O grunge

Em seu quarto, pequeno e abafado, sentia-se bem por longos momentos pingando uma torneira sempre mal fechada quando enfim o disco terminava no prato ainda rodando no toca discos. Estava adormecido, os cabelos negros e um pouco ensebados e compridos nos olhos, assim atirado no chão de taco empoeirado. A janela estava cerrada para a rua além do muro alto. Ressonava um pouco alto, vencido pela embriaguez do vinho gelado, doce e ordinário, daqueles de garrafas de plástico comprado no supermercado. Tinha se lembrado que a mãe queria ele trabalhando naquele supermercado, como empacotador. Um homem calvo, de testa grande, nariz adunco e queixo muito grande dissera que tinha que cortar as madeixas, hum, hum. Não, não, e voltou para casa, a calça jeans surrada e rasgada, seus velhos All Star pretos, e aquilo de usar casaco xadrez verde-musgo e verde-alface assim aberto sobre uma blusa branca encardida, e o sol, apesar de abril, tão a pino. Mamãe dizendo que é que os outros vão pensar da mamãe que seu filhinho fica assim todo desleixado, hum, a lâmpada pende empoeirada do forro do teto que vai ruindo, as lagartixas encontrando desvãos, passagens. Ele voltou com a garrafa de vinho, guardou na geladeira, e na porta do refrigerador um sucinto aviso da mamãe que tinha ido trabalhar, tinha lasanha no congelador, esquentasse no forno, não fosse comer miojo e beber, não, não. Sozinho, sozinho. O vinho ruim e o disco do Nirvana, demasiadamente ouvido, aquele sensacional dos dois lados que pode ouvir dezenas, trezenas de vezes. Hum, hum, o vinho descia quente, apesar de gelado. Agora era como torneira pingando, pingando, e vinha sonhando, embriagado pela empoeirada penumbra do quarto.

Despertou, esfregando os olhos, os cabelos sempre na cara, o queixinho com furo. Tinha dezenove, parecia ter menos, tão magrinho metido em toda aquela roupa esfarrapada num calor de abril, um calor ameno quando a noite chegava. Virou o lado A do disco, recomeçou. Era lento, lento, ficava rude, agressivo, voltava lento, preguiçoso, revoltava-se… Assim ia, e mesmo embriagado e sonolento, ah, ele sabia de cor.

Fazia café, esquecia a lasanha, roía bolachas na cozinha apertada de azulejos engordurados. A mãe trabalhava, o pai… O pai estava longe, longe deles, trabalhando também. Trabalhava-se. A irmã, mais velha, casada, estar-se-ia trabalhando. Trabalhando-se. Mas ele ainda ia fazer dezenove, não, não, o café pelou um pouco na língua, mandou bolacha esfarelada para dentro, tossiu um pouco, voltou para o quarto um pouco se arrastando, esgueirando-se pelos moveis atravancados da sala, alcançava seu cubículo de quarto. Entre sua cama e seu armário de portas emperradas ficava então a mesinha com o aparelho de som com toca-discos. Os seis LPs mal acomodados em pé logo abaixo. Nirvana, outro Nirvana, Alice in Chains, Faith No More (o primo que lhe dera, ou não, ele roubara, dizendo emprestado), Metallica (disco duplo todo preto, muito maneiro!), e Jesus Jones ( só gostava mesmo de uma música e trocaria com o André pelo Soundgarden maneirão que ele tem, mas nem, não quer). O pai tinha prometido aquele supimpa do Pearl Jam (capa rosada e os seis grunges num cumprimento único), ia cobrar, às vezes rolava, rolava nas rádios. A Fluminense Fm, depois de ouvir aquele lado bom do preto do Metallica, ah, ia ouvir a faixa da FM favorita, foda os comerciais.

_Mas esta música alta assim o dia todo, Maxwell, chegou reclamando a mãe, um pouco descabelada, olha dona Sorângela tem feito queixa, hum, torcia-lhe o nariz comprido, os olhos arregalados como surpreso e espantado e se ria, nem estava tão alto assim, o muro é alto, a casa dela fica quase lá, lá…

Reparava como ele revirava, revirava a comida no prato, empurrando muita coisa lá para o canto, enquanto gemia hum hum fingindo prestar-lhe atenção, mas o garoto_ garoto não _ rapaz mesmo, meu Deus!, exclamava, e sabia que o rapazinho (estava bom assim) queria saber se ela compraria aquele disco maneiro, ah, a mulher também revirava a comida no prato, engolia em seco, uma ponta amarga no fundo da garganta. Comer afinal para não desperdiçar, tudo pela hora da morte. As paredes que o cercavam ruíam lentamente pelo reboco. Tudo ia se despedaçando, esfarelando como o bolo que tentava, tentava, assim como sua mãe fazia e nunca dava certo.

Maxwell tinha então um sábado à noite naquela praça. Não queria tênis novo, seu velho par de tênis estava ótimo, a calça jeans esfarrapada, e precisar daquele casaco xadrez verde-musgo e verde-alface sobre a blusa branca encardida grafitada. Ele e Lúcio ficavam assim, sentados no espaldar do banco de pedra, sob árvores de copas empoeiradas, atrás dele o parquinho de areia das crianças. Às vezes Lúcio o puxava pelas mãos, como agora, e ficavam só de zoeira assim na gangorra, bem bastante embriagados pelo vinho ordinário e doce de mais, nem mais gelado.

Lúcio era magrinho, magrinho, quase preto, cabelo encarapitado no casco, a boca rasgava todo rosto num sorriso, de bermuda rota e encardida, velhos congas que foram do irmão mais velho. No vaivém da gangorra dividiam o resto do vinho ruim e riam e conversavam.

_Pensei que tu ainda estava lá no supermercado, trabalhando, falou Max.

_Não, não, saí, sacudindo os ombros engolia o vinho devolvendo a garrafa ao outro e subindo na gangorra, eles me botaram pra fora e eu achei bom. É… tinha que descarregar caminhão, varrer o mercado, não era só empacotar…

_Também nem entra tanta gente pra comprar né, completou Max descendo enquanto o outro subia, rindo, a garrafa numa mão ao alto como um troféu.

Max sabia do amigo, abraçava-o pelos ombros, sentia-se maior, mais belo com seus lisos cabelos castanhos compridos como o Kurt, assim se achava, e embora fosse pobre, a mãe trabalhava muito, ele tinha pelo ao menos discos e um som. A casa de Lúcio era de tijolo cru, só dois cômodos no meio de mais outras seis casas geminadas, um esgoto aberto no meio do quintal, que em dias de chuva ficava empoçado e mais malcheiroso. Vivia com mais três irmãos, a mãe e o pai naquele apertado dois cômodos de tijolo cru com um banheiro tamanho de um armário de duas portas. A rua era de barro socado, lamacenta e de ambos os lados da vila havia uma placa de vende-se terreno. Até que Max gostava da sua fama lá na vila que Lúcio mora, uma menina cor de palha, cabelo seco, meio dentuça e magricela, ficando a mexer no brinco do lado esquerdo o tempo todo, ah, toda lhe sorria, dizendo, dizendo que você, hem, hem, parece tanto com o Kurt Cobain. Ah, Max fazia festa, empertigava-se mais, jogando os cabelos para os lados, para trás, afastando-os dos olhos, para que ela visse, hum. Renata, disse-lhe o nome, estava um dia de sol, qualquer hora monótona da tarde daquele dia qualquer, que Max deixou de ouvir seus discos pra ficar um pouco com o amigo, e tinha trazido um saco de biscoitos, que era bem para dar a Lúcio, mas o irmãozinho dele viu, queria, queria, avançou, correu para dentro do barraco, a mãe mesmo atrás, descabelada, queria também, só um pouquinho, mas apoiando-se na parede rachada da fachada das casas geminadas, Max como que paquerava a menina pálida e dentuça, e ela abaixava a guarda, se rindo, abaixando os olhos, uma mão inquieta no pingente do brinco e outra assim tamborilando os dedos na coxa. Sabia de um lugar legal, hum, legal, o pé numa sandalinha rasteira surrada arrastando no chão de cimento cascudo. Lúcio, logo atrás do amigo, as mãos cruzadas às costas, apenas como espectador.

Os três iriam para este lugar legal, lá pra trás dos Arcos. Dinheiro nem problema, mesmo passavam por baixo da roleta do ônibus, levavam biscoitos e salgadinhos na mochila, Max já adiantando o vinho, nem precisa gelado, assim mesmo quente, e entrelaçando os dedos compridos de unhas roídas, Lúcio foi dizendo baixinho, entrando na conversa, o queixo vindo primeiro, os olhos virando-se nas órbitas, ele guardava assim, assim umas moedinhas sujas, o pai ia deixando esquecidas em algum canto, no final das contas bem dava para comprarem um vinho gelado lá ou uma garrafa de caninha, vendem sim, pois já tinha ouvido histórias de Renata sobre o lugar que iriam, iriam sim como quem fogem, pois Max bem gostaria que a mãe ficasse fora uma noite, levaria Lúcio e a vizinha dele, os dois para seu quarto, ouvindo discos, Nirvana, Nirvana, os dois lados muito bom de ouvir, lento, agressivo, lento, agressivo, devagar quase abaixando, melancólico e pronto tudo revolvendo, revirando-se como a porta batendo forte, panelas caindo, pratos e copos se espatifando.

As luzes se acendiam como nos Arcos, em cima o trilho do bonde que nunca quase se via passar. Renata parecia um menino sujo, dentuço e magrelo, embora usasse saia por cima de uma calça de poliéster azul-marinho grudada nas pernas, umas sapatilhas encardidas e carregava uma grande mochila malhada nas costas, e foi deixando que Max socasse ali o vinho em meio a um monte de livros e revistas ensebadas que já atulhavam a mochila, e Lúcio não se lembrou de ser gentil, levar um pouco a mochila da garota, e Max, que se adiantara a fazer isso, pronto, num muxoxo, subindo no ponto mais alto da calçada a menina tinha aquele esgar de deboche, e mantinha a mochila presa ao seu ombro. Max parecia já desenrolar, nada atento ao movimento azafamado do bairro boêmio, uma mão presa ao ombro da menina, cercando-a, e Lúcio segue-os, isolado, sua bermuda encardida e amarfanhada, cheia de bolsos mal costurados, o velho conga roto de sempre que pertencera ao irmão, atento ao movimento: prostitutas, travestis, vagabundos, gente que só quer se divertir, exóticos tipo punks de desvairados moicanos e jaquetões drapeados; ambulantes, e sob a sombra dos Arcos, todos.

Sentaram-se no mais alto dos degraus, a escadaria iluminada, e fumaça e fumaça evolava na atmosfera pelos degraus iluminados, rente aos velhos casarões. Alguém, mais abaixo, ou bem ao meio, quase perto ao topo onde eles se espremeram, tocava um violão; Max entre Lúcio e Renata, e ela assim recostada a parede, distraía-se em raspar tinta seca da surrada mochila de naipa sobre seus joelhos, enquanto Max abria a garrafa plástica de vinho nos dentes. Ela descobria assim um copo, outro dentro daquela mochila sem fundo, pensou Lúcio, introspectivamente aderindo ao trio, participando. Logo começaram a beber, uma voz feminina levava uma música pop nacional, junto ao violão, tão antiga quanto atual, e Renata pôs-se a cantar junto como se o doce vinho quente já fizesse efeito. Lúcio tocou ao ombro de Max, e este tocava ao joelho da garota, e ela acompanhava a voz doce que vinha do degrau mais abaixo, assim outras vozes foram acompanhando, sem se entender bem compreendendo-se e estavam satisfeitos, porque sentiam-se, Lúcio tocando no ombro de Max e este tocando no joelho de Renata. Formavam um elo, os copos se encheram, e as vozes que acompanhavam o violão cresciam, cresciam, mas de súbito uma janela em diagonal rente ao muro, que pensavam ser eternamente cerrada, abriu-se com grande estrépito de par em par, e uma voz, rouca, funda mandou que se calassem, vindo de uma boca de um rosto sem sombras nem delineamentos de uma escuridão, e então quedou-se um silêncio em oh, e aconteceu de um grande tropel de pés descendo, cadencialmente desceram todos, os degraus, como se num efeito dominó, entre risos e soluços e oh de espantos, e como que e mãos dadas, Renata, Max e Lúcio desciam também, rápidos, ela segurando a mochila e Max sobraçando a garrafa de vinho ordinário, os três como se algemados. Pois assim estavam dentro da deliciosa e perfumada noite suja.

Ganharam um beco de velhos casarões, portas abertas, batuques engrolados, gente no sapateado, mal iluminados terraços bambas, cada pedaço de calçada disputado e os três seguiam rindo e surpresos, as mãos atadas como se algemados, entreolhando-se surpresos, um pouco embriagados e inebriados pela atmosfera de aroma de cigarros mentolados e perfumes suados de baratos, de vez em quando abaixando os olhos para as sarjetas sujas. O vinho, dividiram logo chegaram a uma espécie de clareira naquele ambiente boêmio, assim entre carros estacionados e imersos em certa escuridão periclitante, onde se via sujeitos encostados a árvores, de troncos moles e galhos débeis, urinando, e mulheres, com trajes sumários, abrindo-se em sorrisos cheios de largura e dissimulação a homens que se coçavam entre as fendas do camisão aberto.

Ah, este era o mundo, abriu os braços Max largamente, os cabelos nas ventas, e Lúcio, atrás dele, apenas sorriu-lhe pela mesma felicidade, e a garota sentou-se, sem nenhum encabulamento, no meio-fio da calçada, onde sob seus pés água duvidosa escorria levemente como lagarta se esgueirando.

Entraram num boteco tumultuado de mesas e gente se encostando a dançar, abriram caminho sempre juntos como se algemados e não de mãos dadas e colocaram-se rente ao balcão, também tumultuado, e soube a garota abrir caminho entre dois homens robustos, mal encarados e rudes e encaixar seus dois amigos. Apertados, mais satisfeitos de pedirem uma cerveja barata, que podiam pagar, e com pouco que bebiam e misturavam logo se embriagavam, mesmo que a atmosfera era inebriante de algazarra, fumaça e perfumes diversos. Apenas se entreolhavam rubros, e Renata tocou ao cabelo de Max, como querendo ver seus olhos, seu sorriso melhor, e Lúcio buscou o copo, a cerveja de gosto ácido, estranho, no fundo doce como o vinho quente, e para ensaiar como se, ele alisou a umidade da garrafa na ponta dos dedos, os olhos ficando mais vesgos. Não se sentia sobrando, estavam apertados, pobres e rotos, juntos numa noite suja e fantástica.

Ia desenrolando sem palavras, sua mão – a que não pegava o copo – ficava alisando o rosto dela, o mesmo truque, e como ela sorria abaixando os olhos, e já que falar qualquer coisa seria inútil, pois o ambiente era caótico de vozes, risadas, música engrolada, tilintar contínuo de garrafas e copos. Ah, ele sabia bem do que ela achava belo nele, desde que tiveram o contato na vila de casas.

Pagou a cerveja Lúcio, assim as moedinhas sujas que ajuntara foram bem utilizadas, e seguiu atrás do que parecia o novo casal, como se tanta gente agora não se acotovelasse no pequeno espaço, as mesas mais ocupadas, as cabeças inclinadas tão próximas. Abraçando-a sobre os ombros, trazendo-a mais para si, o outro braço já em expansivo gesto livre, pois de súbito se viam num espaço mais livre da calçada, soltos, mais envolvidos, e Lúcio tinha os olhos para seus congas rotos herdados do irmão, o mindinho do pé esquerdo querendo se libertar por um furo ousado.

As horas passaram que nem viram, e Max, abraçado a ela, e Lúcio atrás, iam pelo caminho que ela os guiava, subiam uma rua íngreme, com um e outro casarão velho abandonado, e cabeças em cabelos espetados passavam por eles, botinas de couro gastas, velhas jaquetas do mesmo couro batido e malhado, e apenas se entreolhavam em esgares de simpatia e reconhecimento, como de repente próximo a um muro baixo e inclinado, Renata desenlaçou-se de Max, suspirou, tirou um maço de cigarros amassado da parte pequena da mochila, e apenas com um olhar guloso de menino sujo pediu ao punk, de cabelo espevitado, fogo, e este veio estendendo-lhe o isqueiro e a mão em concha a proteger a chama que iluminou-lhes o rosto em rubor. Max, vendo-se distante, sem perder seu sorriso, esgazeou um olhar para o cúmplice: Lúcio, e este pareceu se sentir novamente renovado, encostando-se ao poste, um pé como apoiando o corpo no declive da rua. Max o reconhecia. Estavam aliados como sempre, ainda. E então o punk se apresentava, Renata tragando o cigarro adiantou fazer o resto das apresentações. Este punk tinha as mãos de dedos longos e finos cheios de anéis grossos, mas não usava couro, apenas um jeans de barra curta, batido e justo, camisa branca pichada e velhos All Star rotos canos longos. Era risonho no rosto comprido de nariz longo, um pouco curvado. Max curtiu-o logo, sentaram-se ali por aquela calçada escura, Renata entre Lúcio e Max, e este como que monopolizou o punk para si, pois o punk tirava do apertado bolso do surrado jeans uns pacotinhos e um papel seda. Falava enquanto agia. E não havia problema, claro que não, visse como tantos, mais acolas, ocultos na escuridão, sentados pela mesma calçada em declive, faziam o mesmo, a fumaça enovelava em anéis ou espirais pelo escuro, envolvente, e eles tinham também, as mãos iam passando de um ao outro, chegava até Lúcio, cada um dava a tragada que soubesse, e como Lúcio não sabia bem, apenas mordia de leve e sentia a fumaça, mas Max, embora pouco soubesse também, reparava bem como Renata e o punk faziam e logo sabia como fazer, rindo à vontade, sentindo a garganta queimar, e sentindo também Lúcio buscava refresco no vinho quente e doce que já rodava da mão de um e outro.

O portão velho de ferro retorcido rangeu entre os muros rachados e inclinados. Os canteiros eram mesmo matos atravancados e boiando na escuridão e emergindo de rochas de limo. Na alameda que se estendia aos seus pés, as pedras soltas, Max chutou uma longe, perdeu-se na escuridão à frente onde boiava em sombras a fachada do casarão.

_Deve ter morcegos, sussurrou Lúcio atrás de todos e os olhos pequenos e estrábicos do punk se voltaram para ele, rindo no queixo comprido para baixo.

Renata atirou uma pedra ao longe, depois de ter entregue sua mochila nas mãos de Max. Não, não havia porta. E quando chegaram a varanda, perceberam os vultos, os pontos de brasa de cigarros acesos ali e acolá, tremeluzindo na escuridão amorfa. Suspirava. Os morcegos de asas evadiram, não tiveram escolha. Lá dentro, apesar da poeira e umidade, era fresco e se percebia os vultos circunvizinhos, estirados no chão ou sentados, encostados a parede em ruínas.

Acomodaram-se ao chão, recostados a velha parede descascada e rachada, entre caixas velhas de papelões. O punk e Renata ficaram a parte, ela mesmo se esquecia da mochila, encostando a cabeça confortavelmente num dos ombros dele, pois ele tinha cigarro. Max pigarreou de cócoras, notando que o resto do fino tinha ficado em seu poder, olhou para Lúcio piscando entre as mechas embaralhadas. Eram agora como dois grupos. Lúcio ficou ao lado do amigo, bem distante do novo casal, disfarçando ou porque mesmo não sentia, mas era bom que agora era os dois apenas, pelo menos neste momento, apenas o punk passou-lhe o isqueiro e seus cabelos espetados voltaram a cobrir o perfil da garota com um menino sujo, que apoiava a cabeça repousante no ombro dele. Pareciam balbuciar qualquer coisa, enquanto os vultos a frente se remexiam, tossiam, tentando, como eles também, enxergar bem quem estava no mesmo ambiente. A fumaça subia, subia, enovelada, e a brasa era mais tênue, o cheiro mais intenso. Apenas de Max para Lúcio, e como que para quebrar aquele gelo que o afastamento, nem tanto, da garota tinha causado, Max falou num pigarro seco de voz sufocada de fumaça, disse algo como que a noite estava incrível, tudo era bom. Jamais perceberiam, na penumbra espessa do ambiente, que as mãos de Renata se entrelaçava com as do punk. Rompia-se um laço, definia-se um novo. A mochila dela, no entanto, estava entre suas pernas, e quando Lúcio recebeu o fino da mão de Max novamente, ia olhando para o alto, querendo adivinhar o que ia além daquela escuridão abobadada, mas perceberam um vulto mais delineado a frente deles, bem aos seus pés, os cotovelos que apoiava o tronco rastejante, a boca babenta num rosto de barba suja. Pedia um teco do fino. Max sorriu-lhe como alucinado, os olhos ficando maiores entre as mechas bagunçadas dos cabelos. Aquela boca porosa pedia um teco, um teco do fino, e Lúcio riu, sim, veio-lhe uma espontânea e inaugural vontade de rir como nunca antes, vinha daquele gosto seco ardente na garganta.

O casarão ficou longe, e lá o resto do fino com aquele que se arrastava pelos cotovelos na boca porosa de baba, e Max trazia a mochila de Renata, Lúcio vinha-lhe no encalço resfolegante. A rua descia íngreme, viam ao final as luzes dos faróis dos carros se cruzando, e estugaram mais os passos, ofegantes, agora como se já fugissem. Caramba, e tinha subido tudo aquilo, pensou longamente Lúcio, observando que Max não perdia tempo em mexer na mochila da garota. Mas não viriam atrás, viriam? E sim, Lúcio se esquecia não se esquecendo que ela era sua vizinha, contudo a noite estava ganha. Entraram no ônibus, vazio aquela hora alta da madrugada. Tranquilamente pularam a catraca, sem protestos do motorista, na ausência de um cobrador, e acomodados no banco, Lúcio olhou um pouco pela janela, o vento frio da madrugada em seu rosto, tão bom, como se soubesse de uma caneca fumegante de café quando chegasse, e Max fuçava a mochila batida. Papéis velhos, papéis velhos amarfanhados, lenços sujos de tinta, pacotes de biscoitos, atirou um ao colo de Lúcio, que se espantou a sorrir voltando a si, prendeu-o entre os dedos, enquanto Max ria, ria, afastando os cabelos dos olhos e os cabelos voltando. Ah, ele na verdade estava magoado com a traição, pois não era uma traição, Lúcio também sentia, embora era regozijante. Ao menos naquele ônibus, hem. Desceram. Lúcio seguiu-o. Max ia um pouco na frente, a mochila na mão como uma trouxa, voltava-se chamando o amigo para que o seguisse, como se acreditasse que ele fosse virar para outra rua. A rua estreita, uns pontos asfaltados, os postes voltavam a falhar, algumas janelas iluminadas por detrás das cortinas cerradas, aos poucos as casas iam acordar, preguiçosas, mas eles nem sabiam que era domingo. Estavam ofegantes. Ah, Lúcio sabia, por isso entrou na ponta dos pés quando Max lhe deu passagem, levando o dedo indicador entre os lábios cerrados. A sala exígua e parcamente iluminada. A casa de Max. O quarto dele. Ouviu-se um gemido vindo de uma das portas, entreaberta, escuridão lá dentro, leve movimentar de vulto incerto. Prosseguiu cauteloso. O quarto exíguo. Max acendeu a luz. A lâmpada pendia do teto lúgubre, cresceu as sombras deles. A cama estreita de colchão magro, mal forrada, o travesseiro atirado ao meio da cama. Lá estava o aparelho de som, enorme, com toca discos, abaixo, enfileirados, os seis Lps.

_Fica de boa aí, cara – disse Max atirando a velha mochila no chão. Lúcio olhava em torno encantado, menor por estar mais tolhido, tal como se tivesse entrado numa igreja.

Max sabia, e por isso abaixou-se e pegou. Mostrou-o. Os olhos de Lúcio iam da capa do disco que estava na mão de Max para o próprio, assim sorrindo, mas era por estar ali, tão apertados, juntos, sussurrando.

_Amanhã a gente ouve som, mais tarde, sabe, minha mãe deve ir na casa da minha avó, foi falando, sentou-se, tirou os tênis sujos, foi abrindo a calça, atirando o casaco xadrez verde-musgo e verde-alface sobre o espaldar da cama, despindo a camisa.

Lúcio sentou-se no chão, abraçado aos joelhos, bem aos pés de Max, que estava sentado na cama, e esgazeou os olhos melancolicamente para a direção onde estava a mochila.

_Ela que perdeu, ela que perdeu – disse Lúcio rouco, num tom forte, os olhos se voltando na mesma direção que o amigo.

Max sorriu virando os olhos, afastando a franja com um meneio ríspido da cabeça, sacudiu os ombros e pediu que Lúcio apagasse a luz. Este obedeceu, imediatamente se levantando, mas ao retornar como que se perdeu indeciso em meio a penumbra. Sentava-se no chão ou. Max estirava-se na cama, atirando a calça longe, já sem a blusa, as mãos cruzadas sob a cabeça, os cabelos nos olhos.

_Vem cara – chamou – vai ficar ai…

_Mas…

Max encolhia-se mais contra a parede na cama estreita, puxou a cueca pelo elástico como com receio de que se expusesse tanto.

Lúcio tinha os olhos baixos, os lábios retorcidos, os nervos se remexiam trêmulos. Acedeu, constrangido, ao descalçar os velhos congas, logo acomodando-se só na ponta. A respiração de Max estava próxima, as mãos dele estavam agora entrelaçadas abaixo do abdômen. A penumbra ia perdendo intensidade. A janela, retângulo irregular, mostrava uma atmosfera em lenta transformação lá fora, e o chilrear insistente de pássaros avisou tudo.

Chegou-se mais, as mãos mais encolhidas contra o próprio corpo como se fossem elas o perigo. Não respirava livre, sentia apenas a respiração de Max, mais próxima, mais próxima, e uma luminosidade cinzenta já os dominava, transparecia, próximos. Chegou-se mais, mais, soltando aos poucos a respiração. Cogitou em recuar, prendendo novamente a respiração, dado um movimento como que brusco de Max, ele virava-se de lado, as duas mãos entre as pernas cerradas. Soltou a respiração finalmente, mas ainda tenso sentiu aquele rosto próximo, os olhos abertos, sonolentos mas abertos por sob as cortinas de mechas ensebadas dos cabelos. Era um sorriso? Sim, como um cínico sorriso e as duas respirações estavam tão próximas, quentes hálitos juntos, mas Lúcio não conseguia libertar a sua tão completamente, por isso Max voltou-se deitado de costas, arfando, as mãos, lançando-as para abaixo do umbigo, e então Lúcio veio devagar, não chegou as mãos, os braços encostados como que presos entre as próprias pernas, mas deitou a cabeça confortavelmente no peito do amigo, no peito quente e ofegante. Sentia-lhe o cheiro, o respirar, o bater compassado do coração. Ou seria o seu próprio? Esperou, esperou. O silêncio pingava estranho, o ambiente na luminosidade intacta daquele cinza azulado das primeiras horas virgens da manhã. Esperou, esperou. Sossegou com a cabeça deitada ao peito do amigo, sentiu o sopro quente de um suspirar que vinha das narinas dele. Ele também se acomodava, e a mão pousando macia e acolhedora sobre sua cabeça confirmou, então Lúcio fechou os olhos, abriu um plácido sorriso em meio ao turbilhão dos nervos, mas sossegado, sossegado…

No suave silêncio que se acomodou na atmosfera, a velha mochila, transformada em trouxa atirada ao chão contra a parede, pareceu mover-se lentamente como se reclamasse.

29 de fevereiro de 2016