Encanto das Águas (Parte II)

LARGO DO PELOURINHO

Quando escolhi Salvador para objeto de pesquisa, não tinha ideia do quanto seria difícil selecionar uma única igreja ou uma única casa dentre as milhares de opções disponíveis naquele universo a que batizaram de Pelourinho. Embora o nome não remeta a algo bom, o lugar é belíssimo, com suas construções antigas, lojas, artesanatos, pessoas sorridentes, tambores do Olodum e a magia que Jorge Amado retratou com beleza em suas obras que, confesso, li muito pouco. Eu e Cícero descíamos a ladeira, ele cumprimentando várias pessoas e eu encantado com aquela coisa toda, tão diferente do que estava acostumado a ver no Rio. O objetivo era conhecer a Igreja do Rosário dos Pretos, da qual ele fizera muita propaganda, dizendo ser uma das mais belas da cidade. Chegamos bem rápido ao largo, onde notei a presença de muitos turistas caminhando, tirando fotos e amontoados em torno de um barulho que logo reconheci como sendo o de tambores, cavaquinhos e violão. Cícero ia a minha frente, abrindo caminho entre as pessoas, parecendo estar bem acostumado àquele tumulto. Eu, porém, fiquei ainda parado um instante, tentando distinguir um som que me pareceu familiar entre aqueles milhares de acordes desencontrados. Me aproximei dos turistas, tentei levantar um pouco para ver o que estava acontecendo, mas a fileira de gente me impediu de observar o que se passava no centro do círculo. Avistei Cicero já nas escadarias da igreja e resolvi deixar a curiosidade para outro momento.

-O que estava fazendo?

-Tentando observar o que estava acontecendo no meio daquele tumulto...

-Deve ser alguma roda de samba. De vez em quando acontece algo do tipo e os turistas adoram.

-É sempre tão animado assim?

-Estamos em Salvador, meu caro. Animação é o que não falta a esse povo. – Cícero foi entrando pelas portas de madeira e o segui em silêncio, pois as palavras me faltaram quando me vi diante da beleza envolta de uma simplicidade e paz daquela igreja antiga. – Conhece algo da história da igreja?

-Bom, conheço só o que aprendi na faculdade. É uma construção do século XVIII, tendo sido construída por uma irmandade de escravos forros devotos de Nossa Senhora do Rosário, com a autorização do arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide.

-Exatamente. O sincretismo religioso é muito forte aqui, já que se trata de uma construção fruto do trabalho e da fé de ex escravos, herdeiros das religiões de matriz africana e influenciados pelo catolicismo dos colonizadores. Apesar de sua arquitetura simples, é linda e muito visitada. – Cícero corria a igreja, apontando santos, os altares neoclássicos e azulejos portugueses. Eu tirava fotos, fazia anotações e tentava não me perder diante de tanta informação. Quando terminamos, sentei em um dos bancos e tentei lembrar das orações que mamãe havia me ensinado e que me esqueci com o passar dos anos. O ambiente de paz e espiritualidade me fez retornar ao tempo em que acompanhava minha vó a missa, rezava ajoelhado e devoto, não tirando os olhos do Jesus crucificado talhado em madeira que ficava diante de nós. O barulho do lado de fora ainda era intenso e a quantidade de turistas aumentava a cada minuto. Levantei do banco e saímos os dois, deixando para trás as grades enfeitadas com fitas do Senhor do Bonfim coloridas. A rodinha de turistas havia diminuído, mas o som continuava muito alto e minha curiosidade voltou a perturbar os meus sentidos, me levando a aproximar-me novamente e, dessa vez, empurrar educadamente algumas pessoas para enxergar o que se passava. Fiquei surpreso com o que avistei e foi inevitável não esboçar um sorriso de satisfação. Finalmente descobri o som familiar que me incomodou ao chegar, era a voz de Beatriz que, vestida de branco, ostentando algumas pulseiras e sambando com sutileza, cantava uma música que logo reconheci como sendo uma das preferidas de papai, Coisinha do Pai. Embora não fosse muito amigo de rodas de samba, fiquei ali parado, batendo os pés ao ritmo da música, rezando mentalmente que ela me enxergasse, me reconhecesse, ou apenas me sorrisse. Cícero chegou perto.

- Então você a encontrou...

-Que coincidência, não é?

-Na verdade, não...- O olhei intrigado.

-Você sabia?

-Claro! A roda de samba dela é famosa. Sempre trago turistas para assisti-la.

-E porque não me disse nada?

-Não viemos aqui para isso, Carioca. Viemos visitar as igrejas, os casarões...

-Eu sei, mas...- Antes que eu pudesse terminar, Cícero me atalhou.

-Vamos, ainda temos muito que ver...

-Não podemos ao menos cumprimenta-la?

- Ela está ocupada demais para isso, além disso, podemos vê-la mais tarde lá no bar.- A piscadela cúmplice que me lançou foi argumento suficiente para me demover da ideia de ficar ali escutando-a cantar. Subimos a ladeira novamente, visitamos alguns pontos turísticos, incluindo o Elevador Lacerda, a praça da Cruz Caída e a famosa Cubana, onde tomamos sorvete e ficamos jogando conversa fora admirando a vista da Baía de Todos os Santos, uma espécie de entorpecente para os olhos. Lembrei-me de fotografar tudo, pois mamãe me fez prometer que levaria Salvador para ela, nem que fosse por fotos. Cícero me falou um pouco sobre os locais, apontando curiosidades importantes, como o fato da Cruz Caída ser uma homenagem à igreja que fora demolida para dar espaço a um trilho de bonde. O progresso, com sua desmedida intermitência, desbancou a fé. Mario Cravo Jr foi genial ao retratar tal fato de forma tão sutil. Ficamos ainda algum tempo sentados, olhando a vista, até que resolvi puxar um assunto inevitável e do qual ele havia fugido durante todo o passeio.

-Cícero...

-Sim?

-Posso perguntar ?

-Pergunte o que quiser...

-Porque saímos tão rápido do bar ontem? – Concertando-se na cadeira, ela quis parecer o mais crível possível.

-Ora, o show acabou, não tínhamos mais o que fazer...

-Foi por causa do marido dela. Eu notei que você ficou desconfiado quando ele se aproximou.

-Samuel, posso te dar um conselho? Esquece isso!

-Mas por quê?

-Isso não é da sua conta, não tem porque se meter.- Mesmo sem ser grosseiro, Cícero foi duro o bastante para que eu percebesse que não era boa ideia dar prosseguimento àquela história. Apesar de curioso, sabia ser prudente quando necessário e a hora era de ficar em silêncio. Ficamos alguns minutos parados um diante do outro, até que resolvi voltar para o hotel e descansar um pouco antes de estar pronto para a noite.

Carol S Antunes
Enviado por Carol S Antunes em 13/04/2016
Reeditado em 29/10/2022
Código do texto: T5604022
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.