O DIÁRIO DE ELISABETH
O DIÁRIO DE ELISABETH
Acompanhava o pacote uma simples nota:
“Sr. Andy Meurer,
Encaminho-lhe objetos pertencidos a Elizabeth Rennard, falecida há dois anos: (cartas, fotos, e um diário), referenciados em seu nome, resgatados após o incêndio".
Eu desconhecia a morte de Elizabeth, assim como o incêndio que destruíra sua casa. Afastado do país por vários anos perdêramos o contato por escolha dela. No decorrer da nossa existência havíamos sido amigos e amantes. Separações pontilharam nosso longo e conturbado relacionamento, embora algo forte e indefinível nos mantivesse vinculados. Assim a cada novo encontro, essa atração recíproca nos impulsionava a viver uma intensa paixão.
Manuseei o conteúdo do pacote: cartas, cartões postais lembranças nossas que ela mantivera.
Tomei o diário, ou que restava dele: folhas dilaceradas preenchidas com a caligrafia nervosa de Elizabeth. Meditei antes de iniciar a leitura... O que encontraria ali que não conhecesse ou não recordasse, mesmo passados tantos anos?
Julho, 1991 – “Encontrei Andy Meurer quando fazia minha caminhada pela praia. Já o conhecia de vista da Universidade, onde ele há algum tempo substituiu um professor de Engenharia de Minas então licenciado. Andy disse-me ser hospede do Fourgere, estando em gozo de férias.
Admirei sua presença naquele SPA de cinco estrelas, onde se hospedam milionários. Visitei esse resort a convite de Zulma Andrade e pude constatar suas acomodações principescas. Voltando a Andy, um homem encantador, vou encontra-lo mais tarde para um happy hour. Será bom desfrutar de sua companhia".
Voltei ao passado. Certa tarde eu vira Elizabeth, à beira da piscina, no Fourgere, em companhia de outra moça. Conversavam tomando drinks, sem repararem em meus olhares insistentes. Desde a ocasião em que estivera na Universidade cobrindo a licença de outro professor, sentira-me atraído por Elisabeth, embora houvesse trocado com ela poucas palavras. Vi ali no Fourgere a oportunidade de aproximar-me, mas, por circunstâncias a ocasião escapou-me..
Eu estava noivo de Emanuelle. Embora comprometidos eram poucos nossos interesses comuns. Trabalhando na empresa de seu pai, uma importante mineradora, encontrara-a num dos eventos sociais da firma, e ela interessando-se por mim, procurava-me frequentemente.
Emanuelle envolveu-me com seu encanto. Deixe-me levar por seu jeito livre de viver, ainda que a julgasse fútil, e até irresponsável sob muitos aspectos. Seus caprichos não poupavam a bolsa do pai; seus gastos sem parcimônia eram indesculpáveis. Graças a isso eu me hospedara naquele “resort” sem desembolar um vintém. Estava em gozo de férias; Emanuelle fizera a reserva com a intenção de acompanhar-me naquele período de descanso. A inconstância com que regia seus atos levou-a a desistir da viagem partindo para New York, em companhia da mãe. Aconselhei-a cancelar a reserva. “Não, meu querido - ela dissera – você está de férias... Pois vá e aproveite.”
Julho, 1991 – “Andy e eu temos encontros diários. Exploramos todos os arredores: as encantadoras praias, os indescritíveis recantos que aqui existem, enquanto desfrutamos a paixão comum que nos consome. Nunca ousei, nem cheguei sequer a pensar, em sentir tamanho fascínio por um homem. E, entrego-me a essa atração com tal intensidade que me desconheço. Confesso que vivemos uma explosão amorosa que foge a explicações lógicas. Entre nós lavra um incêndio devorador. Escapa-me a capacidade de analisa-lo ou ponderar suas consequências.”.
De novo minhas lembranças: Elisabeth havia comparado com perfeição nosso relacionamento a um incêndio devorador. Sua exorbitância fugia a qualquer entendimento ou razão.
Movido por aquela loucura, sabendo estar próxima a partida de Elisabeth, levei--a para minha companhia no Fourgere nos últimos dias de suas férias. Ela acreditava que minha hospedagem naquele magnífico hotel tratava-se de uma premiação obtida por mérito profissional. Não senti qualquer sentimento de pena ou temor por estar iludindo a boa fé de duas mulheres. A paixão me induziu à inconsciência; desejando estar com Elisabeth, usufruindo do arrebatamento que nos era comum, obliterou-me o entendimento.
Julho, 1991 – “Parto amanhã cedo. Foram-se as maravilhosas férias, e todo o seu inesperado transcorrer. Custa-me separar-me de Andy que permanecerá aqui por mais alguns dias, aproveitando o prêmio oferecido pela empresa em que trabalha. Sua exaltação pelo trabalho que executa é deveras admirável. Segundo suas próprias palavras, calçando suas pesadas botas, usando seu capacete de fibra, nas profundezas de uma mina, sente-se completamente realizado.
Gostaria de sentir-me tão segura e feliz quanto Andy em relação ao meu trabalho, que é o ensino da Filosofia. Os conceitos daquilo a que me dedico, remetem-me a contestações, buscas e indagações...”
Voltando às minhas lembranças nos dias que se sucederam à partida de Elisabeth, todo o meu prazer esvaiu-se com sua ausência.
Custei conter-me para não segui-la
As semanas idílicas que havíamos vivido (quisesse eu reconhecer ou não) deviam-se unicamente ao desembolso feito por Emanuelle para manter-me naquele hotel. Por bem devia deixar vencer o período da estadia para partir.
Agosto, 1991
“De volta às aulas e às rotinas do trabalho, falta-me tempo para usufruir a felicidade de estar com Andy que já retornou da viagem de férias. Tão logo chegou reiteramos nossos encontros, agora passíveis dos raros momentos que dispomos em fins de semana, infinitamente curtos para nossa avidez de estarmos juntos. Para Andy a jornada de trabalho é pesada e extensa. Faz frequentes viagens pelos interesses da firma, cumpre uma rotina de reuniões, grupos de estudo, causas a que ele se entrega com renovado prazer.”
Recapitulo os desdobramentos das minhas emoções naqueles dias. Sem sentir remorso ou temor vivi uma situação insustentável.
Minha paixão por Elisabeth toldava-me o raciocínio. E consumido pela ânsia de estar com ela, deixei-me envolver pela loucura. Vivíamos num turbilhão de insaciáveis prazeres.
Sofri um inferno debatendo-me nas contradições que vivia. Como teria sido simples abrir o jogo, esclarecer aquela situação ambígua, descartar o noivado com Emanuelle, a inconveniente condição que nos iria levar a um irremediável fracasso!
Teria sido simples abrir o jogo, esclarecer aquela situação inconveniente que nos iria levar a um irremediável fracasso.
Sobrecarregado com as responsabilidades que meu cargo impunha, levado pela ambição de ter aprovados meus projetos deixei que o tempo passasse, sem sentir o menor escrúpulo por meu comportamento arbitrário.
Emanuelle envolvida com os planos do nosso casamento, não atentava para minhas fugas e ausências. Aceitava naturalmente os desconexos das minhas ações julgando-as resultado da minha incapacidade em assumir assuntos ligados a empreendimentos sociais.
Mais uma vez menti a Elisabeth. Vendo aproximar-se a data do meu casamento, informei-a de que me ausentaria para participar de conferências em diversas cidades da Europa onde a Empresa Mineradora mantinha interesses.
(Após a cerimônia religiosa, em Lisboa, partimos para a viagem de Lua de Mel. Durante esse período, postei cartões, fiz chamadas telefônicas, contatando Elisabeth: Em 91 as comunicações não eram digitais como atualmente, com os recursos da internet, celulares e redes sociais. Julguei-me a salvo de ser desmascarado. Os vinte dias que eu e Emanuelle desfrutamos naquela viagem de núpcias, não passaram de um período desastroso do qual participei sem qualquer emoção ou proveito. Assisti impavidamente a agitação consumista de Emanuelle, acolhi sem entusiasmo seus carinhos, retribuindo-os com falsa emoção... Azucrinava-me estar distante de Elisabeth; e meu maior desejo era mantê-la ignorando os motivos reais da minha ausência.).
Setembro 1992
“Ontem tive ímpetos de rasgar esse diário, relendo suas páginas, relembrando as loucuras vividas por Andy e eu, quando juntos, naquele resort, e em todo o período subsequente ao nosso regresso. Encontrei por acaso o professor Jaime Rigueira; durante nossa palestra, veio à baila o assunto de seu licenciamento quando fora substituído por Andy Meurer. Contei-lhe de meu encontro com Andy durante meu período de férias, sem, naturalmente entrar em detalhes.”
“Jayme revelou-me que Andy havia-se casado estando na Europa em viagem de núpcias. Perplexa, contive-me a custo, ocultando meus sentimentos. Totalmente arrasada, mal consegui cumprir meus últimos períodos de aula; voltando para casa, pude exprimir com lágrimas a dor e a decepção que me oprimiam. Andy enganou-me sordidamente. Que espécie de ser humano é ele afinal? Embora não tenhamos trocado promessas de comprometimento (sequer tivemos tempo para isso!) é inacreditável que ele tenha ocultado fato tão importante, que cedo ou tarde se revelaria. Espanta-me profundamente esse conhecimento. O que acontecerá no seu retorno? Continuará cercando-me com falsidades ou desaparecerá definitivamente da minha vida?”
Recordei que apesar de todo o nosso apaixonado envolvimento, retomado logo após o meu regresso, eu observara em Elisabeth, certa distância e frieza inexplicáveis, que eu tentara compreender em vão. Agora sabia: aqueles olhares enigmáticos, sugerindo indagações, nada mais eram do que o conhecimento da minha indignidade.
Fevereiro, 1992
“Voltamos Andy e eu a compartilhar nossa devoradora paixão. Incapaz de resistir ao feitiço que dele emana, sou refém de sua presença e do seu ardor. Ele oculta a duplicidade de sua vida, como eu esperava. Sinto-me culpada mantendo silêncio sobre o que sei... Entretanto, não consigo atirar-lhe ao rosto toda a mágoa que me aflige. Estando com ele, apenas me entrego à magia do encantamento que nos envolve”.
“Sua vida profissional obriga-o a muitas ausências. Entre nós se repetem: Doses exageradas de amor... Separações... Angústias... Duvidas... Mágicos reencontros...”
“Gostaria de firmar-me, buscar um ponto de apoio, tecer argumentos, resistir, desistir... Quem sabe endireitar as velas do barco da minha vida; pô-lo a navegar n’outra rota. São desejos inúteis... Há um laço que nos une, um nó que não desata.”
Caíram das minhas mãos trêmulas as páginas do diário. Eram folhas requeimadas que se desfaziam e pouco havia que ainda se pudesse ler. Eu conhecia toda aquela história... Havia-a vivido intensamente..
Eu e Emanuelle em pouco tempo reconhecêramos o fracasso da nossa união, entretanto nunca nos separamos. Haviam interesses ligados a holding. Dedicando-me à empresa, alcancei um alto patamar na sua administração, desenvolvi projetos e promovi fusões. Sendo competitivo, soube administrar a política da mineradora. Minha aliança com meu sogro inspirou-nos estratégias que nos levaram a vencer desafios e adversidades.
Emanuelle reconhecia meu valor profissional; vivia uma vida independente deixando-me livre para os meus desatinos amorosos. Fixáramos residência na África do Sul que se tornara o centro da minha atuação profissional; dali partia para visitar toda a rede. Assim, por vários anos pudemos viver, eu e Elisabeth, nosso romance pautado por impetuosos encontros. Atravessávamos continentes para estarmos juntos por períodos não maiores que uma quinzena, para em seguida retornarmos ao cotidiano de nossas existências. Essa situação nunca fora discutida. Considerávamos a condição vivida como satisfatória. Eu tinha consciência de que Elisabeth conhecia minha vida dúbia e que a aceitava como fato inelutável.
De uma forma inesperada, no final de 1999, Elisabeth pôs término à nossa relação. Como de hábito durante aquele encontro havíamos perpassado pelas distrações do momento, shows, peças teatrais, exposições; tínhamos comparecido aos restaurantes de nossa predileção. E como sempre, uma vez mais, nos consumíramos na ardência da nossa paixão, sem qualquer sombra de desgosto. Estávamos no aeroporto para a despedida quando, Elisabeth declarou-me sua incompreensível decisão de ter sido aquele nosso derradeiro encontro. Confirmou sua decisão, alguns dias após, com uma carta enigmática, cujos circunlóquios nada esclareceram; essa carta teve como desfecho a frase “diante de mim abriu-se uma porta, e, ao transpô-la dou um primeiro passo para uma nova vida”.
Inconformado, busquei por todos os meios conhecer os motivos da sua disparatada decisão Debalde, Elisabeth despareceu, licenciou-se na Universidade por tempo indeterminado; minhas cartas foram devolvidas. Foi como se ela tivesse sido tragada por forças desconhecidas. Raciocinando, concluí que Elisabeth se apaixonara por outro homem e decidira-se por iniciar uma nova vida. Entretanto custou-me muito aceitar isso como realidade e acreditar que a perdera.
Vivêramos um arrebatamento que eu julgara inquebrantável. Jamais imaginara que ela chegasse a abandonar-me para unir-se a outro homem, embora soubesse que em sua vida já haviam existido outros amores, melhores do que eu, mais atentos, presentes, prontos a juntar-se a ela, viver seu estilo de vida, como aquele que lhe dedicara um livro de poemas, identificando-se como “olhos de abril”. Num pé de página desse mesmo livro, ela escrevera:” amo o céu de abril, esse céu desanuviado, límpido, envolvendo frígidas manhãs. O céu de abril lembra seus olhos... olhos de abril...”.
Todavia eu havia acreditado que nada nos podia separar. Confiara no insaciável desejo que nos dominava, e, ainda mais, tivera como imperecível a grandeza dos sentimentos de Elisabeth, perdoando minhas fraquezas, minhas ausências...
O tempo passou; conquanto que as interrogações me pungissem continuamente, conformei-me e segui adiante.
Tendo em mãos aquele diário, enfim obteria as respostas que buscara por tanto tempo? O que o incêndio não destruíra, o rescaldo arruinara, apagando, borrando textos inteiros. Abandonei os despojos inúteis.
Elisabeth me deixara uma mensagem, “Andy, o que hoje lhe escrevo é a minha despedida, pois de mim a morte se avizinha. Saiba que o amei com ardor, loucura, mas também com delicadeza e desprendimento, sentimentos intensos, que em mim permanecem. Hoje, quando caminho entre sombras, ainda sinto no peito o peso dessas raízes profundas, irredutíveis, que sufocadas no âmago, ainda tecem liames, buscando a superfície, onde a cimentação do impossível, atrofia, derrota o seu vicejar. Perdoe-me o passado quando me distanciei de sua vida, sem esclarecê-lo dos reais motivos da nossa separação. Quis poupa-lo de responsabilidades incompatíveis com sua realidade, tomando a mim a remissão da minha vida e do meu futuro. Contudo não podendo circunstancialmente levar a termo meus objetivos, deixo garantias para a formalização daquilo a que me propus.
Com todo amor, Elisabeth.”
Reli a mensagem sem compreendê-la. Á parte encontrei slides, que projetados, mostraram uma série de imagens, em preto e branco.
(Set. 11/2001) Sentado numa cadeirinha, abraçado a um urso de pelúcia um menino sorri... Olhos grandes, escuros, cabelos fartos.
(Out. 15/2001 Aniversário) Na imagem em close, a mesma criança sorridente, ente balões.
(Junho.,25/2002) Aconchegado em mantas; agasalhado com touca e luvas, o garoto afaga um grande cão de pelo dourado.
(Out. 15/2002 Aniversário) Mesa de doces, muitos convidados. O garoto sopra velinhas.
(Dez. 25/2002 Natal) Uma grande árvore adornada com luzes, cercada de presentes. Sentado na cadeirinha o garoto bate palmas. Tem levantados os bracinhos, distendido o busto, o rostinho se projeta iluminado de alegria.
(Out.15/2003 Aniversário comemorado na Escolinha) Balões e bandeirinhas, pratinhos servidos com bolos e doces sobre mesinhas enfeitadas; nos braços da professora o menininho segura um presente, os coleguinhas aplaudem ao redor.
(Out. 15/2004 Aniversário) Sobre a mesa repleta de guloseimas, um magnífico bolo com várias camadas sobrepostas, sendo a última adornada com um avião.
O menino é erguido bem alto para soprar a velinha. Vejo- o pela primeira vez de corpo inteiro. Então percebo suas pernas presas a um aparelho ortopédico. Repito a projeção do slide. Não há dúvida... a deficiência do garoto está claramente demonstrada.
Interrompi a projeção para coordenar meus pensamentos. Estariam esclarecidos meus antigos questionamentos? Elisabeth casara-se e tivera um filho? Talvez fosse aquela a ambição que ela alimentara para comigo: casamento e filhos; desejo impossível de realizar-se, considerando minha trajetória de vida. Eu fora um canalha levando em conta apenas o prazer dos sentidos. Na minha cegueira aceitara dela a indescritível sensualidade a que eu plenamente correspondera. Fora incapaz de admitir sentimentos e aspirações maiores; nunca os constatara por faltar-me a lucidez e a sensibilidade para reconhecer que além do desejo outros laços mais fortes nos uniam.
Quando no passado Elisabeth se afastara mim, nos meus dias de angústia e buscas infrutíferas por respostas, eu descobrira tardiamente, estar ligado a ela não apenas pelo deleite sensual, mas por amor, devotamento, sentimentos que eu ignorara até então.
Voltei a olhar os slides, observando o desenvolvimento da criança em outras posturas, movimentando-se na piscina, exercitando-se em aparelhos de fisioterapia.
Através das imagens, vi a menino crescer, mudar de idade. Busquei encontrar nele traços que lembrassem Elisabeth. Ele não possuía fisicamente, nada que a recordasse: não tinha dela o cabelo liso, pesado, cor de mel escuro, os olhos grandes e azuis, a pele alva sem manchas ou o corpo leve e frágil.
Talvez tivesse herdado o sorriso que invariavelmente exibia nas imagens que eu via. Um sorriso pleno, aberto, que erguia a comissura dos lábios mostrando dentes perfeitos. No mais, apesar da deficiência, era um garoto robusto, bem desenvolvido.
Projetando os slides, quadro a quadro, eu os comtemplava, com se deles me pudessem vir o esclarecimento das mil perguntas que me acudiam..
Flutuando no meio da tela um banner:
1º TORNEIO OLÍMPICO DE NATAÇÃO, ENTREGA DE PRÊMIOS.
Outra transparência: num palco, de pé, diante de uma mesa onde estão sentadas diversas pessoas, um adolescente, recebe cumprimentos. Veste um conjunto esportivo de moletom, tem os cabelos cortados muito curtos; apoia-se numa bengala T.
A câmera o focaliza num meio perfil sem definir o rosto.
Continuo a projeção; frontal, clara, nítida, surge a imagem do garoto: no rosto imberbe tem uma expressão de triunfo. Na fronte emoldurada pelos cabelos cortados quase rentes, sob espessas sobrancelhas, destacam-se os olhos escuros, brilhantes. Com uma das mãos apoia-se na bengala T; a outra ele a tem rente ao peito, segurando a medalha de ouro da premiação. O rosto sério e altivo revela uma exaltação contida.
E, subitamente, como se iluminado por um clarão, aquele slide revelou-se um espelho. Reconheci nele meu reflexo vindo de um passado longínquo. Também eu, aos doze anos, numa foto há muito esquecida, mostrara no rosto, aquela mesma radiante manifestação por uma vitória alcançada. Como numa transmigração ali estava eu, menino, diante de mim. A revelação atingiu-me com tamanha plenitude e força que meus olhos congelaram-se, fixos no derradeiro slide, até serem turvados pelas lágrimas.
Num lampejo, dúvidas, interrogações, incertezas, se esvaíram.
A verdade escancarou uma porta diante de mim, como aquela, que no passado, se abrira para Elisabeth.
Reconheci então que assim como ela o fizera corajosamente, era chegado para mim o momento de transpô-la e pôr-me a caminho...
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