O QUEBRA CABEÇAS

Em 1972, Vanessa pouco sabia sobre os corpos dos meninos. Eram semelhantes ao seu, pensava, mas também diferentes. As pernas mais duras, braços ossudos, cotovelos que saíam dos uniformes.

Vanessa sempre foi curiosa, e os meninos, criaturas empinadas, chutavam as portas dos banheiros. Cuspiam. Ela queria chegar mais perto. O perto se tornara um arranjo complicado, porque mal os meninos brotavam no recreio, logo se escondiam nas frestas da escola. A ânsia por um exame minucioso dos seus corpos torturava a menina.

Precisava vê-los. Nem queria tocá-los. Cheirar apenas. Eles teriam outro cheiro. A escola não autorizava classes mistas.

A apreensão da garota durou pouco.

Em agosto daquele ano, apareceu um vendedor de enciclopédia em sua casa. A mãe deixou entrar. O homem oferecia “Uma obra moderna, ilustrada em cinco volumes!”

Vanessa folheou o quinto volume. Legal. Passou por alguns verbetes e encontrou a gravura do esquartejamento de Tiradentes.

O corpo do mártir da independência do Brasil surgia despedaçado: cabeça, tórax, a perna direita pendurada e um pé.

A menina assustou-se. No entanto, quis examinar o desenho. Não importava a cabeça. O que assombrou foram os músculos do braço direito, os pelos do peito, o pé do herói.

Leu o texto. “Tiradentes esquartejado”, quadro de Pedro Américo.

A mãe comprou a enciclopédia, e a filha levou o quinto volume para escola. Mostrou para as amigas.

– Quem pintou? – perguntaram.

– Pedro Américo.

– Foi isso mesmo que aconteceu?

– Foi. Enforcaram, esquartejaram, salgaram, e os pedaços foram expostos na cidade de Vila Rica.

– Será que doeu muito?

– Garota, se aquela vacina de varíola doeu e dói até hoje... Olha a cicatriz aqui... Imagine arrancar as pernas, os braços e as cabeças de alguém.

–Cabeças? Quem tem mais do que uma cabeça?

– Para! É jeito de falar... Ele sofreu muito.

Mas não foi a dor que se percebia da gravura. As colegas não captaram o inusitado. Havia um segredo no quadro. Os membros decepados, a perna, o braço solto eram tão independentes, leves. Não seria aquilo um jogo de quebra-cabeça? E a perna, lisa. Não fora depilada?

Os corpos dos meninos pareciam insípidos.

Examinou novamente a gravura. Sentiu algo cabeludo de interpretar. Um frio na barriga. Quis desvencilhar-se da sensação.

Lembrou-se da boneca, a Suzie. Foi antes do primário. Arrancara a cabeça oca da amiga para adaptá-la à bola do câmbio no carro do pai. Ele engatou a marcha e encontrou os cabelos da boneca. Gritou. Achou que fosse macumba, vodu. Sei lá. Brincadeira, pai.

A menina escondeu a enciclopédia. Tiradentes deveria ter sido muito bonito. Voltou à obra. Examinou a pintura e dessa vez fixou-se no peito do mártir. Como seria beijá-lo? Lá em Vila Rica, antes do enforcamento.

Sentiu-se inteligente admirando o corpo do morto ilustre, personagem da história do Brasil, dia de feriado, rosto na cédula de cinco cruzeiros.

Tão distante no tempo. Tiradentes tornava-se um homem apaixonante. Mas não era bem isso o que a provocava.

Você ama alguém para além da vida, ora. Às vezes, ama a lonjura. Compreendeu. Tiradentes tornou-se o corpo ideal de homem. E isso apenas por vir explicado aos pedaços.

Vanessa julgou estar doente. Não quis mais pensar no homem. Pensou.

Tinha aquela novela de tevê em 1968. Era a história de Tiradentes. Passou na Excelsior. Quem foi o ator?

Virou a página e admirou novamente a outra gravura. O mártir ainda adolescente, bonito, inteiro. Usava uniforme.

Nos dias seguintes, Vanessa analisara o nome verdadeiro do mártir. Procurara a data de nascimento. Leu o que dizia a astrologia.

Ela seria uma dentista igual a ele. Sem anestesia. Não poderia jamais perder a ordem do suplício. Ele foi enforcado, esquartejado e salgado. Nessa ordem sempre. Outra sequência seria possível?

Imaginou o martírio: esquartejado, salgado e depois enforcado. Tiradentes caminha para o patíbulo. O carrasco corta os seus braços e pernas. O condenado, vendo-se sem membros, chora e chama por sua mãezinha. Depois, o algoz joga sal grosso sobre as feridas e leva-o até a corda redonda, onde finalmente enforca a cabeça, já tão coitadinha e pendurada.

Vanessa riu e descobriu ali novas sensações. Pronto. O corpo masculino perfeito também estimulava a piedade perfeita. Se fosse amar alguém um dia, seria esta a sequência do amor. Primeiro a ideia de perfeição, depois a piedade.

Mentalizou outros enforcados. Vários meninos do ginásio.

No fim, tudo ajudou Vanessa a filosofar sobre o amor. Ele não tem perna, não tem cabeça.

A menina ainda se recuperava dessas primeiras descobertas quando, na semana seguinte, lançaram a moeda comemorativa do Sesquicentenário da Independência.

Cunharam em baixo relevo o perfil da cabeça de Dom Pedro I, atrás da cabeça do General Médici. Na verdade, o desenho sugeria uma sucessão de reinados. Do reinado do Dom Pedro seguiu-se à presidência do General Médici.

Vanessa ganhou a moeda do Sesquicentenário. Examinou o presente. Valia um cruzeiro e tinha aquelas duas figuras. Mas a imagem de Tiradentes também estava lá. Surgiu um sentido mais matemático para a história do Brasil. Vanessa percebeu.

A história do Brasil possuía pelo menos três cabeças perdidas.

Do livro: "As crianças do general Médici"

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 28/02/2016
Reeditado em 18/11/2016
Código do texto: T5557649
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