Um sonho irrealizável
A atormentava a liberdade bela das borboletas. Vidas efêmeras, tão livres.
Presa dentro de si com um sonho irrealizável no coração.
Os namorados passaram, nunca casou. Não é de casamento que falo esta estória.
Não era sonho de Eugênia se casar. Nunca foi.
Esta estória só eu, e poucas pessoas irão saber. Esta estória é segredo. Por que esta estória não devia acontecer.
Silêncio durante dez anos, silêncio no enésimo ano dentro daquele escritório de uma firma de telemarketing.
Quase comandava, agia com paciência Eugênia que ficava gorda aos quarenta e nove anos. As sardas ganhavam as mãos, e os olhos negros de uma ilusão dentro: vou viver um dia o sonho irrealizável.
Às vezes pegavam-na sorrindo, sorrindo assim à toa. Não perguntavam nada, deste modo ela não era obrigada a responder.
A lua cheia, e um dia antes de sua folga, no ônibus que voltava para casa – não sonhava com a possibilidade inútil do amanhã – um rapaz branquinho, de jeans surrado, jaqueta de couro preta, sentou-se ao lado dela. Ele a sorriu, um sorriso meigo e permanente. Eugênia não compreendia, mas nem por isto procurou a lua cheia pela janela do ônibus. Encarou-o com uma coragem que surpreendera o rapaz, que continuava sorrindo e até mesmo ajeitara seu penteado com os dedos, num gesto que o elevava.
Eugênia queria alcançar o além daquele sorriso. O sorriso permanecia, e nos olhos claros do rapaz desencontrava-se algo. Era um pedido que Eugênia alcançava, mas se recusava a aceitar.
Viveria o sonho irrealizável? A pergunta foi uma mordida dentro dela. De repente sentiu que o ônibus sacolejava mais, empurrava-a para ele. Sentiu os pelos do braço dele sobre sua pele lisa. O vacilo não foi o contrair-se, foi o ter se deixado arrepiar.
Ele suspirou, fingindo procurar a janela, mas seus olhos desviaram… ela sabia, ela sabia. O pensamento tremia por que o ônibus se sacudia mais na estrada esburacada.
De repente, ele fez um “ah” que a cortou de uma certeza espatifada.
Ele abriu mais a janela – sem pedir nada a ela – com isto aproximou seu braço do rosto dela.
Eugênia teve instantes de tonteamento ao sentir o perfume dele: fauno, ele cheirava a um fauno – e no mesmo momento que admitiu isto, perguntou-se do que se tratava. Do que se tratava o próprio pensamento...
Ele semicerrou os olhos, inclinando a cabeça sobre o espaldar duro do acento do ônibus. Pareceu uns instantes sorrir ao meio que procurava um conforto.
Eugênia pôs-se corajosa e ativa fitando-o, como se ele não a observasse. Quando ele tossiu, como que engasgado, ela se voltou, mas se voltou apenas por instinto de defesa.
Ele olhou para os próprios joelhos, e como se não sentisse os solavancos do ônibus, era teso e de um sorriso… sério?
Eugênia toda abalada – como o restante dos passageiros – pelos solavancos da estrada esburacada.
Ele tão em paz sem o estar ai, mas Eugênia catava um estar dele para ela. Só podia ser, afinal o sorriso meigo permanente continuava, como se ele não tivesse forças para disfarçá-lo.
Os olhos ainda desencontravam-se de algo. Seria o mesmo algo que ela buscava em alguém para viver a liberdade do seu sonho irrealizável? Seria, seria – o pensamento encontrando a afirmação e pulando com o ônibus na estrada esburacada.
Pensou ter deixado escapar alguma palavra, afinal ele a olhara tão dentro dos olhos neste instante – que não era mulher de se assustar e se assustou – mas ele a olhou porque confirmava e queria como ela um sonho irrealizável .Queria mesmo? E então, dera um sorriso debochado para ele – sem querer espontâneo –achava que ele entendia o entendimento em comum com ela.
Sim, sim – e novamente o ônibus sacolejava rápido na estrada esburacada – e ela era a futura parideira de um sonho que, o segredo ao segredo de cada um, somente ela teria alcançado afinal.
Numa curva que o ônibus virou todo para esquerda, Eugênia sentiu quase o peso dele sobre ela; o peso suave, quente e confortável. Foi depois que a curva passou – o mágico do quase a liberdade de si mesma – ele a tocou delicadamente, com as pontas dos dedos de uma das mãos, e sua voz saiu grave e aconchegante:
-Desculpe...
A alimentou, foi alimentando, buscou a lua cheia pela janela – onde o vento sacudiu seus cabelos – mas foi evanescente nos gestos, porque o que buscou foi logo algo para dizer.
_Esta estrada que...
Ele a encarou com um sorriso (meigo?) permanente, esperando a continuação da frase. Não veio, porque ela – vacilando no próprio propósito de realizar o sonho irrealizável – levou a mão à boca e prendera. É que mesmo não havia nada depois, nada havia. E no fundo ela percebera que não correra risco à toa.
Assim correu um longo e curto silêncio, porque o tempo restante fora como de um aviso de ocupado ao telefone. Eugênia pediu licença para ele, entredentes, e ele deu esta a ela levantando-se e caminhando para a porta de saída – do ônibus em movimento – bem na frente dela, e ainda apertou a campainha logo. Eugênia seguindo atrás, alegre – sem a covardia da tremedeira porque a certeza de realizar o sonho irrealizável não a permitia – e estava radiante.
O ônibus parou numa freada tão brusca, que a fez – ela que estava atrás dele – obrigar-se a se segurar nele. Pedira uma desculpa muda, que ele respondera com um sorriso – que ela vira frágil e tremente – mas era mudo como o pedido de desculpas dela.
Desceram no mesmo ponto. Eugênia estava na calçada de frente a sua casa, esta ainda de luz apagada esperando sua chegada – porque sua casa era perto do ponto de ônibus, ali mesmo em frente – e pensou ao vê-lo parado ali também, enquanto o ônibus já fugia ao seu destino: ele vai, ele vai… O pensamento segurava algo, ela que continha o segredo para a verdade na hora H.
Ele – ignorando-a parva à sua frente – tirou do bolso da jaqueta, um maço de cigarros, e o isqueiro, onde acendeu na boca e soprou a fumaça bem no rosto alegre e entendido dela: e então, e então, é agora, é agora – o pensamento que quase deixava escapar ela.
Ele então se virou sem mais, logo Eugênia percebeu uma moça surgindo da espessa escuridão à frente.
Eugenia não a viu claramente – porque mais tarde nem lembrara – mas deram-se os braços e andaram assim até desaparecer.
Naquela noite – antes de se deitar em sua cama fria – sentada, de mãos juntas, rezou para que nunca mais, nunca mais entreabrisse aquela gaveta.
28 de janeiro de 2005-02-11
RODNEY ARAGÃO