Anoitecer

Anoitecer

Sentada observava placidamente, quase sem respirar as mãos entrelaçadas. Seus dedos doíam de tanto apertar, e a rigidez dos lábios generosos denunciavam algo serio que lhe ia à alma. Jamais em tempo algum ela havia vivenciado algo tão inusitado. Seu peito era caminho um aberto para a dor, um rio de sangue deglutinava e trazia um gosto ferroso à boca. Aquele desejo absurdo de nada fazer, aquele desdesejo de continuar pensando ou ainda tentar entender. Ela não sabia se o que trazia no peito era ciúme ou despeito, ou amizade, mas tinha em sua alma a certeza que não era morte nem dor. Nas suas veias não parecia correr sangue, mas um líquido qualquer impassível a qualquer vontade ou reação. O horror da ruptura de um laço tão profundo de amor, mas que antes de tudo era o mais profundo desejo de amizade. Não existia mais. IMPOSSÍVEL! Nem em seus mais loucos sonhos e devaneios nada assim lhe ocorreria. Sentia que poderia escrever um longo romance recheado de insuspeitas traições, mas aquela forma de desamor jamais a teria enlaçado. Alguma coisa corria em suas entranhas. Um objeto bloqueava suas vias e ela, desesperada, tentava respirar o suficiente para somente continuar viva. Sentia que precisava entender, e entender como e por que tudo havia acontecido e chegado aquele ponto. Precisava reunir as últimas chamas de vontade e levantar. Minutos se passaram até conseguir levantar a cabeça e olhar pela vidraça da janela fechada. A muito os últimos raios de Sol haviam visitado a sala, e a luminosidade da Lua, por mais que se esforçasse, não era suficientemente forte para iluminar o lugar. Chovia, e estranhamente a chuva se parecia com as lágrimas que havia derramado por tempo sem fim; tanto tempo que não saberia precisar, só sabia por poder senti-las secas em seu rosto marcado pela dor e surpresa. O barulho surdo da chuva abafado pela janela fechada ecoava em seus tímpanos como um tambor desgovernado, uma calha mais forte derramava um jato de água sobre o passeio do prédio, e o vento acoitava junto com a chuva os carros estacionados no pátio. Ela era incapaz de reconhecer nenhum outro som além daqueles a sua volta. Sumir. Seria a saída. Mas nenhum lugar no mundo responderia a sua angustia e insuspeição. Ao mesmo tempo ela não tinha o direito de se fazer de lograda, ela sabia. Não fora enganada nem levada ao inferno como uma virgem inocente guiada por um demônio vestido de anjo. Anjo. Essa era a descrição. Um anjo de sorriso largo e franco, olhos pequenos e sobrancelhas arqueadas. Perspicaz e audaz. Corajoso e fino. Mãos longas, bem cuidadas, dedos finos de artista. Andar anguloso, rápido como uma raposa. Sem maldade nenhuma ela diria que aquele moço moreno era sua vida e seu meu ideal de pessoa. Bastava um olhar e ambos sabiam exatamente o que desejavam, o que sentiam e em pensavam. Milhares de vezes seus desejos se encontravam e pareciam um só, e simultaneamente essas vontades eram declaradas deixado-os sem palavras... Aquela similitude absurda em tudo, aquele encontro de sentimentos tão raros... Almas que se tocam sem mesmo se conhecerem. Era assim. Apenas assim. Tudo no entorno era complemento, era possível estarem rodeados de gente numa festa ou rua, ou cinema, ou praça e conseguir estar sós, por que tudo que bastava era o olhar, e cheiro e a visão do outro. Não que fosse um segredo, mas apenas um mistério que juntos resolveram compartilhar... E era uno e apenas a eles pertencia. Naquele estado de coisas, suas vidas caminhavam separadas e ao mesmo tempo cada segundo do dia era preenchido com a longa espera do encontro... Por mais fugazes que fossem eram sólidos e perfeitos. Cada prenda, cada sorriso e cada beijo eram tão preciosos quanto cada pérola esquecida que existia no mais profundo oceano. E nunca, em momento algum tinha havido inscostância. As despedidas lhe eram caras, por que ela tinha que sorrir... Mas doíam tanto que levavam junto a cada vez um pedaço do seu coração. Quantas vezes não acompanhara seu retorno, esgueirada atrás da cortina fechada amando cada passo, e rezando, mesmo antes de sua chegada que não tardasse voltar. Naquela confusão de sentimentos ela sabia que ele voltava, e contava nos dedos os segundos para que o telefone tocasse e sua voz do outro lado a dizer que já sentia saudade. Aonde tanto amor a havia levado? Essa pergunta agora ela passava o dia formulando. Mesmo sabendo que as respostas estavam ali mesmo: no sofá, na cozinha, na cama larga e forte do meu quarto que por infindáveis vezes serviu de lar e pequeno paraíso, ou ainda no pequeno sofá do seu gabinete. Ela precisava estar sempre viva, atenta, independente da hora e do lugar, seu amor era sagrado e só a ela dizia respeito... Tanta dor! Antes tivesse gritado ao mundo e colocado a prova à taça de fel amargo, que para ela, era o mais doce mel que vida lhe oferecia... E era assim. Não podia ser de outra forma, era o que ela tinha, era o que podia ter, apenas o que lhe era dado. Podia, mas não devia reclamar.

Nesse dia de chuva seu mundo rachado de pecados ruiu. Ela sabia que era uma questão de tempo, que era um encontro com data certa para acabar, mas havia vivido cada momento de uma forma espetacular, absorvendo cada minuto de conhecimento e experiência como uma discente obediente.

Um longo piscar quase foi suficiente para tirar-la daquele torpor embalado pela languidez da chuva lá fora. Não era por reagir, mas precisava levantar e dar cabo do ultimo presente recebido. Uma pequena caixa de correio continha a chave de uma certeza, de algo que nunca em momento algum ela havia duvidado... Passaria pelo horror de ver o que seria o símbolo de uma ruptura eterna, sem questionamentos, sem palavras e sem volta. Observou a vidraça como um espelho. Seu rosto cheio emoldurado pelo cabelo cacheado era a visão de uma alma perdida. Segurou o envelope pardo nas mãos retirando de entro a causa nefasta do buraco sem fundo no seu peito.

Em algum lugar um havia um violão sem cordas.

Malibe, 14 de junho de 2004.