A MORTE DOS ANÕES

Sempre aos sábados, Paulo, cinco anos de idade, seguia a mãe por aquela feira livre no bairro de Moema. Feira comprida, cheia de cacarecos, meio circense, percorria muitos quarteirões, virava em uma rua sem nome e beirava os trilhos do bonde de Santo Amaro.

A mãe de Paulo escolhia ali suas dúzias e experimentava nacos de frutas, oferecidos pelos feirantes na prova da garantia do produto.

O menino observava o comércio e mal chegava ao nível das prateleiras. Sabia, no entanto, a organização do lugar: na entrada gelavam os peixes, depois rolavam as laranjas e bem no meio espalhavam as outras frutas. (Aliás, para os olhos de Paulo, bananas e peixes assemelhavam-se pela enorme variedade. A banana-maçã estava para a sardinha e a banana-prata poderia ser a corvina).

Depois chegavam as verduras. Na virada da rua... pouca gente aparecia nas tendas de miudezas. Ali o cliente encontraria tampas de liquidificadores, panelas, roupas. Saca-rolhas eram pendurados ao lado de lenços roxos e, no meio do quarteirão, o periquito do realejo puxava a sorte de uma caixinha.

A prateleira das roupas combinava com a barraca das alfaces.

Memorizar aquele mercado a céu aberto foi algo muito fácil. Aliás, o arranjo semanal dos feirantes ajudou Paulo a decorar o nome das ruas do seu bairro, o nome dos colegas de escola, o horário dos programas da tevê, a data de nascimento dos tios, tias, primos.

Mas em janeiro de 1969, no extremo da zona frutífera da feira de sábado, Paulo presenciou a cena que lhe escureceu o mundo, como se puxassem sobre a sua cabeça a lona grossa das barracas. Perto da prateleira das abóboras e de um ajuntamento de caixas vazias, vislumbrou dois anões mendigando no meio-fio. Os anões cantavam e tocavam sanfona.

A canção vinha lamuriante. “Foi lá no sertão de Goiás...”. Paulo espreitou os dois anões gordos. Anões abóboras, sem dentes, carecas... e cantavam. As barrigas saltavam das camisas, no ritmo da canção, lá no sertão de Goiás.

O menino abriu os olhos, apavorado. Imaginou o lá: o sertão dos anões. Homenzinhos de umbigos suados e pés tortos. Os dedos dos pés estavam tão abertos quanto o leque da sanfona.

Paulo então notou que o cheiro ruim da feira – sempre emergia do asfalto quando as barracas eram desmontadas – concentrava-se ali, ao redor dos anões. E que a música, a banguela das bocas, o chapéu das esmolas, as moedas, as cabeças rodavam dentro de um labirinto. Saiu correndo. Procurou a mãe. Não sem antes ouvir o “Foi lá no sertão de Goiás...”.

Passou o dia impressionado. Os polegares dos anões apertavam as teclas da sanfona. Devagar. Inchados. A cena era do além-mundo.

À noite não quis dormir. Entrou enfiado na cama. Não beijou a mãe. Puxou os lençóis para juntar o espaço. Escondeu-se sob os travesseiros e dormiu com dificuldade.

Acordou de madrugada com a boca seca. Pensou em chamar a mãe. Chamou e ela não respondeu. Acostumou os olhos na escuridão. Gritou o nome do pai e nem ele.

Esperou. Os olhos conseguiram definir a grande cômoda de quatro gavetas. O móvel veio da casa dos avós e era perfeito, intacto, sem manchas. Mas o que poderia insinuar a madeira, sugerir o verniz? Se a mãe comprara melancias, os anões não deveriam ter dentes. Uma gaveta abriria e isso seria o chapéu das esmolas. Só faltavam as músicas, o espanto e os anões apareceram. O barrigudo da sanfona estava em pé e o outro deitado. Os dois alojados em cima da cômoda. Ninguém gritou. Estavam mortos.

O menino detectou como resultado da noite que os homenzinhos morreram. Morreram. A morte existia. As pessoas chamavam de falecimento. Sumir para sempre e aos poucos, quando o morto encolhe a cabeça, o corpo, os dedos e depois adquire a condição de ser apenas um... anão.

Compreendeu enfim, ele também morreria. Começou a chorar.

Morrer. Acontece mesmo. Isso de viver é um mercado ao ar livre. As pessoas escapam por todos os cantos. Ele morreria, apesar do calor da coberta, da proximidade do quarto dos pais. A morte viria de forma tão infalível quanto a hora da xepa no fim da feira. Paulo chorou e dormiu sufocado.

Durante a semana, pensou muito sobre a morte. Ela podia furar seus dedos. Foi levando o medo até quarta-feira, quando abriu o jornal do pai e viu a foto da manchete: dois homens mortos pela polícia.

– São terroristas! Não olhe para isso! – ordenou o pai.

O filho não obedeceu à ordem e mirou os cadáveres. Outros dois anões, homúnculos mortos. Dois gêmeos esticados, dois bonecos deitados na foto impressa. Pareciam estar vivos. Disfarçavam bem. Mortos e furados. A polícia os matara. No preto e branco. Estendeu o jornal no chão. Olhou, olhou. Depois dobrou a folha para olhar mais tarde.

E passou dois dias examinando a foto medonha, acompanhando a reação dos defuntos que vinha com uma mesmice, uma preguiça, toda a calhordice de bandidos. Corpos flexíveis. Até piscavam, às vezes um olho, depois o outro. No terceiro dia, cansou-se do exame e a morte tornou-se o jornal de quarta-feira.

No sábado voltou à feira. Os anões cantores desta vez se apresentavam atrás das prateleiras de banana. Muita gente apreciava o espetáculo. A mãe percebeu o interesse do filho e deu-lhe vinte centavos para oferecer aos músicos. O menino examinou, havia uma cabeça na moeda.

Paulo mirou o chapéu das esmolas, foi chegando, afastou pernas adultas. Perdera o medo. Parou diante dos anões. Colocou a moeda no chapéu cor cinza opaca. Olhou ao redor. O muro, atrás do espetáculo, era cinza como uma lápide.

O menino respirou fundo. Compreendera algo. Admirou as caretas dos homenzinhos. Quis agradecer aos músicos por serem anões, por estarem mortos e ainda insistirem em cantar. Os anões sorriam. Perto dos vivos cantavam “...fui eu e o Chico Mineiro, também foi o capataz...”.

Os homúnculos cantavam em uníssono. Paulo acenou quando a mãe puxou-lhe para casa. O dia era de sol, e todos morreriam em Goiás.

Do livro: As crianças do general Médici