadeira de rodas, enquanto alguns andam... Vejo os seres humanos se comunicarem uns com os outros. Eu, no entanto, resmungo alguns sons.

Acredito ser um humano, pois a minha estrutura física é igual à estrutura deles. Tenho pernas, porém, não tão grossas e peludas como a do homem que diz ser meu papai. Desde que eu me lembro de ser algo vivente, este homem pede para eu dizer papai quando o vejo; não sei o que significa esses sons, mas tento pronunciá-los quando desejo que ele me responda. Os sons que tento emitir saem roucos e graves, dizer o “í” é algo muito difícil para mim. O pior de tudo isso é que babo muito. Eu não consigo fechar a minha boca; e minha cabeça pesa, por isso, procuro deixá-la apoiada em meu ombro. Como se isso não bastasse, as minhas pernas são muito finas e isso me dificulta caminhar.

Eu sempre visito um homem chamado Sheth. Ele se veste de roupa branca. A última vez que o vi ele me disse que as minhas pernas estão com os músculos muito rígidos e isso as impede de se alongarem, além disso, afirmou que os meus joelhos são cruzados. Esse homem que papai chama de médico afirmou que quando eu ando - e para mim isso é uma tentativa de imitar as pessoas - apenas as pontas dos meus pés tocam o chão. Esse simpático homem de branco disse, também, que eu tenho paralisia cerebral e a minha situação pode progredir. Não sei o que significa isso, mas sei que é por causa disso que o meu corpo começar a tremer e os meus olhos virarem.

As pessoas, por isso, viram-me de lado e seguram a minha cabeça, alguns gritam: “ele está com convulsão”. É horrível passar por isso. Como se não bastassem às dificuldades e constrangimentos, tenho vomitado após tentar, com muito esforço, engolir ou sugar algo que a mulher que me pede para chamá-la de “mã-mãe” me dá. Desde que eu me lembro de ser algo que vive, ela sempre me olha dizendo pausadamente as sílabas “mã-mãe” e também sempre sorri quando eu consigo emitir tais sons.

Mas acredito que sou feliz assim! Eu sou! Porém alguns me olham com pena, melancolia e, ao mesmo tempo, desprezo. Sou feliz, mas eu causo tristeza nas pessoas. Em contrapartida tento rir, contudo, raramente sou retribuído. Tento mexer os meus bracinhos curtos, mas sinto que isso causa dor em quem me vê. Tento falar, mas não consigo ser ouvido. Tento ser feliz, mas só recebo piedade.

Certa vez em minha casa ocorreu algo diferente, pois várias pessoas iguais estavam ali. Alguns seguravam copos com água vermelha, outros bebiam uma água amarela que soltava bolhas brancas, enfim, cada pessoa estava bebendo a sua água colorida preferida. Sobre a mesa, lembro-me de vários alimentos distintos e nada era fácil para eu comer. Os indivíduos que ali estavam afirmavam ser uma festa de Natal. Como eu babava muito sempre vinha alguém me limpar, ficava um pouco triste por não ser nem o papai e nem “mã-mãe”, pois os dois estavam recebendo os convidados. As pessoas que se revezavam para limpar a minha boca sempre vinham em minha direção e me olhavam sorrindo ao passar a fraldinha em mim. Eu também os via repugnar e quase vomitar de nojo. Aqueles que ali estavam sentiam pena de mim.

Teve um momento em eu que senti as minhas pernas molhadas. Um ser humano pequeno olhou para mim e começou a rir. Ele cantava ao mesmo tempo em que apontava o seu dedo em minha direção e dizia “ele fez xixi na roupa; ele é mijão!”. Fiquei estressado, não conseguia dizer nada para as pessoas que tapavam a boca para não rir. Eu não percebi sair àquela água fedida de meu corpo. Vi, ainda, que alguns me ignoravam e fingiam que nada ocorria. O tempo ia passando, mas papai e “mã-mãe” não vinham me limpar, fato que obrigou os indivíduos que ali estavam a começaram a tapar o nariz e a olhar feio para mim.

Isso me causou estresse... Depois só sei que tudo ficou escuro e meu corpo tremeu muito. Era uma convulsão. Eu caí da cadeira de rodas. Várias pessoas, portanto, vieram me acudir, outras, contudo, começaram a gritar horrorizadas. Aquele mesmo homem pequeno, agora, dizia: “Ele fez xixi... Tremeu de frio... Ele é babão”. Quando o meu corpo parou de tremer, olhei para a “mã-mãe” e ela estava chorando e agachada, minha cabeça repousava sobre as suas pernas. Ela me olhou e disse, enquanto limpava a minha boca: “Filho, não ligue para eles, mamãe vai te limpar, mamãe te ama”. Queria responder assim: “Eu sei ‘mã-mãe’, eu também te amo”, porém, apenas conseguia resmungar alguns sons e balançar os meus braços contorcidos.

“Mã-mãe”, apesar de tudo, pareceu entender os sons que pronunciei, pois ela se aproximou de mim e sobre o meu corpo entrelaçou os seus braços. Acredito que na língua dos homens isso se chama abraço e, ainda, encostou sua boca, que não babava igual a minha, próximo dos meus olhos e tocou-me com ela. Foi o toque mais gostoso que recebi de alguém.

Papai me pegou no colo, colocou-me na cadeira de rodas e me levou para o banheiro. Inclinando-me para frente, retirou a minha camiseta e com ela limpou a minha baba. Com a ajuda da “mã-mãe” fiquei em pé, apoiando-me nele. Em seguida a melhor mulher do mundo tirou a minha calça e a cueca. Senti frio. Estava nu. “Mã-mãe” ligou o chuveiro com a água quentinha e logo começou a lavar-me. Papai segurava-me pelos meus braços. Eu tinha medo quando passava o xampu porque às vezes caía em meus olhos e ardia. Era ruim quando eles não percebiam que eu resmungava por sentir dor nos olhos. Essa paralisia cerebral faz todo o meu corpo ficar estranho, por isso, compreendo o desespero deles para conter as minhas atitudes inusitadas e, pior, tentar descobri-las.

Por fim, ainda naquela noite, após eu ter tomado outro banho, vi um velhinho vindo em minha direção de roupa colorida e vários pelos no rosto. Trazia consigo algo que brilhava muito e fazia um barulho estranho. Entregou-me aquilo, mas o que eu achei mais lindo era o brilho do papel. Fiquei olhando aquela coisa brilhante e barulhenta, até que uma mulher dirigiu-se a mim tomou-me o papel brilhoso e barulhento e o rasgou. Foi nesse instante que eu pude perceber que dentro do papel tinha um chocalho. Achei legal o barulho do objeto, mas preferia ver o papel. Seu brilho era lindo, parecia o sorriso de “mã-mãe”.

Algo que eu achei muito interessante foi aquele homenzinho - que caçoou de mim por eu ter tremido e feito xixi - ter se aproximado de mim com outro homem menor do que ele. Estranho, não é? Contudo, o que me intrigou foi o fato do menor homem não se mexer, ele apenas acendia uma luz vermelha e emitia alguns ruídos. O menino dizia “vamu Super-Homem vamu fazê ele tremê!”. Achei engraçado o homenzinho ficar correndo em volta da minha cadeira de rodas segurando outro homem menor ainda. Como tentei sorrir, papai novamente veio limpar a minha baba.

No final do natal, quando as pessoas foram embora, tive sono. Papai e “mã-mãe” trocaram-me a roupa. Fui dormir. Naquela noite sonhei que podia ser compreendido. Ah! Que sonho lindo! Mesmo na cadeira de rodas as pessoas conseguiam entender as coisas que eu dizia. Claro, alguns ainda me ignoravam, mas eu nem ligava, pois eu podia cantar e ser ouvido, além de poder olhar para a “mã-mãe” e dizer “amo você”. Era magnífico poder provar para aquela mulher que eu conseguia amá-la. Outra parte maravilhosa do sonho foi quando eu comia e não sujava a minha camiseta. Nesse sonho, eu até mastigava e engolia normalmente. Eu podia pegar o copo com água, colocá-lo em minha boca e ingerir o líquido. São ações tão simples que os seres humanos normais podem fazer e, normalmente, não valorizam. Como eu queria ser normal por um dia. Como eu queria ser como aquele homenzinho que zombou de mim; eu queria andar como ele, falar correto, comer, não sentir dores, não ter que ir toda semana ao médico Sheth, não ter que ficar deitado por horas com uma mulher mexendo as minhas pernas, braços e cabeça.

Tenho vários desejos, porém, sei que raramente os poderei cumprir. Enquanto quero andar, falar bem, manter a postura e comer, algumas pessoas podem fazer tudo isso, mas não valorizam o dom que tem. Algumas até reclamam da vida, outras até se matam.

Eu engulo, com dificuldade, os meus remédios, todavia eu sei que eles não me farão ser normal. Luto com a vida para viver, mas existem pessoas que fazem da vida um luto. Fico triste por ficar aqui sentado em minha cadeira de rodas e não conseguir dizer tudo isso aos indivíduos. Na verdade, tenho até pena de algumas pessoas normais. Minha vida vai seguir sobre esta cadeira de rodas, contudo, aqui tenho o amor de papai e “mã-mãe”. Aqui sei que eles sempre estarão ao meu lado.

Então sim, sou feliz! Mas por ser deficiente não consigo demonstrar com clareza a minha felicidade, não consigo dizer as pessoas: “não sintam pena de mim, mas riam comigo”. Amo, apesar de tudo, a vida e queria que as pessoas pudessem amá-la também, ao invés de serem ingratas pelo o que têm.

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E Alyson Ribeiro
Enviado por E Alyson Ribeiro em 28/04/2016
Reeditado em 14/03/2020
Código do texto: T5618742
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