O ABORTO

Terça-feira e quero esquecer Marina. Desejo produzir muito sem essa mulher.

Comprei dois filmes de vinte e quatro poses. Saio com a máquina fotográfica. Pego outro ônibus que desce a avenida Kennedy e estou do outro lado da região onde estive na sexta. Desço da lotação em um ponto movimentado. São três horas de uma tarde quente, entro na primeira ruela e desta vez fotografo apenas as casas pintadas. Procuro os melhores ângulos e descubro uma casa de cor lilás. Na periferia, aqui e ali surgem construções de cores exóticas. Passo em frente a um fusca sem as rodas. A carcaça do automóvel é sustentada por paralelepípedos. O que pretendia o dono com aquela ferrugem? Tiro uma foto de frente. Quero mostrar a humilhação do veículo diante dos vizinhos. É um pedaço de carro; tudo aqui são pedaços dos bairros ricos.

Algumas mulheres descobrem a câmera e fazem pose, pedem que eu as fotografe. Querem saber o preço, se eu revelava na hora. Não! Elas riem por alguma coisa. Eu fotografo mesmo assim e saio. Volto à peregrinação e não presencio nada de extraordinário. Clico aleatoriamente. Quem sabe não surpreendo meninos com recheadas carteiras na bunda.

Ando três quadras, viro em uma esquerda. Fotografo Kombi sustentando telhado, portão preso por arame, caixa- d`água aberta para a chuva. Tudo são admiráveis arranjos.

Sigo duas quadras e estranho uma rua. Ela parece uma rampa. Não vejo uma continuidade ou muro, ela parece despencar tão abrupta como um abismo. Se fosse um rio, eu estaria próximo à queda-d`água, porém não há água ali, apenas uma falha seca, o declive quase na condição vertical inicia uma ladeira pedregosa que mostra uma cratera, um amplo buraco. Lunar.

Quem poderia criar um local tão incompreensível? Mais do que uma cratera é uma imensa espiral. As curvas da espiral são as ruas sem calçamento. Imagino também várias fendas do vulcão, inativo há tantos séculos, onde construíram casas em suas encostas.

Eu visualizo daqui o sobrado amarelo por onde passarei daqui a meia-hora após percorrer estas beiradas e chegar ao ponto fixo da espiral, o centro do Vesúvio, o portal através do qual a lava retornará um dia.

Fotografo. É um funil. Quero a imagem mais ilustrativa do lugar: uma espiral, saca-rolhas, casca de caracol, boca banguela.

Tiro a foto e desço. Impossível se perder. Todas as portas estão abertas por causa do calor. Mulheres conversam debruçadas sobre os muros. Outras deixaram cadeiras em frente aos portões. As mulheres aguardam um vento que não chega. E não chegará. Ele passa por cima. Aqui é um forno. Imagino o verão e crianças desidratadas socorridas nos postos de saúde.

No meio da descida, um velho de barba branca sai de sua casa e quer saber se eu era da prefeitura. Não utilizo este pretexto, digo ser recenseador do governo brasileiro na função de fotografar, contar as casas, levar tudo para os arquivos federais. No ano 2050 conhecerão a periferia de São Paulo graças as minhas fotos. O sujeito então arruma a gola da camisa, alisa a barba, bem amarela na altura da boca e parece orgulhoso por ser finalmente objeto de pesquisa do governo, depois afirma solene:

- Pode tirar a foto.

Fotografo e o velho inspira-se, afirma gostar do presidente, o José Sarney, porque ele é a árvore de uma raiz muito boa: do falecido Tancredo Neves.

O homem fala do Tancredo. “Morreu para deixar um sucessor, um continuador de suas obras”.

Desconverso e pergunto sobre a sua vida.

- O senhor mora aqui sozinho?

O homem é viúvo. A mulher morreu no ano passado. Eu lamento o ocorrido e para atenuar lembrança despertada, afirmo que perder a esposa é muito triste.

O viúvo abre a boca, acena de forma positiva com a cabeça e depois examina o jardim da casa, onde vejo um ajuntamento de flores vermelhas. Aquelas flores traziam alguma recordação. Neste momento examinei o rosto do velho. Os fios da barba, espalhados em seu rosto, parecem querer espetar a casa, o jardim, o muro. Certamente deixar a barba secar daquele jeito foi o cumprimento de uma promessa, talvez um pedido de força para não perder a cabeça.

O homem diz trabalhar como marceneiro. Mostra-me um armário perto da porta. Tinha uma marcenaria maior em outra casa. Comprou antes de separar-se da mulher e vendeu logo que ela morreu, no ano passado, mas ainda estavam separados. O casamento durou sete anos e não tiveram filhos. A ausência de filhos foi o motivo do fim do casamento. Ela não lhe dera um herdeiro. Ele queria, ela dizia o mesmo, e quanto mais falavam em gravidez mais a gravidez sumia. Ele fez um exame e não apareceram problemas. Achou então ser um problema da idade. Casou com cinquenta e quatro anos, idade imprópria para ser pai. A idade não justificava.

Ele me pergunta o nome. Não quer ser tão íntimo de um desconhecido. O seu nome é Waldemar.

O marceneiro continua. Quando saiu o exame, a mulher, vinte anos mais nova, veio com a história, antes de conhecê-lo, engravidou de um namorado lá em Salvador. Ela não quis a criança e nunca explicou o motivo. O certo é que pagou pelo aborto. O namorado não pagou nada. Uma amiga emprestou o dinheiro e as duas foram parar na porta de um dentista, nem era dentista, e o cirurgião raspou tudo o que empréstimo da amiga pagou e deve ter raspado muito porque sua mulher estava no terceiro mês.

O tal Waldemar senta em uma cadeira, coça novamente a barba e demora a confessar... quando soube da história do aborto ficou com pena da ex-companheira até se lembrar dos anos de casado, do exame de esperma, de achar ter câncer nos testículos... mas o passado da esposa explicava melhor e o passado lhe deu um ódio porque ele sabia, quando uma mulher engravida, significa gostar do homem, gostar do seu cheiro. Mulher tem um nariz só conhecido por Deus. Ele pensou muito nisso, o corpo funcionou com o outro, não funciona comigo. E ficara dois dias medindo a traição, o prazer da companheira com pai do aborto e a ideia de ter feito tantos planos para um filho que não viria e um dia quis vir de um estranho.

Waldemar termina confessando o ciúme, expulsou a esposa da casa. Não bateu na sua cara porque não era covarde. Ela pegou a mala e saiu de cabeça baixa. Levou seis meses e ela morreu de câncer do peito. E quando ele soube do falecimento e também durante o velório, ficou com pena e raiva de novo, porque mal ela saíra naquele dia, ele descobriu que a ex-esposa era a sua vida, queria tê-la de volta de qualquer jeito, mesmo sem filho, com apenas um seio salvo do tumor, mas não sabia como pedir.

O viúvo despejou a história. Eu não quis prolongar o assunto. A sua culpa era enorme. Nenhum homem merece esta madeira, ela não pode ser lixada e você lixa.

Elogio o armário da sala e saio dali. “O senhor é um bom marceneiro. Fique com Jesus”.

Desejo que o Todo-Poderoso permaneça com o viúvo, mas eu tenho dúvidas. A ajuda divina aos homens apaixonados pela ex- mulher é uma intervenção sem data marcada, principalmente se a ex- mulher estiver morta.

Retorno meio atordoado. Ainda pude ver o velho puxando um cigarro do bolso e por isso a barba era amarelada. A fumaça do cigarro queimava os pelos do seu rosto.

Paro em um bar e compro um chiclete. Quero afastar o mau hálito. Não encontrei sinais divinos aqui, embora haja um desejo de cola de sapateiro no ar.

Trecho do livro:"DEUS, A FERIDA E A PERIFERIA"

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 05/03/2016
Reeditado em 02/06/2018
Código do texto: T5564330
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