## RECEITA DE BOLO ##
Sentiu agonia. Garganta seca. O suor escorria pela testa. Ainda apoiado ao travesseiro pegou o copo. Virou a quartinha. Nada. Vazia. A Mercês já fora mais atenta às suas necessidades. Olhou para ela. A boca bem desenhada, entreaberta, respiração profunda, um descaso para a vida. Não tendo coragem de acordá-la desceu as escadas a contragosto, resmungando aos quatro cantos sobre o inusitado incômodo. Agora só pensava em roupas e jóias.
A cozinha parecia menor do que se lembrava. Serviu-se e deixou-se cair numa cadeira. Olhou à sua volta. Está aí uma parte da casa da qual não se lembrava. Ficou por um bom tempo recordando os dias naquele engenho. Os bolos e biscoitos que Naná fazia para ele quando criança e que tanto gostava. Sempre ao final da tarde segurava-o pelas mãos carregando-o para a cozinha a fim de fazer uma grande farra gastronômica. Ele, depois de muito brincar e com fome de leão ia feliz - por um instante pareceu ouvir o simbora homem -, dito com voz firme e melodiosa. Metia a mão na massa, lambia os dedos dela e dele numa brincadeira cujo gosto nem de longe se comparava ao produto final. Depois de lamber todo o tacho da massa corria para o banho e quando descia a mesa estava posta. Bolo fumegando, queijo, leite. Ah. Isso era incrível. Seus olhos de mel o conduziam fácil fácil e assim também tomava as lições com toda liberdade, já que o pai permitia que estudasse, pois fazia parte da família.
Após a morte do seu pai herdara o engenho com tudo e todos. Sua mãe o deixara ainda criança, vítima de uma turberculose, com isso a Naná o criara com todos os mimos. Na verdade era quase uma irmã mais velha, na flor dos seus 20 anos. Traços indígenas, pele macia, cabelos deslizando sobre os ombros, sorriso de fonte a desaguar. A mãe havia servido muitos anos à família, uma criada fiel e dedicada, mas com saúde debilitada se foi, deixando a pequena Naná aos cuidados da sua mãe. Ambos órfãos de mãe, ela amadurecera cedo demais por conta da responsabilidade que pesara sobre os ombros, a principal era cuidar dele, pois seu pai não parava, sempre dando as ordens pelo engenho, pulso de ferro. Durante uma cavalgada um tombo. Jamais voltou a ver seu pai. Restara um ao outro e todos os afazeres do engenho que ela cuidou até que completasse a maioridade. Mostrou-se então uma mulher de luta, cuidando dos empregados e propriedade ao mesmo tempo em que passava tudo para ele.
Os anos seguiram e já formado ele então assumiu tudo que aprendera, deixando para ela os serviços de casa e os empregados. Foi então que resolveu casar com a filha do melhor amigo do pai. Moça bonita, prendada e quieta. Estava na hora. Mercê assumira em parte a organização da casa e Naná já não aparecia, deixando para outros criados os serviços braçais, ficando apenas na administração da mesma e dos empregados do engenho. Ela mudara desde seu casamento e ele nunca soube o porquê.
Aos cinqüenta anos ela manda as ordens vencendo as rabissacas de Mercês que assumiu enfim seu descomando. Eles jamais se viam, já que todas as contas e relatórios, feitos com uma precisão de mestre, eram entregues a ele pelo seu secretário, que, diga-se de passagem, era encantado com ela. Ela não parecia tão mais velha que ele, ao contrário, parecia mais nova que sua esposa. Vê-lo casar foi extremamente triste, apesar de permanecerem na mesma casa. Suas mãos deslizaram nos cabelos daquele menino-irmão, ajeitando o paletó. Parecia vê-lo ir para a forca. Adoeceu durante dias, sumida dentro dos lençóis.
Voltou a si quando percebeu o sol entrar pela fresta da janela. Havia passado o resto da madrugada no passado, na cozinha, junto aos que perdera um dia. O sono se foi com a Lua. Abriu a janela da sala e recebeu a brisa d’uma manhã com sabor de saudade.
Cantarolando Naná entrou na sala agarrada ao seu livro de contas tomando um susto quando o viu ali, de janela aberta parecendo sonâmbulo. Sentindo a presença de alguém ele se virou. Uma sensação estranha o tomou. Reconheceria aqueles olhos em qualquer tempo. Os anos não passaram para ela. O mesmo ar brejeiro, olhar vivo. Algumas mulheres são assim, não precisam de adornos. Talvez ela tivesse mesmo sangue indígena. Ele sim, aos 41 anos estava muito abatido tentando dar conta das exigências da mulher que, por não ter filhos, aporrinhava-o em busca de novidades da cidade grande para comprar. Ela olhou desconfiada, mas de repente pareceu também voltar no tempo e ver aquele meio-irmão que durante anos sentiu falta. Algo a fez correr para seus braços sem pensar. Ele então a abraçou percebendo que também sentira falta dela durante esses anos, dos cuidados, do carinho, da voz. Ela não mudara quase nada. Enfim confessou que havia descido para tomar água e que havia se lembrado dos lanches na cozinha. Ah, como também sentia saudades, disse ela. Agarrou então suas mãos e, sendo ainda muito cedo, correu puxando-o para a cozinha. Faremos um bolo. Tomado de surpresa ele riu com sua vivacidade, a mesma Naná de sempre. Correu a buscar os ovos, trigo açúcar. Vamos, me ajude homem! Há muito não se sentia assim. Correu a ajudá-la.
A colher de pau escorregava da sua mão e com seu sorriso de luz ela o ajudava a mexer. Vestido acinturado, ancas perfeitas. Deus, ela é quase minha irmã. Atrás dela ele já não pensava no bolo. Naná sentia o calor das suas pernas. Mexiam a massa. Mexiam, mexiam, mexiam. Sentiu saudades dele, não mais do menino. Virou-se disfarçando o nervosismo. Hora de provar a massa. Dedos melados recordavam a brincadeira. Línguas seguiam os caminhos da massa. Forno aceso aguardava. Escorria então pelo decote onde ele buscava desesperadamente os anos que deixara passar. Bocas, dedos, forno quente... Nas madrugadas se seguiram as receitas, ambos felizes inventavam deslizes. Mercês, cheia de dinheiro viajava em suas compras.
(Taciana Valença)