SARA
Da cozinha vinha o aroma do guefilte fish sendo preparado. A aurora acabara de romper, e curiosa adentrava pelos panos de vidro da janela e espiava aquela mulher entretida em sua tarefa, a cantarolar com voz afinada e doce, uma bela canção em hebraico.
O resto da casa dormia, indiferente ao fato das trevas da noite, já terem dado passagem, aos primeiros raios da manhã.
Sara tinha as mãos ocupadas no preparo da receita que herdara de sua bisavó, o guefilte fish, não era um prato fácil de se fazer, exigia tempo, paciência e prática para prepará-lo.
A idade em nada atrapalhava aquela mulher, nascida na Polônia. Sara, só tinha o aparência frágil, exibida num corpo pequeno e magro, seu espírito, no entanto, era valente, forte, determinado, inteligente, amoroso. Ninguém que a visse ali, acordada desde a antemanhã, aterefada em preparar o jantar comemorativo da Pessach para toda sua família, poderia imaginar que Sara há pouco mais de uma semana completara oitenta e cinco primaveras. Nada nela mostrava os anos que a certidão de nascimento dizia. Os olhos da cor do céu, eram donos de um brilho e uma vivacidade que encantava, os cabelos já não tinham mais a cor da amêndoa madura, com o tempo foram se tingindo da cor da neve, sempre que Sara penteava-os diante do espelho, lembrava da neve lá da Polônica, sua terra natal. As mãos enrrugadas, e pequenas, trabalhavam com agilidade e a experiência, de quem é afeito a labuta. E a voz tão melodiosa mais parecia uma cotovia cantando em gratidão à vida.
Sara termina o preparo do purê de maças com nozes, e o delicioso caldo de legumes com kneidalach. Em seguida coloca no forno o pão ázimo, o matza, feito sem fermento.
Feito isso, caminha até a sala de jantar, onde uma mesa imensa está coberta com rica toalha de linho impecavelmente branca. Depois, de dentro de um antigo itajer, retira fina porcelana branca que brilha de tão limpa, e de uma gaveta, pega antigo faqueiro de prata.
Sempre cantarolando, e com um leve sorriso a bailar nos lábios, Sara começa a montar a mesa para o Seder Pessach.
Quem visse aquela anciã alegre e cheia de vida, pela primeira vez, nem de longe poderia supor, as tristezas, os horrores e as perdas que Sara sofreu durante a sua existência.
Conheceu o terror da guerra, quando tinha apenas dez anos. Filha de um comerciante próspero e de uma mãe pianista, Sara e seus dois irmãos Jacob e Ismael, ambos mais velhos que ela, viviam na Polônia, numa casa elegante, e espaçosa, com jardim e pomar bem cuidados. Isso até o nazismo espalhar seus tentáculos venenosos sobre o povo judeu.
Faltava pouco mais de um mês, para ela completar onze primaveras, quando junto com toda sua familia foi enviada a um campo de concentração. Tudo que pertencia aos seus pais, foi confiscado pelos alemães. À sua família foi permitido levar apenas algumas peças de roupas. Na ingenuidade dos seus quase onze anos, Sara não podia imaginar o que a esperava, o medo rondava a imaginação da menina inteligente e sensível, mas nem de longe, ela podia imaginar o tamanho da tragédia que a esperava.
No olhar do pai, Sara via o pânico estampado, e a mãe forte e serena como sempre foi, assim permaneceu, feito um rochedo capaz de enxugar as lágrimas e acalmar os lamentos de toda família.
Os irmãos no auge dos seus dezoito e dezesseis anos, mostravam um misto de revolta e medo.
Assim que chegaram ao campo de concentração, a família foi separada, seus irmãos, por serem fortes e saudáveis, foram destinados aos trabalhos brutos, seu pai, mais idoso foi trabalhar nos reparos daquilo que os nazitas chamavam de acomodações, que na verdade mais pareciam pocilgas. Sua mãe, logo que os soldados nazistas ficaram sabendo, da grande pianista que era, foi obrigada a tocar para alegrar os jantares de Hitler e seus generais.
Sara ficou só. À ela foi destinado trabalhar na lavoura de batatas, que ficava ao lado do campo de concetração.
Tantos anos se passaram, e basta à Sara fechar os olhos, para ser capaz de reviver aqueles terríveis dias, meses e anos, (ao todo foram quase três anos) que passou como prisioneira de um lugar que pra ela foi o inferno na terra.
Sara passou tanta fome, que a pele grudou sobre os seus ossos, as bochechas sumiram do rosto, o cabelo rareou, as pernas de tão finas, quase não conseguiam sustentá-la. Havia dias, que para não ser escolhida para preencher a filas das câmaras de gás, Sara furava com um pedaço de arame a ponta de um dos dedos, e com a gota de sangue que surgia, espalhava com força sobre o que sobrara das maças do seu rosto, fazia isso, para mostrar-se corada, e com condições para o trabalho da lavoura. Foi assim, que muitas vezes, conseguiu ser polpada da morte trágica.
Viu tantos conhecidos, desconhecidos, familiares (avós, tios, primos, irmãos) serem escolhidos para entrarem no fatídico trem, e nunca mais regressarem.
Nunca apagou da memória, o dia em que estava capinando um canteiro de batatas, quando viu de longe, seus dois irmãos sendo levados para um vagão do trem da morte, ambos mal podiam andar, nada neles lembrava os rapazes fortes e saudáveis que eram antes de chegarem ali.
Foi a última vez que os viu. Seu pai teve um fim igual, Sara ficou sabendo pelo tio Samuel (irmão de seu pai) que ele havia sido escolhido para ocupar um lugar no temido trem, pois de tão fraco não conseguia mais trabalhar. De sua querida mãe, Sara, nunca mais teve notícias.
Sara arruma com carinho e bom gosto a mesa, em cuja volta sua família se reunirá, para o jantar da Pessach. As lembranças vivem com ela, e intuitivamente ela sabe que seus antepassados, estão ali, junto à ela.
Para demonstrar o amor imenso que sente por cada um deles, Sara preservou todas as tradições judaicas, que aprendeu com sua vó e com sua mãe.
Hojes seus quatro filhos (as) e seus seis netos devotam o mesmo carinho em cultivar as tradições do judaismo, que foram transmitadas a eles por Sara e seu querido marido, enquanto este viveu.
Ao terminar de arrumar a mesa, o esmêro estava presente em cada detalhe. Uma pequena toalha de linho branca tem a estrela de Davi bordada, e cobre um prato dourado, onde descansam os alimentos que serão usados nos rituais do jantar da Pessach, e à frente de cada lugar da mesa, descansa o Hagada Shel, o livro de rezas, para que seja lido por cada membro da família. O vinho kosher aguarda sobre a mesa, ele é parte importante no ritual da Pessach, será com ele que as sete pragas do Egito, serão lembradas.
Com imensa gratidão, própria de uma alma generosa como a dela, que mesmo tendo passado por grandes sofrimentos, soube se reerguer, perdoar e seguir em frente, Sara sorri feliz por estar presente junto aos seus entes queridos, em mais uma festa da Pessach. Seus passos ecoam sobre o piso de madeira antiga, e se dirigem de volta para a cozinha, onde do forno, ela tira uma assadeira enorme cheia de matza, o pão ázimo, feito sem fermento.
Diante da matza que tanto representa ao seu povo, Sara, mais uma vez agradece do fundo do coração a Deus, por tê-la poupado, da morte nos campos de concentração, e por tê-la ajudado a não guardar ódio, nem mesmo mágoas, daqueles que dizimaram toda sua família. E principalmente agradece por todo sofrimento que ela viveu, não ter sido capaz de tirar dela: a fé, a força, a coragem e a alegria de viver.
Estava tudo pronto para mais um Seder Pessach, e ela sentia-se mais do que pronta, pois estava viva, e profundamente feliz, por tudo que a vida naqueles oitenta e cinco anos, lhe permitiu viver.
(Imagem: Lenapena - ontem tive a alegria de ser convidada, mais uma vez, para participar de um Jantar de Pessach, e a inspiração nasceu ali)
Da cozinha vinha o aroma do guefilte fish sendo preparado. A aurora acabara de romper, e curiosa adentrava pelos panos de vidro da janela e espiava aquela mulher entretida em sua tarefa, a cantarolar com voz afinada e doce, uma bela canção em hebraico.
O resto da casa dormia, indiferente ao fato das trevas da noite, já terem dado passagem, aos primeiros raios da manhã.
Sara tinha as mãos ocupadas no preparo da receita que herdara de sua bisavó, o guefilte fish, não era um prato fácil de se fazer, exigia tempo, paciência e prática para prepará-lo.
A idade em nada atrapalhava aquela mulher, nascida na Polônia. Sara, só tinha o aparência frágil, exibida num corpo pequeno e magro, seu espírito, no entanto, era valente, forte, determinado, inteligente, amoroso. Ninguém que a visse ali, acordada desde a antemanhã, aterefada em preparar o jantar comemorativo da Pessach para toda sua família, poderia imaginar que Sara há pouco mais de uma semana completara oitenta e cinco primaveras. Nada nela mostrava os anos que a certidão de nascimento dizia. Os olhos da cor do céu, eram donos de um brilho e uma vivacidade que encantava, os cabelos já não tinham mais a cor da amêndoa madura, com o tempo foram se tingindo da cor da neve, sempre que Sara penteava-os diante do espelho, lembrava da neve lá da Polônica, sua terra natal. As mãos enrrugadas, e pequenas, trabalhavam com agilidade e a experiência, de quem é afeito a labuta. E a voz tão melodiosa mais parecia uma cotovia cantando em gratidão à vida.
Sara termina o preparo do purê de maças com nozes, e o delicioso caldo de legumes com kneidalach. Em seguida coloca no forno o pão ázimo, o matza, feito sem fermento.
Feito isso, caminha até a sala de jantar, onde uma mesa imensa está coberta com rica toalha de linho impecavelmente branca. Depois, de dentro de um antigo itajer, retira fina porcelana branca que brilha de tão limpa, e de uma gaveta, pega antigo faqueiro de prata.
Sempre cantarolando, e com um leve sorriso a bailar nos lábios, Sara começa a montar a mesa para o Seder Pessach.
Quem visse aquela anciã alegre e cheia de vida, pela primeira vez, nem de longe poderia supor, as tristezas, os horrores e as perdas que Sara sofreu durante a sua existência.
Conheceu o terror da guerra, quando tinha apenas dez anos. Filha de um comerciante próspero e de uma mãe pianista, Sara e seus dois irmãos Jacob e Ismael, ambos mais velhos que ela, viviam na Polônia, numa casa elegante, e espaçosa, com jardim e pomar bem cuidados. Isso até o nazismo espalhar seus tentáculos venenosos sobre o povo judeu.
Faltava pouco mais de um mês, para ela completar onze primaveras, quando junto com toda sua familia foi enviada a um campo de concentração. Tudo que pertencia aos seus pais, foi confiscado pelos alemães. À sua família foi permitido levar apenas algumas peças de roupas. Na ingenuidade dos seus quase onze anos, Sara não podia imaginar o que a esperava, o medo rondava a imaginação da menina inteligente e sensível, mas nem de longe, ela podia imaginar o tamanho da tragédia que a esperava.
No olhar do pai, Sara via o pânico estampado, e a mãe forte e serena como sempre foi, assim permaneceu, feito um rochedo capaz de enxugar as lágrimas e acalmar os lamentos de toda família.
Os irmãos no auge dos seus dezoito e dezesseis anos, mostravam um misto de revolta e medo.
Assim que chegaram ao campo de concentração, a família foi separada, seus irmãos, por serem fortes e saudáveis, foram destinados aos trabalhos brutos, seu pai, mais idoso foi trabalhar nos reparos daquilo que os nazitas chamavam de acomodações, que na verdade mais pareciam pocilgas. Sua mãe, logo que os soldados nazistas ficaram sabendo, da grande pianista que era, foi obrigada a tocar para alegrar os jantares de Hitler e seus generais.
Sara ficou só. À ela foi destinado trabalhar na lavoura de batatas, que ficava ao lado do campo de concetração.
Tantos anos se passaram, e basta à Sara fechar os olhos, para ser capaz de reviver aqueles terríveis dias, meses e anos, (ao todo foram quase três anos) que passou como prisioneira de um lugar que pra ela foi o inferno na terra.
Sara passou tanta fome, que a pele grudou sobre os seus ossos, as bochechas sumiram do rosto, o cabelo rareou, as pernas de tão finas, quase não conseguiam sustentá-la. Havia dias, que para não ser escolhida para preencher a filas das câmaras de gás, Sara furava com um pedaço de arame a ponta de um dos dedos, e com a gota de sangue que surgia, espalhava com força sobre o que sobrara das maças do seu rosto, fazia isso, para mostrar-se corada, e com condições para o trabalho da lavoura. Foi assim, que muitas vezes, conseguiu ser polpada da morte trágica.
Viu tantos conhecidos, desconhecidos, familiares (avós, tios, primos, irmãos) serem escolhidos para entrarem no fatídico trem, e nunca mais regressarem.
Nunca apagou da memória, o dia em que estava capinando um canteiro de batatas, quando viu de longe, seus dois irmãos sendo levados para um vagão do trem da morte, ambos mal podiam andar, nada neles lembrava os rapazes fortes e saudáveis que eram antes de chegarem ali.
Foi a última vez que os viu. Seu pai teve um fim igual, Sara ficou sabendo pelo tio Samuel (irmão de seu pai) que ele havia sido escolhido para ocupar um lugar no temido trem, pois de tão fraco não conseguia mais trabalhar. De sua querida mãe, Sara, nunca mais teve notícias.
Sara arruma com carinho e bom gosto a mesa, em cuja volta sua família se reunirá, para o jantar da Pessach. As lembranças vivem com ela, e intuitivamente ela sabe que seus antepassados, estão ali, junto à ela.
Para demonstrar o amor imenso que sente por cada um deles, Sara preservou todas as tradições judaicas, que aprendeu com sua vó e com sua mãe.
Hojes seus quatro filhos (as) e seus seis netos devotam o mesmo carinho em cultivar as tradições do judaismo, que foram transmitadas a eles por Sara e seu querido marido, enquanto este viveu.
Ao terminar de arrumar a mesa, o esmêro estava presente em cada detalhe. Uma pequena toalha de linho branca tem a estrela de Davi bordada, e cobre um prato dourado, onde descansam os alimentos que serão usados nos rituais do jantar da Pessach, e à frente de cada lugar da mesa, descansa o Hagada Shel, o livro de rezas, para que seja lido por cada membro da família. O vinho kosher aguarda sobre a mesa, ele é parte importante no ritual da Pessach, será com ele que as sete pragas do Egito, serão lembradas.
Com imensa gratidão, própria de uma alma generosa como a dela, que mesmo tendo passado por grandes sofrimentos, soube se reerguer, perdoar e seguir em frente, Sara sorri feliz por estar presente junto aos seus entes queridos, em mais uma festa da Pessach. Seus passos ecoam sobre o piso de madeira antiga, e se dirigem de volta para a cozinha, onde do forno, ela tira uma assadeira enorme cheia de matza, o pão ázimo, feito sem fermento.
Diante da matza que tanto representa ao seu povo, Sara, mais uma vez agradece do fundo do coração a Deus, por tê-la poupado, da morte nos campos de concentração, e por tê-la ajudado a não guardar ódio, nem mesmo mágoas, daqueles que dizimaram toda sua família. E principalmente agradece por todo sofrimento que ela viveu, não ter sido capaz de tirar dela: a fé, a força, a coragem e a alegria de viver.
Estava tudo pronto para mais um Seder Pessach, e ela sentia-se mais do que pronta, pois estava viva, e profundamente feliz, por tudo que a vida naqueles oitenta e cinco anos, lhe permitiu viver.
(Imagem: Lenapena - ontem tive a alegria de ser convidada, mais uma vez, para participar de um Jantar de Pessach, e a inspiração nasceu ali)