Memórias de uma Poetisa
Meu aniversário de 80 anos chegou, e veio mais rápido do que eu imaginava. Parece que foi ontem que eu ainda tinha 25 anos e fazia planos para dominar o mundo. Não o dominei, é claro, mas fiz algo que considerava igualmente impossível: encontrei meu lugar nele, sem precisar modificá-lo de forma tão grandiosa. Guardei as economias dos meus anos de trabalho no serviço público e as usei para montar minha própria editora de livros, realizando meu sonho antigo de ganhar a vida participando e alimentando os sonhos de jovens escritores talentosos que aguardavam a chance de ver suas obras na prateleira de uma livraria. Abandonei as revoltas insanas do meu impetuoso coração adolescente e encontrei o amor da minha vida: um homem gentil e paciente, que se mostrou um porto seguro onde atracar minha alma sempre inquieta. Apaixonado pela vida e determinado em todos os projetos que iniciava, era dono de uma bem-sucedida empresa multinacional, o que nos dava boas desculpas para viajar pelo mundo e viver sempre uma aventura diferente. Até que o tempo inexorável ultrapassou nosso vigor na corrida da vida e nos aposentamos tranquilamente num belo chalé de madeira cercado de florestas montanhosas e próximo a um lago.
Hoje estou sentada em minha cadeira de balanço sobre uma almofada púrpura, apreciando a vista do lago. Duas de minhas netas – as meninas da minha filha mais nova – estão me visitando, e ouço seus gritinhos animados vindo de algum dos quartos. A mãe delas e meu outro filho estão na cidade comprando comida e bebida para comemorar meu aniversário. Meus outros netos, já crescidos, vêm apenas no final de semana, presos na correria de suas próprias rotinas.
Um pássaro canta do lado de fora da janela, e suas notas agudas me fazem engolir em seco e pensar em como será este segundo aniversário que passo sem meu amado. Mas minhas reflexões logo se perdem quando a mais velha das meninas, Melissa, de 14 anos, entra correndo na sala com um caderno velho e empoeirado na mão:
- Vovó, vovó! Olha só o que nós encontramos!
Melissa coloca o caderno em meu colo, ansiosa, mas não preciso analisar com muita atenção para reconhecer meu velho companheiro. De capa florida, páginas amareladas e coberto de rabiscos em uma letra feia e impaciente, ali estava meu caderno de poesia. Todos os meus segredos da juventude estavam expostos em forma de versos naquelas folhas absurdamente antigas.
- Meu caderno de poesia! – exclamo, num misto de nostalgia e surpresa. – Onde foi que o encontraram?
Sofia, a mais nova, de 9 anos recém-completos, entra na sala atrás da irmã, aproxima-se de mim com passos cautelosos e me lança um sorriso travesso:
- Encontramos na gaveta do seu quarto, vovó. Estávamos procurando um lugar para esconder seu presente de aniversário. Desculpe.
Sofia baixa os olhos, provavelmente esperando que eu lhe dê uma bronca por ter mexido em minha gaveta. Mas eu não me importo. Viúva, mãe de dois filhos e avó de quatro netos, acho que a idade levou embora aquela urgência por privacidade que me consumia na juventude.
- Está tudo bem, querida. Não se preocupe.
Sofia dá um suspiro aliviado, mas Melissa, longe de abrigar em seus olhos qualquer sinal de culpa, lança-me um olhar de puro entusiasmo.
- Vovó, é verdade que foi a senhora que escreveu todos esses poemas bonitos?
Fico paralisada por um momento, meus olhos verdes tomados de surpresa. Uma pontada de orgulho se agita em meu peito ao ver minha menina se interessar por poesia. Acho que os dotes líricos pularam uma geração, pois nenhum de meus filhos jamais demonstrou interesse pela arte literária. Seja como for, aqueceu minha alma saber que a chama poética ainda estava acesa em minha família.
- Sim, querida. Fui eu que escrevi. Há muitos, muitos anos, quando eu era apenas um pouco mais velha que você.
Os olhos amendoados que ela herdou da mãe e do avô se arregalam ainda mais. Então, ela pega o caderno de volta e folheia-o vorazmente até parar em algum lugar entre o meio e o final, num velho poema de amor sobre manhãs de sol e sonhos traiçoeiros que eu nem lembrava mais um dia ter escrito.
- Eles são tão lindos, vovó! Tão lindos! E tão românticos! – ela corre os olhos de menina-mulher sobre os versos outra vez, como se estivesse tentando decorá-los, ou absorvê-los – São sobre o vovô, não são?
A pergunta inocente da minha neta faz outra pontada atravessar meu peito. Dessa vez, de saudade, de nostalgia, de amor, com uma dolorosa pitada de culpa. Minha inspiração era algo mais complexo, mais antigo e mais intenso do que meu casamento com o homem que sempre chamei de amor da minha vida. Talvez complexa demais para fazer minhas jovens netinhas compreenderem. Mas já sou velha demais para guardar segredos e em hipótese nenhuma iria mentir para minhas doces meninas.
- Não, querida. – admiti, baixando os olhos, como se aquele segredo ainda pudesse me assombrar, mesmo depois de tantos anos – Eles não são sobre o seu avô. Na verdade, eu os escrevi vários anos antes de conhecê-lo.
Sofia mostra-se tão desinteressada quanto esperaria de uma garotinha de 9 anos, mas Melissa fica perplexa por alguns instantes, até que se recupera e faz a pergunta que eu esperava. Que eu temia.
- Então para quem são os poemas, vovó?
Meu corpo treme discretamente, do dedinho enrugado do pé até o último fio de cabelo branco. Imagens invadem minha mente sem pedir autorização. Um par de olhos escuros esculpidos num rosto de mármore. Palavras sussurradas ao pé do ouvido em madrugadas proibidas. E aquela palpitação que eu jurava ter se perdido ao longo dos anos ainda estava lá, tão intensa quanto sempre foi, me lembrando que alguns sentimentos não têm idade e não conhecem conceitos como ausência ou distância.
- Você não o conhece, querida. É alguém que eu conheci há muito tempo. Alguém que foi muito especial para a vovó.
- Um namorado? – Por Deus! Quando foi que as crianças ficaram tão sagazes? Vai ser detetive, essa menina, do jeito que gosta de fazer perguntas. Ou poeta.
Sim. Gostaria de poder dizer que sim, sim, foi um antigo namorado, o primeiro namorado, alguém com quem compartilhei o despertar do amor adolescente e então a faísca se apagou e cada um seguiu com sua vida. Mas não foi exatamente assim que aconteceu.
- Não exatamente. – hesito. Minha confusa história de amor não é exatamente o tipo de entretenimento que minha filha esperava que as meninas tivessem na Casa da Vovó. Mas as letras sempre foram meu lado mais rebelde e, a despeito de mim, continuei tagarelando como uma velha, ironias à parte – Foi alguém que eu amei muito, e que também gostou de mim do seu próprio jeito, mas nunca pudemos ficar juntos como um casal. Quando o conheci, ele já tinha a vida dele, as histórias dele, um lugar para ocupar no mundo. Vivemos alguns momentos bons juntos, e é isso o que importa, é isso que eu guardei e que tentei transformar em poesia. Ele nunca foi meu namorado, está mais para um muso. – hesito outra vez – Vocês sabem o que é um muso?
- Eu sei! – grita Sofia, recuperando o entusiasmo. – Deve ser uma musa-macho!
Sorrio diante da resposta inteligente da minha neta caçula, satisfeita ao constatar que provavelmente aprendera alguma coisa sobre Musas na aula de Literatura. Ainda existe alguma esperança para a educação nesse país, ao que parece. Ou ela andou lendo os livros do pai outra vez, o que me deixa mais orgulhosa do que surpresa. Minhas meninas sempre tiveram uma curiosidade insaciável. O que justificava a pergunta que Melissa fez em sequência.
- Se vocês nunca foram namorados, por que escreveu tanto sobre ele?
Hesitei de novo, batalhando entre as lembranças que me embebiam e meu papel como avó responsável. Quantos anos eu tinha quando fui iniciada no mundo da poesia? Certamente, menos do que Melissa tem hoje. Quantos anos levei para compreender o verdadeiro poder dos versos? Acho que até hoje não o compreendi em sua totalidade.
- Justamente por isso que escrevi tanto. Eu sabia que não poderia ficar perto dele por muito tempo, então, precisava de um jeito de fazer com que esses momentos durassem para sempre. Esse homem que eu tanto amei, esse muso, morreu há muitos anos, antes de vocês duas nascerem, mas a poesia o tornou imortal, porque cada vez que alguém lê aqueles versos ele volta à vida, com seus olhos escuros e seu abraço apertado e todos os traços que o faziam diferente das outras milhares de pessoas que conheci na vida. Já que não pude desfrutar mais de sua presença, imortalizei sua ausência da melhor forma que consegui.
Ergui os olhos e encarei minhas netas, certa de que, a essa altura, as duas pensavam que sua velha avó havia finalmente enlouquecido. Sofia abraçava um coelho de pelúcia que encontrara jogado no tapete da sala, meio caminho entre distração e atenção, e Melissa parecia à beira das lágrimas. Esqueci que na modernidade de hoje as meninas da idade dela já estão naquela fase de achar que entendem o amor. Eu tenho 80 anos e ainda não entendi. Mas não vou dizer isso a ela.
- Por que a senhora nunca escreveu sobre o vovô?
Nem queria imaginar o quão rápido aquela mente surpreendente de 14 anos processava as baboseiras nostálgicas que saíam de minha boca tagarela. Ela ainda segurava firme o caderno amarelado, agora aberto em outra página, num breve poema sobre corações solitários e despedidas. Agora que meu segredo já estava escancarado diante de seus corações curiosos e infantis, só me restava continuar.
- Porque eu nunca precisei. Antes de conhecer seu avô, meu coração estava sempre inquieto, com medo das despedidas, com medo do que iria acontecer amanhã. Quando ele apareceu na minha vida, eu me aquietei. Não que não tenhamos vivido momentos apaixonados. Eu amei muito o seu avô, ele era o homem da minha vida, mas era um amor diferente. Era um amor presente, um amor constante, um amor revelado em cada pequeno detalhe do dia-a-dia. Eu não precisava escrever porque estávamos o tempo todo vivendo uma poesia. Ele se tornava imortal para mim cada vez que me beijava no canto da bochecha e perguntava como foi meu dia de trabalho, cada vez que fechava meus olhos e só me deixava abri-los depois de colocar em minhas mãos as passagens para nosso novo destino de férias, cada vez que acordava antes de mim e abria a cortina dizendo que estava um ótimo dia para caminharmos na praia, cada vez que dizia que queria passar todos os dias da sua vida ao meu lado. – nessa hora, meus olhos já estavam molhados, e meu coração se contraía ao lembrar do corpo já enfraquecido do meu marido estirado na cama, das últimas palavras que me disse antes de partir: “Sinto muito por deixá-la sozinha. Prometo que vou ficar te esperando e que ainda vamos fazer muitas viagens juntos. Eu te amo”. – Ele se tornava imortal em cada foto de nós dois espalhada pela casa, em cada noite que dormimos abraçados, em cada uma das milhões de vezes que disse que me amava. Não havia nada que eu pudesse escrever sobre alguém cuja presença era pura poesia.
Sofia largou o coelho e veio sentar-se no meu colo. Só então percebi que as lágrimas estavam escorrendo intensamente no meu rosto. Melissa fechou o caderno e pôs sua mão branca e lisa sobre a minha, enrugada e temperada pelo sol.
- Desculpe, vovó. Não queríamos fazê-la chorar.
Não consegui responder. Apenas sequei os olhos e lancei um fraco sorriso para ela, tentando assinalar que estava tudo bem.
- Vovó... – começa Sofia, timidamente – Mas agora que o vovô não está mais aqui, será que podemos escrever um poema pra ele?
Quase começo a chorar de novo. Minha pequena menina entendeu muito mais do que eu iria imaginar. Outro dos mistérios da poesia, o jeito que ela vai se aninhando nos corações, mesmo nos que ainda são tão pequenos.
- Claro que podemos, meu amor. Tenho certeza de que ele vai ficar muito feliz. – afasto Sofia com carinho e, lentamente, me levanto da cadeira de balanço em busca de uma caneta. Sempre tenho uma por perto, só preciso lembrar onde a deixei. – Vocês me ajudam?
- Claro, vovó! – gritam as duas em uníssono, cada uma segurando uma de minhas mãos. E seguimos para a mesa da sala, onde vejo o amor da minha vida servindo de inspiração para o primeiro poema das minhas netinhas.
Não consigo imaginar um presente de aniversário melhor!